É possível não ser solidário com as ruas de Paris?
É preciso escutar o mundo e encará-lo, neste momento, como uma transformação global que é preciso fazer a todo o instante. São tempos de apreensão, mas também de desafio. Oxalá consigamos estar à altura deles.
Demasiado violentos. Sem agenda política consistente. Ao serviço de interesses da extrema-direita. Organizados no novo demónio comunicacional, as redes sociais. Tudo do piorio. Foi assim que parte das elites, dos meios de comunicação e dos políticos, foi enquadrando o movimento francês dos ‘coletes amarelos’.
O que espanta é que não tenha havido por essa Europa mais agitações análogas na última década. Quer dizer, até houve, por exemplo na Grécia, alvo dos mesmos cortes sociais como aconteceu agora em França, daí que a insurreição grega tenha sido anulada não se fosse propagar. Vamos a ver como é que a mesma Europa vai gerir esta situação. As medidas anunciadas segunda-feira por Macron poderão adormecer consciências, mas só mesmo quem não quer ver é que não percebe que aquilo que aconteceu não foi circunstancial. E não é apenas em França. O que se passa ali, de maneira mais ou menos difusa, sente-se por essa Europa fora.
Inclusive em Portugal, esse país que por vezes parece europeu e outras vezes perdido noutra galáxia. O bom desempenho da coligação de esquerda à frente do governo sugere que estamos em contraciclo ao que sucede em França, mas não tenhamos ilusões: o mal-estar é estrutural, não conjuntural. E António Costa sabe-o. É por isso que tem reafirmado que numa Europa interdependente a única saída para a complexidade do que se vive é europeia.
Dez anos depois da crise económico-financeira, que veio colocar em causa certezas adquiridas durante décadas, ainda há quem utilize grelhas de leitura clássicas para descrever o que se passa. Mas elas parecem postas em causa, o que é um indicador que algo de muito sério acontece à nossa volta. Os sintomas estavam aí.
Mais de 80% da riqueza gerada no mundo em 2017 foi parar às mãos de 1% da população. O crescimento económico não produz redistribuição com o mínimo de equidade. O capitalismo nas suas formas mais perversas dá mostras de desagregação, pondo em causa a própria democracia. Os baixos salários e a precariedade são o novo normal. As pessoas estão enraivecidas, cansadas, pela exclusão social e geográfica, lançados para as periferias. E essa permanente marginalização, conjugada com a ausência de forças políticas e sociais, que dêem voz a essas camadas, criou o ambiente para uma explosão descontrolada, num movimento social onde, naturalmente, cabem imensas sensibilidades.
Haverá por ali grupos obscuros, tentativas de manipulação, agendas políticas à espreita e gente desorientada à espera de um salvador providencial? Como é evidente. Mas o que existe, acima de tudo, são gritos, de direita e esquerda que se confundem. Gritos de escassez. De equidade e justiça social. Pelo ordenado que não basta ao fim do mês. Pela desagregação do estado social. Pela ausência de possibilidades de ascensão social. Por um sistema que as ignora em todas as relações da sua vida. Estavam à espera de quê? Que permanecessem calados e sentados em frente ao computador a comunicar entre si, cumprindo o papel de explorados enquanto apenas uma elite enriquece?
Pelos vistos algumas pessoas sim, surpreendidas que estão pelo carácter heterogéneo da mobilização. A maior parte dos políticos nestes momentos desfaz-se em palavras de circunstância, dizendo que a raiva é legítima, mas que nada justifica a violência, como se a zanga pudesse ser polida, destituída da sua expressão. É tempo de admitir que existe uma zanga que não é precedida de um cálculo. É produto do desespero. Uma montra estilhaçada ou um carro danificado são sempre de censurar. É óbvio. Mas também é preciso ter uma atitude crítica perante aquilo que parte do mundo político e mediático nos faz acreditar, dessa forma provocando a divisão: a verdadeira violência não são algumas viaturas danificadas, mas sim as incalculáveis vidas reduzidas à miséria pela política, como dizia o escritor Edouard Louis num magnífico texto (Cada pessoa que insultava um colete amarelo insultava o meu pai) publicado na revista Les Inrocktibles.
Não só algumas elites políticas e intelectuais não parecem perceber o que se passa, como se sentem contestadas na sua capacidade de representação, a partir do seu lugar de conforto. Em vez de interrogarem a sua responsabilidade nas ocorrências, diabolizam o que sucede, dessa forma aparecendo como defensores da democracia contra a desordem. Até o eurodeputado Daniel Cohn-Bendit, símbolo do Maio de 68, veio dizer que os coletes amarelos não são revolucionários como os estudantes e intelectuais de 1968.
E então? Não são os universitários e intelectuais que estão nas ruas, são as classes populares. Existe mais reacção do que construção e não há uma direcção ou visão política nítida sobre o que fazer. Mas apetece perguntar a Daniel Cohn-Bendit quem é que, na actualidade, possui ideias alternativas de futuro consistentes, mobilizadoras e universais? Claro que subsiste desnorte, mas ainda assim é um movimento com linhas de acção, apenas diferente de modelos de outros tempos. Sem uma organização vertical, mas marcada por uma ética horizontal.
A crise de representação democrática não foi originada por aquelas pessoas. A política encarada como mera gestão administrativa e os cidadãos reduzidos à função de consumidores, isso sim, foi desencorajando a reflexão crítica, de que agora tantas vozes de queixam, preocupados que as massas votem em quem lhes apresentar o discurso mais sedutoramente simplista.
O que acontece em França é algo em construção, sem uma linguagem e uma visão política nítida, em parte produto do novo ecossistema comunicacional saído da internet, com as suas limitações próprias. E então? A esquerda vai ficar a lamentar-se, para se depois Marie Le Pen beneficiar do que está a acontecer, vir posteriormente proclamar que quem votou nela – como já fez com quem votou em Trump ou Bolsonaro – é ignorante ou inculto?
Mesmo se aquilo que está a acontecer é confuso e não corresponde a um enquadramento ideal, não é possível isolarmo-nos no nosso quadro de referências ideológicas, ignorando todos os sinais potenciais que um protesto destes representa. É preciso escutar o mundo e encará-lo, neste momento, como uma transformação global que é preciso fazer a todo o instante. São tempos de apreensão, mas também de desafio. Oxalá consigamos estar à altura deles.