Degelo do permafrost vai afectar quatro milhões de pessoas em 2050
Mesmo que o Acordo de Paris se cumpra, será impossível evitar os danos causados pelo descongelamento do solo gelado no hemisfério Norte. Um estudo na revista Nature Communications revela que 70% das infra-estruturas estão em risco.
Há muita coisa construída pelo homem em cima do solo gelado das regiões boreais, o permafrost. Há desde caminhos-de-ferro a residências, passando por fábricas e redes de abastecimento de energia. E depois há o aquecimento global que desafia esta firme plataforma. Se o chão derreter, tudo pode colapsar. Um estudo divulgado esta semana na revista Nature Communications quantifica pela primeira vez a dimensão dos possíveis estragos. Em 2050 três quartos da população situada na zona do permafrost do hemisfério norte e 70% das infra-estruturas serão afectadas pelo descongelamento do solo.
A expressão “um dia o chão desaparece debaixo dos nossos pés” parece adequar-se na perfeição a esta situação. O estudo que agora foi publicado por uma equipa internacional de cientistas anuncia com uma precisão inédita esse mesmo dia numa região do planeta em concreto. É por volta de 2050 e no hemisfério norte. O artigo conclui que a maior parte das infra-estruturas do Árctico estará em risco, mesmo se as metas do Acordo de Paris forem cumpridas.
Mas, atenção, que isso não seja argumento para cruzar os braços à imprescindível redução de emissões de CO2 para travar as alterações climáticas. Depois de 2050, o esforço do mundo vai seguramente evitar o pior e fazer a diferença. “Uma diferença clara”, asseguram os cientistas. Fica assim o aviso sobre os riscos e o apelo para o esforço colectivo dirigidos aos líderes reunidos até sexta-feira na Polónia, onde decorre a cimeira das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP24).
O degelo do permafrost próximo da superfície devido ao aquecimento global pode danificar infra-estruturas importantes, num cenário que nos levaria a uma série ameaça à utilização dos recursos naturais e ao desenvolvimento sustentável das comunidades do Árctico. Jan Hjort, investigador da Universidade de Oulu, na Finlândia, coordenou o estudo que apresenta uma avaliação de risco das infra-estruturas no território do permafrost do hemisfério norte. Os cálculos tiveram em conta a pressão das alterações climáticas, de acordo com as projecções feitas pelos cientistas. E, por pior que pareça, a previsão dos autores deste artigo é assumidamente conservadora. Ou seja, as coisas podem ainda ser piores do que adivinham.
Risco alto nas ferrovias
O estudo conclui que a maioria da população pan-árctica (aproximadamente quatro milhões de pessoas) e 70% das infra-estruturas de transporte e industriais estão localizadas em áreas de alto risco de degelo do permafrost até meados do século. Os cientistas acrescentam ainda que “45% dos campos de extracção de hidrocarbonetos no Árctico russo estão em regiões onde a instabilidade do solo relacionada ao degelo pode causar sérios danos ao ambiente construído”. Assim, reclamam, é urgente fazer avaliações detalhadas sobre o risco das infra-estruturas assentes em solo gelado num mundo a aquecer.
O objectivo deste trabalho foi “mapear áreas de risco para as infra-estruturas no permafrost do hemisfério norte regiões a uma resolução espacial sem precedentes (cerca de um quilómetro) tendo em conta as mudanças climáticas projectadas”. Focaram-se sobretudo em infra-estruturas fundamentais para as comunidades do Árctico e a actividade económica, incluindo residências, transportes (estradas, caminhos-de-ferro e aeroportos) e unidades industriais. “O risco para as ferrovias parece ser especialmente alto, como, por exemplo, para os 470 quilómetros da ligação Qinghai – Tibete e 280 quilómetros do ponto mais a norte do mundo ferroviário, a ferrovia Obskaia – Bovanenkovo, que ocorrem nas áreas de degelo do permafrost”, exemplificam.
Definidas as áreas de elevado risco, os investigadores contam o que lá existe. Os chamados “hotspots” encontram-se dispersos, desde o sistema do Oleoduto Trans-Alasca até à região de Pechora, na Rússia, e abrangem uma área onde vive cerca de um milhão de pessoas e existem 36 mil edifícios, 13 mil quilómetros de estradas e 100 aeroportos. Depois, se considerarmos apenas o degelo do permafrost, há diferenças geográficas que afectam o risco que recai sobre as infra-estruturas, como o sistema de águas termais e a capacidade de suporte do solo que afectará mais as regiões montanhosas na Ásia Central do que a área residencial e industrial do Norte da América. Além disso, 45% das importantes zonas de produção de petróleo e gás natural que existem na região russa do Árctico encontram-se localizadas em áreas com elevado risco devido a condições adversas no solo e degelo do permafrost próximo da superfície até 2050.
“A principal vantagem da abordagem apresentada neste trabalho é que a quantificação do perigo pode ser realizada com qualquer infra-estrutura disponível ou conjunto de dados da população (também usando projecções de alta qualidade, se disponíveis) e para qualquer cenário de medidas relevantes relacionadas com o aquecimento global”, lê-se também no artigo. Em conclusão, “este é o primeiro estudo a mostrar explicitamente a quantidade de infra-estruturas fundamentais que está potencialmente em risco na área de permafrost do hemisfério norte por causa das mudanças climáticas”.
“A situação é grave, como já vinha a constatar-se, mas agora, pela primeira vez, com dados de modelação, é possível quantificar os impactos generalizados à escala do hemisfério norte”, comenta Gonçalo Vieira, geógrafo físico que coordena o Programa Polar Português, que não participou no estudo. O cientista sublinha ainda que, segundo os próprios autores, “os resultados apresentam uma versão conservadora dos impactos, uma vez que consideram como referência para a fusão do solo gelado uma profundidade maior do que a necessária para que haja danos nas infra-estruturas”. No artigo, os cientistas admitem que os limites de profundidade escolhidos para o estudo – 15 metros – são, de facto, conservadores e que, por isso, os edifícios podem ceder até com o degelo das camadas mais superficiais do permafrost. E Gonçalo Vieira (ver também entrevista) conclui: “O mais relevante é mesmo a amplitude dos impactos esperados, bem como a sua rapidez, pois trata-se de estimativas já para meados do século”. Daqui a apenas cerca de 30 anos, portanto.
Vírus gigantes no gelo
O artigo publicado na Nature Communications apenas refere de passagem os outros perigos que o degelo deste imenso solo gelado representam. Mas, sabe-se já que o descongelamento do permafrost pode ter outras consequências dramáticas nos ecossistemas e até na saúde humana.
Sobre os riscos para a saúde, recorde-se, a notícia sobre um vírus gigante com 30 mil anos ressuscitado no permafrost siberiano, publicada em 2014.
Nesse artigo, os autores avançavam uma alarmante possibilidade: “Os nossos resultados consubstanciam a possibilidade de que vírus patogénicos infecciosos possam ser libertados das camadas de permafrost antigo que vierem a ficar expostas devido ao descongelamento [devido às alterações climáticas] e às actividades mineiras ou de extracção de combustíveis fósseis.”
Ao derreter, o permafrost ameaça permitir a fuga de vírus esquecidos e de milhares de milhões de toneladas de gases com efeito estufa que estão “presos” há milhares de anos – o que, por sua vez, poderia acelerar as mudanças climáticas e, com isso, o degelo do permafrost. Ou seja, o degelo do permafrost pode acelerar o degelo do permafrost.
Com Teresa Firmino