Um lugar vazio na mesa
Aceitar que as perdas relacionais, com ou sem morte, fazem parte da vida. E que podemos continuar a viver.
A noite de Natal aproxima-se e todos os preparativos são pensados com detalhe. A ementa é escolhida cuidadosamente, seja o peru, o bacalhau ou qualquer outro prato que a família goste. As tradições são para manter e aquilo que se come numa noite especial tem, também, de ser especial.
Prepara-se a casa, vestida a rigor para receber a família e, tantas vezes, os amigos que são quase-família. Desde a árvore enfeitada ao presépio e ao musgo, as decorações nas janelas e as velas acesas. Uma lareira aquece a casa, ou um aquecedor, ou umas mantas, não interessa. Interessa mesmo que possamos estar todos juntos.
Mas nem sempre estamos.
Colocamos os pratos e torna-se real, mais uma vez, que há um lugar vazio na mesa.
Um lugar vazio na mesa... o lugar de quem não está entre nós. Ou porque já morreu, ou está acamado num qualquer hospital, ou porque cortamos relações, ou porque alguém impede que esteja presente, ou porque... seja por que motivo for, a verdade é que não está ao nosso lado.
E esse lugar vazio na mesa torna mais evidente a sua ausência. Porque o dia-a-dia atarefado ajuda a não pensar, focados que andamos nas mil tarefas quotidianas. Os dias passam, os meses passam e é quando paramos para pensar que sentimos. E de repente passaram anos. Décadas. Como é possível, questionamo-nos.
As tradições mantêm-se, a família e os amigos reúnem-se e as memórias de anos passados vão surgindo. Há quem as puxe de forma intencional e quem as evite, também de forma intencional. Porque recordar é viver, diz o povo, mas é também sofrer quando essas memórias são tristes. Memórias de quem já esteve e já não está connosco. Memórias do que foi vivido. Depois a saudade, a nostalgia, a tristeza. O vazio.
A saudade é tramada, e tenho mesmo de usar esta expressão porque mais nenhuma se encaixa tão bem. Tramada porque é bom recordar e, ao mesmo tempo, custa tanto. Faz-nos sorrir e chorar ao mesmo tempo. Faz-nos querer dar tudo para que o tempo volte atrás e possamos viver tudo de novo. Mas desta vez ainda mais a sério, dizendo o que não foi dito e fazendo o que não foi feito.
Mas o tempo não volta atrás e o lugar vazio na mesa mantém-se.
Fazer o luto de alguém que morreu é difícil. Exige tempo, que nos obriga a atravessar diversas etapas, nenhuma delas necessariamente mais fácil. Etapas diferentes, que se sucedem umas às outras, devagar, ao ritmo de cada um de nós. Se tudo correr bem e este processo de luto for conseguido, aprendemos a viver com essa ausência, integrando-a na nossa experiência de vida. A pessoa morreu, mas as memórias não.
Mas fazer o luto de quem está vivo... como se faz? Como se arruma dentro de nós a perda de alguém que ainda existe? Seja um filho, um pai, um amante, um amigo? São lutos especialmente dolorosos, tantas vezes incompreensíveis, mas exigem as mesmas etapas. Fases que nem todos experienciamos, nem da mesma forma, mas que se aplicam também a perdas relacionais. A fase da negação e da raiva, seguindo-se habitualmente a tentativa de negociação, depois um estado depressivo e, finalmente, se tudo correr bem, a aceitação.
Aceitar que as perdas relacionais, com ou sem morte, fazem parte da vida. E que podemos continuar a viver e reaprender a sentir emoções positivas, mesmo que o lugar continue vazio em cima da mesa. Aprendemos a preenchê-lo com as lembranças.