Fundação Mário Soares: o fim anunciado de um arquivo único

A Torre do Tombo é destino provável de parte dos arquivos, mas o ambicioso projecto que o entusiasmo de Soares permitiu construir terá os dias contados

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Mário Soares fotografado por Luís Vasconcelos em 1993 LUIS VASCONCELOS
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Auto-retrato deo fotógrafo Carlos Gil que está na Fundação Mário Soares Nelson Garrido
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Arquivo da Fundação Mário Soares Nelson Garrido

A administração da Fundação Mário Soares (FMS) quer reduzir drasticamente a sua actividade, centrando-se no arquivo pessoal do seu fundador e libertando-se das mais de duas centenas de fundos documentais que tem à sua guarda, e cuja transferência está já a negociar com a Torre do Tombo. O director do Arquivo Nacional, Silvestre Lacerda, mostra-se disponível para os acolher, mas nem todos aprovam esta solução, que poderá ainda esbarrar na vontade dos proprietários dos arquivos, já que mais de 90 por cento dos fundos estão apenas depositados na FMS e esta não os poderá ceder a outra instituição sem obter, caso a caso, a necessária autorização. 

O progressivo definhamento que a Fundação Mário Soares (FMS) vinha sofrendo desde a morte do seu fundador, em Janeiro de 2017, era uma realidade bem conhecida entre os investigadores mais próximos da instituição, e também nos países de língua portuguesa, onde a FMS, outrora um parceiro sempre disponível, deixara praticamente de estar presente. Mas apesar de algumas poucas notícias que foram surgindo na imprensa, o assunto não teve grande impacto público até o ex-presidente de Cabo Verde, Pedro Pires, ter manifestado à agência Lusa, no final de Novembro, a sua preocupação com o futuro do arquivo de Amílcar Cabral, um dos vários fundos documentais ligados às lutas de libertação das ex-colónias portuguesas que foram depositados na fundação para ali serem tratados, digitalizados e disponibilizados na Internet. 

Na sequência das declarações de Pedro Pires, uma fonte da administração da FMS confirmou ao PÚBLICO a intenção de desmantelar o arquivo, conservando apenas o de Mário Soares e os de alguns dos seus amigos mais próximos, como Francisco Ramos da Costa ou Manuel Mendes (ainda que este último pertença na verdade ao Estado e tenha sido depositado pelo Ministério da Cultura). 

Ainda segundo a mesma fonte, esta proposta iria ser discutida e eventualmente aprovada por estes dias, mas há muito que a administração, confrontada com crescentes dificuldades financeiras – em 2017, o saldo negativo terá atingido 388 mil euros – ia agindo como se a decisão de desinvestir no arquivo já tivesse tido tomada, dispensando boa parte da equipa que ali trabalhava, recusando um financiamento a três anos de cerca de 390 mil euros ao abrigo do projecto Rossio, promovido por um consórcio coordenado pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, e suspendendo negociações já em curso para captação de financiamentos para novos projectos, designadamente em África, segundo o PÚBLICO soube. 

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Arquivo da Fundação Mário Soares Nelson Garrido

Carlos Monjardino, um dos administradores da FMS – ainda simbolicamente presidida por Mário Soares, a fundação tem como vice-presidente a sua filha Isabel – já em Janeiro deste ano afirmara ao Expresso que a instituição iria sofrer uma “reorientação” e recentrar-se nos seus objectivos centrais, ou seja, “os arquivos de Mário Soares e das figuras da I República”. Nessa altura, a intenção assumida era a de “fazer uma parceria com a Biblioteca Nacional”, cenário que terá sido afastado e foi agora substituído pelo da Torre de Tombo.

O PÚBLICO tentou, sem êxito, ouvir Isabel Soares, e Carlos Monjardino recusou-se a fazer quaisquer declarações sobre o assunto. Também Alfredo Caldeira, que concebeu o arquivo, o coordenou desde o início e foi o grande responsável, com o apoio de Mário Soares, pela sua abertura aos países de língua portuguesa, declinou comentar a actual situação. Segundo várias pessoas ouvidas pelo PÚBLICO, ele próprio estará já de saída da FMS. 


Torre do Tombo disponível

O director da Torre do Tombo, Silvestre Lacerda, mostra-se disponível para acolher os arquivos da FMS e admite que o portal Casa Comum, um site lançado pela fundação para agregar arquivos dos vários países de língua portuguesa, cruzando a história da oposição à ditadura com a memória das lutas de libertação nas ex-colónias africanas e em Timor, possa transitar sem grandes alterações para o Arquivo Nacional. “Uma das garantias que demos à administração da FMS foi que temos capacidade técnica para fazer a transferência da Casa Comum e até para a manter com alguma autonomia”, diz Silvestre Lacerda, que não descarta mesmo conservar a designação – “se já existe e funciona, porque não?” –, embora a prática habitual seja a de identificar os materiais por fundo documental. Em todo o caso, observa, tudo o que possa vir a ser transferido terá a indicação da sua proveniência, o que “permitirá a qualquer momento reconstituir o que foi o trabalho da Fundação Mário Soares”. 

