Herdade da Comporta: um paraíso às portas de Lisboa
Considerada a maior propriedade privada do país, destino de férias do núcleo-duro dos Espírito Santo durante anos, a Herdade da Comporta, de extensos e férteis arrozais, gera cobiça. O sinal dado pela venda de cerca de 10% da herdade levou o P2 a percorrer parte do terreno. Os pouco mais de 200 rendeiros estão “obviamente preocupados”, mas também há quem veja neste passo uma oportunidade de valorizar "algo que ficou a meio".
As mensagens e as imagens que promovem a Comporta fazem apelo ao que de mais genuíno tem o território com 12.500 hectares: o meio natural que ainda prevalece quase intacto, o mar, o extenso areal, o sol. O sossego. O mercado já não aceita um modelo turístico baseado nos activos imobiliários dos anos 90. A biodiversidade passou a ser um activo incontornável.
Chega-se ao areal que bordeja a Comporta ao longo de 12 quilómetros, por uma das poucas entradas que o permitem: o apoio de praia Pôr-do-Sol, que o seu proprietário, Juvenal Albino Alfredo, disputou na barra do tribunal, provando que, por vezes, o Direito escreve por linhas tortas.
A empresa Herdade da Comporta alegava que a estrutura ocupava terreno que era sua propriedade, mas as sentenças lavradas no Tribunal de Grândola e na Relação de Évora dizem que não, e agora Juvenal vive um período de acalmia na sua relação com a empresa proprietária de uma das maiores herdades de Portugal.
Este conflito prova que a Comporta (nome que deriva da comporta que impede a entrada da água do estuário do Sado para os campos de arroz) não é, afinal, apenas sol e praia, natureza quase intacta e sossego.
Juvenal Alfredo tinha a “loja” fechada quando o P2 visitou o local. A sazonalidade continua a ser o que sempre foi: amealhar no Verão para ter como viver no Inverno. Aproveita o interregno na actividade, para as reparações na estrutura de madeira que no Verão parece uma colmeia pelo fervilhar de banhistas em busca do peixe grelhado, fresco, do dia.
Parece que o mar que enrola na areia fina e branca está cada vez mais próximo do Pôr-do-Sol, ou é apenas impressão! “Não, não é”, responde quem passa as tardes junto ao restaurante a contemplar o horizonte. O lugar do apoio de praia já esteve dezenas de metros mais adiante, no lugar que o espraiar das ondas agora ocupa. Um detalhe que estimula o receio do que possa vir a acontecer no futuro. Com efeito, a faixa arenosa de baixa altitude e o progressivo recuo da linha de costa apresentam uma significativa vulnerabilidade a “um tsunami”, por exemplo, explicou ao P2 Miguel Vieira, que neste momento está a ultimar a formação da ProDuna — Associação de Defesa e Recuperação Ambiental do Litoral e Zonas Estuarinas.Mesmo assim, o receio do futuro não é tão forte como a indefinição que continua a pairar sobre a Herdade da Comporta, sobretudo para os cerca de 3000 residentes das sete aldeias descendentes dos primeiros moradores da Herdade da Comporta no século XVI. Era o tempo dos “pretos de Alcácer” e posteriormente dos “carapinhas do Sado”. A presença de naturais africanos pretendia demonstrar que resistiam melhor ao paludismo nas terras pantanosas cobertas de mosquitos do estuário do Sado. Mais tarde, já no final do século XIX, chegaram à Comporta as famílias vindas de outros pontos de Portugal continental para trabalhar nos arrozais.
Terra de ninguém?
Foi com gente de diferentes origens que se formaram as aldeias da Comporta, Carrasqueira, Torre e Carvalhal. Ergueram mais de 20 quilómetros de um muro de terra e pedra que retém a maré, para que a água do mar não galgue as culturas do arroz. Ao mesmo tempo, retiraram ao estuário do Sado cerca de 800 hectares do sapal entre 1925 e meados dos anos 50, quando a família Espírito Santo tomou posse da Herdade da Comporta, que era da empresa inglesa Atlantic Company. A dimensão da obra realizada pelos ingleses hipotecou a exploração que foi vendida aos ascendentes do ex-patrão do BES, Ricardo Salgado. Hoje não se sabe ao certo a quem deve ser atribuída a propriedade do espaço ocupado pelo sapal norte da Carrasqueira, no estuário do Sado.
