A Revolução da Declaração Universal de 1948

O primado internacional do princípio do respeito dos direitos humanos e o acesso directo dos indivíduos à justiça internacional significam "o advento do novo primado da razão da Humanidade sobre a razão de Estado".

Os direitos humanos exprimem um sentimento e um ideal tão intemporais e transculturais como o sofrimento humano e a ideia de Justiça. Não têm data nem lugar de nascimento, foram emergindo como uma aurora, a oriente e a ocidente, a norte e a sul. São uma conquista da Humanidade de todos os tempos e culturas, como documenta a bela antologia "O direito de ser homem", publicada pela UNESCO em 1968, no 20.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Já quase tudo foi dito sobre a significação histórica da proclamação da Declaração Universal, em 1948, cuja directa motivação foi a comoção, o intenso sentimento de compaixão provocado pelo indizível sofrimento das vítimas dos horrores dos campos de concentração. Durante a sua elaboração pela Comissão dos Direitos Humanos das Nações, a Declaração foi comparada aos Dez Mandamentos. Eleanor Roosevelt, Presidente da Comissão, disse perante a Assembleia Geral das Nações Unidas que ela poderia vir a ser a Magna Carta da Humanidade. É uma alquimia de valores religiosos, filosóficos e políticos cristalizados nas profundezas da consciência humana. Tornou-se uma bandeira das lutas de libertação dos povos e um farol da Humanidade.

O mínimo que se pode dizer é que a Declaração Universal de 1948 é o documento mais emblemático da Revolução dos Direitos Humanos que, na opinião de Bertrand Russell, começou com a Reforma Protestante. Pode-se assinalar três momentos e documentos principais na história da moderna Revolução dos Direitos Humanos: o primeiro foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789); o segundo foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos (Nações Unidas, 1948); o terceiro foi a Convenção sobre os Direitos da Criança (Nações Unidas, 1989). Na realidade, o reconhecimento e proclamação de "direitos humanos" tiveram uma repercussão revolucionária em todos os domínios da vida individual, social e internacional, sobretudo a partir de 1948. Por isso, "revolução" é um termo frequente na literatura sobre os direitos humanos. A Revolução dos Direitos Humanos pode ser sintetizada nas seguintes proposições: consagração do primado absoluto do Indivíduo, transformação do Direito Internacional, renovação do Direito Constitucional, refundação do Estado de Direito, projecção de um Direito da Humanidade.

A Revolução da Declaração Universal de 1948 está compendiada na primeira frase do seu Artigo primeiro: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos". O ser humano foi reconhecido como valor ético supremo, tornou-se sujeito do Direito Internacional e foram instituídos sistemas internacionais de protecção da dignidade e direitos humanos. O Direito Internacional dos Direitos Humanos abriu brechas no dualismo tradicional que separava o Direito Internacional das ordens jurídicas internas e rompeu o círculo vicioso positivista legalidade-legitimidade. O direito individual de recurso para uma instância internacional, contra o seu próprio Estado, instituído pela Convenção Europeia sobre os Direitos Humanos, foi o seu contributo mais revolucionário, nos anos 1950. Os valores e princípios dos direitos humanos tornaram-se o Direito do Direito, isto é, um Direito intangível, indisponível, acima do princípio de soberania e da liberdade contratual dos Estados, transformando as paisagens jurídicas internacional e nacional. Nasceu um Novo Constitucionalismo, cujo "santuário" são os direitos humanos. Estado de Direito deixou de significar apenas Estado submetido ao Direito, a qualquer Direito (concepção formal, compatível com o Estado Nazi), e tornou-se uma concepção da legitimidade política com dois pilares: princípio ético do primado do valor, dignidade e direitos da pessoa humana, e príncipio democrático da soberania popular ou vontade geral (concepção substantiva, irredutível à formalidade e volubilidade do fenómeno democrático). E, como afirmou A. Cançado Trindade, que foi Presidente do Tribunal Interamericano dos Direitos Humanos e é actualmente Juiz do Tribunal Internacional de Justiça, num Curso de Direito Internacional do Comité Jurídico Interamericano (Organização dos Estados Americanos), o primado internacional do princípio do respeito dos direitos humanos e o acesso directo dos indivíduos à justiça internacional significam "o advento do novo primado da razão da Humanidade sobre a razão de Estado, que inspira o processo histórico de humanização do Direito Internacional".

Em 1996, num artigo publicado neste jornal, chamei a atenção para deficiências e omissões da tradução portuguesa da Declaração Universal publicada no Diário da República em 1978. Em 1998, durante um Seminário Internacional por mim organizado no Centro Cultural de Belém, integrado no programa da Comissão Nacional para as Comemorações do 50.º Aniversário da Declaração, sugeri à Comissão que promovesse a sua rectificação. Foi-me dito, então, que o processo de re-publicação oficial do texto da Declaração teria de ser desencadeado pela Assembleia da República, o que não aconteceu, até hoje. O Grupo de Trabalho Interministerial para as Comemorações dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos 40 Anos da Adesão de Portugal à Convenção Europeia dos Direitos Humanos poderia fazer uma diligência nesse sentido. A re-publicação do texto (rectificado) da Declaração seria um acto significativo destas comemorações.

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