“O mais complicado”, reconhece, é que boa parte daquela documentação está em depósito e tem de ser a fundação a tratar com cada um dos depositantes que lhe confiaram os seus arquivos”. Mas o facto de alguns desses depositantes já terem tomado a iniciativa de contactar a Torre do Tombo para assegurar que não se opõem à transferência – dá o exemplo da família do fotógrafo Carlos Gil, cujo arquivo contém mais de 150 mil imagens –, parece-lhe um bom sinal. 

Certo é que a administração da FMS não parece ter ainda contactado ninguém. O PÚBLICO falou com Pedro Pires e com a filha de Amílcar Cabral, a historiadora Iva Cabral, e nenhum deles recebera qualquer informação directa da fundação. 

Fazendo questão de agradecer à FMS por ter recolhido o arquivo de Amílcar Cabral “numa situação crítica”, garantindo a sua “conservação, classificação, digitalização e difusão, tornando-o acessível aos investigadores”, Pedro Pires destaca ainda “o empenho de Alfredo Caldeira” e elogia “o excelente trabalho” que a fundação foi desenvolvendo, lembrando o simpósio sobre o Tarrafal promovido em 2009, e a criação do Memorial da Escravatura na Guiné e do Museu da Resistência em Timor. Mas embora aceite a decisão da actual administração de se libertar da generalidade dos arquivos – “eles é que sabem os recursos que têm ou não têm” –, defende que “não é correcto pensar em transferir os documentos de Amílcar Cabral para a Torre do Tombo” e lembra que a FMS “assinou um acordo com o governo guineense, na presença da filha mais velha de Amílcar Cabral”, Iva Cabral. “Não é razoável que proponham esta transferência sem conversarem com ninguém, e o mais sensato será marcarem um encontro para chegarmos a uma solução consensual”, diz o ex-presidente de Cabo Verde. 

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Amílcar Cabral Cortesia Fundação Mário Soares


O valor do simbólico

Iva Cabral, que foi a responsável, com o antigo presidente cabo-verdiano Aristides Pereira, por envolver a FMS na recolha dos papéis de Amílcar Cabral – “muitos andavam pelo chão e uma parte já tinha sido queimada”, conta –, e que trabalhou um ano na fundação, a ajudar a organizar o arquivo do pai, mostra-se um pouco menos diplomática do que Pedro Pires. “Só posso estar grata à Fundação e ao trabalho do Alfredo Caldeira e dos demais funcionários”, diz, “mas acho que é um crime acabar com aquilo, seria uma grande desilusão para Mário Soares, uma pessoa extraordinária, para quem o dinheiro não era tudo e que compreendia o valor do simbólico”. 

Iva Cabral opõe-se frontalmente à transferência do arquivo de Amílcar Cabral para a Torre do Tombo, “onde se iria diluir completamente, como o arquivo da Pide”. Lembrando que a decisão de recorrer à FMS se deveu ao facto de Mário Soares ser “um símbolo da luta antifascista e anticolonialista”, diz que “se é para ir para a Torre do Tombo, então arranja-se um arquivo francês ou outro qualquer”. 
A filha de Amílcar Cabral defende ainda que “o Governo português devia fazer alguma coisa, já que se interessa tanto pelas relações com as antigas colónias”. 

Também o constitucionalista e deputado socialista Pedro Bacelar, que foi conselheiro das Nações Unidas junto da Presidência timorense, e que pôde testemunhar in loco “a atenção continuada e o trabalho inestimável” da FMS em Timor, na recolha, tratamento e divulgação de documentos e na criação e gestão do Museu da Resistência, considera “muito perturbadora e triste” a actual indefinição quanto ao destino dos arquivos da fundação e defende que “quem quer que venha a ficar com a responsabilidade de prosseguir o projecto não pode ficar aquém do nível de empenhamento e eficiência que a Fundação Mário Soares demonstrou até aqui”.  


Manter a Casa Comum

O historiador Fernando Rosas, que esteve muito ligado ao arranque do arquivo da FMS, e que lá depositou também alguns documentos (também ele não foi ainda contactado para autorizar eventuais transferências) acha “estranho que os herdeiros de Mário Soares queiram transformar a fundação num recanto para se fazer uma memória ritual, em contradição total com o espírito do fundador”, e defende que “se a família não quer manter o projecto, o Ministério da Cultura deveria interessar-se, já que os arquivos são de interesse público”. 