O Domínio Público Marítimo (DPM) nunca foi delimitado, nem o Estado o reclamou nem a empresa Herdade da Comporta assumiu que os cerca de 800 hectares eram propriedade sua, embora cobre as rendas das terras de arroz cultivadas no sapal.
A legislação em vigor define que o território considerado DPM estabelecido em 1864 determina que a faixa em terra da zona costeira “é propriedade inalienável do Estado”, pelo que os privados “só podem dispor do direito de utilização ou exploração dessa área, e nunca da sua propriedade.” Actualmente, o DPM abrange uma faixa de território de cerca de 50 metros, a contar da linha média da baixa-mar para o interior.
Quem consiga provar, com documentos, que são “legítimos proprietários de áreas marítimas em data anterior a 1864, o Estado reconhece a propriedade, mas não os exclui do cumprimento das normas que aplica no âmbito do DPM.
Foi sob a gestão da família Espírito Santo que as drenagens no estuário do Sado prosseguiram para aumentar a área destinada aos arrozais, e os terrenos arenosos da herdade foram arborizados com extensas manchas de pinheiro.
O que ficou a meio
No início da década de 60 ocorre o fenómeno da migração interna para a área metropolitana de Lisboa e a emigração sobretudo para França. A fuga da força de trabalho reduziu substancialmente a mão-de-obra na Comporta. A família Espírito Santo tenta manter as pessoas na herdade estabelecendo o arrendamento com a entrega de dez hectares a cada família, uma tentativa para garantir a exploração agrícola dos sapais do Sado. Com a emergência do 25 de Abril de 1974, a Herdade da Comporta é nacionalizada e, no ano seguinte, o arrendamento dos arrozais aprofunda-se e alarga-se a mais trabalhadores.
Entre 1989 e 1991 a propriedade é devolvida à família Espírito Santo, quando a quase totalidade das terras férteis estava nas mãos dos pequenos rendeiros, onde ainda se mantêm pouco mais de 200.
Em conversa com o P2, Avelino Antunes, membro da Confederação Nacional de Agricultura (CNA), reconhece que os rendeiros que trabalham a terra — sobretudo na cultura do arroz — estão “obviamente preocupados” com a venda de parte da Herdade da Comporta. “Esperamos que a componente turística não colida com os interesses de quem trabalha a produção de arroz”, observa.
Neste momento estão a ser negociados os contratos de arrendamento e foram prorrogados por seis anos, o mesmo tempo dos anteriores. “Estamos a conseguir, o que nos deixa animados quanto ao futuro”, confia o dirigente da CNA, frisando que os rendeiros “não estão contra a actividade turística, mas também não querem que venham a ser sacrificados em função da venda de parte da herdade”. As populações das sete aldeias “reclamam apenas que os direitos adquiridos ao longo de séculos sejam respeitados”.
No entanto, a venda ao consórcio Vanguard Properties/Amorim Luxury das áreas de desenvolvimento turístico (ADT2 e a ADT3), com 365 hectares e 551 hectares, respectivamente é, à partida, “benéfica” refere Juvenal Alfredo, que fica a aguardar pela “valorização de algo que ficou a meio de construção”.
Guerra de marcos
O proprietário do Restaurante Pôr-do-Sol considera a recente aquisição das ADT 2 e 3 “uma boa notícia”, acreditando que “trará desenvolvimento e consequentemente emprego”, criando condições para que os filhos da terra “fiquem”. Ao mesmo tempo, acredita que o período da sazonalidade possa sofrer uma redução. “Não temos condições para aguentar os trabalhadores no período crítico que vai de Outubro a Março”, mas com a instalação dos aldeamentos turísticos, dos projectos de 2.ª residência, e das unidades hoteleiras previstas para as ADT, “poderá ser um contributo” para reduzir a sazonalidade. Juvenal Alfredo receia, contudo, que possa haver novas tentativas para “correrem” com ele do restaurante que ocupa. A colocação de marcos para delimitar o Domínio Público Marítimo (DPM) em Outubro do ano passado deixou-o “preocupado”. Alfredo foi confrontado com delimitação do DPM quando funcionários da empresa Herdade da Comporta colocaram marcos bem à frente do seu restaurante, quase dentro de água, numa tentativa para comprovar que o Pôr-do-Sol, afinal, estava dentro da Comporta e que a exploração do apoio de praia competia aos proprietários da herdade.
O empresário considerou esta acção “uma afronta” e recorreu para as instâncias judiciais, onde comprovou que paga 4 mil euros mensais para explorar o apoio de praia no local onde se encontra, que é espaço público. Tem licença passada pela Agência Portuguesa do Ambiente para exercer ali a sua actividade. Tanto o Tribunal de Grândola como o Tribunal de Relação de Évora anularam a colocação dos marcos. Entretanto, alguns desses marcos foram levados para a tenda de colmo que Ricardo Salgado mandou erguer na praia do Pego e os restantes foram levados pela força das ondas. Mais aliviado e seguro, Juvenal Alfredo prepara a próxima época balnear, fazendo pequenas reparações no apoio de praia. E que as ameaças para o tirar de onde está não regressem.
Construção e abandono
O sinal dado pela venda de cerca de 10% da Comporta levou o P2 a percorrer parte da herdade para observar como se encontravam as áreas de desenvolvimento turístico cuja construção está parada desde 2014. No Comporta Links, projecto localizado no concelho de Alcácer do Sal, com uma área total de ocupação de 365 hectares de terreno, que inclui a construção de um campo de golfe com 18 buracos, dois hotéis, dois hotéis-apartamento, três aldeamentos turísticos e 22 loteamentos residenciais observa-se a imagem que o abandono transmite. Para além das áreas construídas que surgem no meio de um extenso pinhal, é o campo de golfe que mais atenção suscita. Está parcialmente construído e integrava a candidatura nacional à competição mundial de Ryder Cup de 2018. A relva verde que deveria cobrir o enorme espaço secou, por ausência de manutenção.
A Câmara de Alcácer do Sal concedeu em 2016 o terceiro aditamento ao alvará de construção da urbanização da Comporta Links, e estabeleceu o prazo suplementar de um ano para início da construção da obra que deveria terminar em Abril de 2017. Face à impossibilidade de obter prorrogação adicional do prazo, houve necessidade de efectuar as obras de urbanização durante o primeiro trimestre de 2017. Contudo, as obras foram suspensas em Outubro de 2017.
Por sua vez, o Comporta Dunes, em Grândola, promete ocupar uma área de 551 hectares de pinhal perto da praia: quatro hotéis, um hotel-apartamento, vários lotes para moradias, unidades turísticas e um campo de golfe também com 18 buracos que se estende por uma área com cerca de 100 hectares. Tudo projectos à espera de melhores dias. O alvará de loteamento para este projecto estabelecia o prazo de 84 meses para a conclusão das obras de urbanização, prazo que terminou em Maio de 2017. A Câmara de Grândola concedeu a prorrogação do referido prazo por mais 42 meses, até Novembro de 2020.
Entre a praia do Pego e Pinheiro da Cruz, os terrenos junto à praia estão vedados e só é possível chegar ao areal através de portões com abertura automática por quem dispõe de cartão de acesso limitado para esse efeito, ou nas zonas onde se encontram os apoios de praia. Ao todo, são quatro. Na prática, observa-se a privatização da zona balnear, em parte da herdade, ao serem reduzidos os acessos e os espaços de estacionamento.