Descrevendo o arquivo da FMS como “uma fonte incontornável para a história da oposição ao Estado Novo e para a história da colonização e dos movimentos de resistência”, Rosas valoriza também tudo o que rodeava o trabalho arquivístico propriamente dito: “promoviam colóquios e exposições, editavam livros, e aquilo era um centro permanente de discussão, de debate plural”.

Se reconhece que se tem de aceitar a decisão da administração, o historiador já não se deixa convencer excessivamente pelo argumento da falta de verbas. “Não se pode subestimar a facilidade que Mário Soares tinha para angariar fundos, mas a verdade é que se conseguiram financiamentos para o projecto que foram recusados, houve iniciativas tendentes a revitalizar a fundação que foram vetadas”. 

Na actual situação, Fernando Rosas admite que a transferência para o Arquivo Nacional, cujo director actual “é uma pessoa com sensibilidade para estes arquivos contemporâneos”, seja a solução possível, e ficaria especialmente satisfeito se o portal Casa Comum pudesse manter a sua autonomia, mas nota que a Torre do Tombo “tem uma gestão pesada, com pessoal a menos e vários constrangimentos”, e não se pode esperar dela a “agilidade de um arquivo particular especializado no século XX”. 


Gestão de informação

Luís Andrade, coordenador de um dos mais importantes projectos integrados na Casa Comum, o portal Revistas de Ideias e Cultura, que vem digitalizando e abrindo à consulta digital algumas das principais revistas portuguesas de pensamento do século XX, das publicações anarco-sindicalistas às revistas ligadas, por exemplo, à Renascença Portuguesa, não está apenas preocupado com o futuro dos arquivos físicos, mas também com o arquivo digital. “A Casa Comum é o maior arquivo digital do país, com milhões de imagens, e é consultado diariamente por investigadores de todo o mundo que se interessam pelos assuntos de Portugal e das ex-colónias”, diz, chamando a atenção para o facto de a sua arquitectura informática “exigir um conjunto de manutenções” que já não estarão a ser feitas. 

Mas se o arquivo da FMS é incontornável para a investigação académica, a actividade da fundação tem também uma dimensão política que não deve ser ignorada: “Todo o trabalho desenvolvido com os arquivos de dirigentes dos movimentos de libertação criou um conjunto de relações pós-coloniais que são muito favoráveis ao Estado português”, argumenta. 

Para Luís Andrade, as mais recentes notícias dando conta de que a administração iria tomar decisões em breve “é pura gestão da informação”, já que “as decisões foram tomadas há muito”. E não lhe parece que a solução da Torre do Tombo seja a mais sensata, desde logo no que respeita aos fundos das antigas colónias, dado o simbolismo de se estar a “entregar estes documentos ao arquivo nacional do país colonizador”, mas também por recear que os arquivos da FMS “fiquem para lá arrumados, como ficou o espólio de Salazar”. 

Também o historiador Luís Farinha, director do Museu do Aljube, dedicado à memória da resistência à ditadura, preza a agilidade do arquivo da FMS. “É um arquivo que funciona como tal, mas também como um centro de documentação capaz de mobilizar muito rapidamente e de forma simples e eficaz os materiais de que dispõe”, diz. “Por isso é que foi possível organizar tantas exposições e os museus temáticos em Timor e na Guiné: há ali um conhecimento muito grande do que existe no arquivo, e a preocupação de Alfredo Caldeira e das pessoas que trabalharam sob a sua orientação era disponibilizar com boa qualidade documentos que são fundamentais para se mostrar o século XX português”. E dá um exemplo. “Vou abrir para a semana uma exposição sobre Mário Ruivo [cientista pioneiro na defesa dos oceanos e opositor do Estado Novo] e pedi à fundação que me desse 40 ou 50 materiais fundamentais sobre ele: chegou tudo dois dias depois e com grande qualidade”. É essa capacidade de “saber onde estão as coisas, escolher o fundamental, e dar acesso rápido” que Luís Farinha diz não ser possível encontrar “na Torre do Tombo ou noutros grandes arquivos”.

E receia que alguns dos depositantes não encarem bem a eventual passagem para o Arquivo Nacional. “Assisti a cedências de documentos a Mário Soares e era evidente que as pessoas os cediam porque era para ali, nem perguntavam como é que iam ser tratados, e poderão ser bastante sensíveis à questão da transferência”. 

Para o responsável do Museu do Aljube, uma instituição em cuja concepção esteve envolvida a FMS, “o ideal seria que a Fundação não se desmantelasse e continuasse a obra do seu fundador”, mas reconhece que “o definhamento provocado pela falta de recursos, que começou já um pouco no final da vida de Mário Soares, não ajuda a que se assumam grandes responsabilidades”. E conclui: “Estão confrontados com um problema que não é fácil de resolver, mas espero que o resolvam bem”. 

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