Fica a aguardar-se pela concretização da componente turística projectada para a Herdade da Comporta para que se compreenda o rumo que aquela zona vai tomar. Miguel Vieira diz que “o mercado de hoje não quer um modelo turístico que existia há duas ou três décadas”, salientando que as opções de hoje têm de respeitar a “sustentabilidade” que, por sua vez, “preserve a biodiversidade local”, fazendo um paralelismo com os erros que foram cometidos no Algarve e na zona Cascais-Sintra.
A experiência profissional que já colheu de muitos anos como defensor do meio ambiente comprovam que “quando se destrói o equilíbrio ambiental, a situação não se reverte para o cenário inicial”. E a Herdade da Comporta “não é caso único”, é apenas “uma gota num oceano de situações anómalas” que se observam no litoral alentejano, analisa o fundador da ProDuna.
Vieira lembra ainda as consequências que poderão advir da redução da área de Reserva Ecológica Nacional (REN) efectuada em 2013 e 2014, que rondou “os 68%, no caso de Alcácer do Sal, e de 75%, no caso de Grândola”. A organização ambientalista Zero acusou a Comissão de Coordenação da Região do Alentejo de “retirar áreas muito significativas da REN para dar toda a liberdade ao município de poder construir ou modificar o uso do solo de acordo com interesses que não os vitais e fundamentais da protecção dos recursos”.
Com a redução efectuada na área da REN, acelerou a colocação de pedidos à Câmara de Alcácer do Sal para instalar o que já é considerada a extensão do modelo agrícola que o empresário francês Thierry Roussel instalou no Brejão, no concelho de Odemira.
Um ecossistema sensível
A REN estende a sua área de intervenção à protecção das zonas dunares, zonas de recarga de aquíferos e zonas chamadas de grande infiltração, como acontece com os aquíferos da Comporta, que, por serem “muito produtivos, alimentam a tentação de abrir furos”, reconhece Miguel Vieira. A instalação de projectos de produção agrícola intensiva “em cima das zonas de recarga dos aquíferos” suscitam-lhe muitas reservas, por ser “grave” em termos de saúde pública.
A afectação de recursos hídricos subterrâneos para a rega de culturas hortícolas é apontada como o factor que pode estar a contribuir para a degradação de importantes reservas de água na bacia do Sado. O Estudo de Impacte Ambiental (EIA) elaborado para a Herdade da Comporta e apresentado em 2015, identifica as consequências para a qualidade das águas a rega de milhares de hectares de agricultura intensiva: “O desenvolvimento das actividades agrícolas (na região) acaba por contaminar a massa de água no subsolo numa escala entre o valor médio a elevado”, realça o EIA. Acresce ainda que a redução da disponibilidade dos recursos hídricos subterrâneos, devido ao elevado consumo de água para rega, é outro dos impactos apontados. Na Herdade da Comporta já se exploram cerca de 1000 hectares de hortícolas e viveiros para a plantação de relvados, dinamizados por empresários espanhóis.
Um modelo agrícola baseado em culturas intensivas que exige o recurso a elevadas percentagens de fitofármacos e fertilizantes retirados, nalguns casos, de lamas de ETAR, quando se está perante um solo arenoso, muito pobre, neutro em matéria orgânica, dificilmente será uma actividade que se possa harmonizar com o modelo turístico que se pretende instalar na Herdade da Comporta. A invasão de moscas tem sido uma das consequências. Miguel Vieira salienta que o território é uma zona com “ecossistemas muito sensíveis”, advertindo para a necessidade de travar a proliferação de espécies invasoras em “detrimento da paisagem histórica”.
Na Comporta “ainda não aconteceu como na Costa do Sol”, mas “não faltam sítios paradisíacos que foram destruídos”, argumenta aquele especialista, defendendo a necessidade de se fazer a “reavaliação” dos projectos programados para a Herdade da Comporta, porque a realidade de hoje é “diferente” daquela que existia há duas ou três décadas.
A venda dos activos turísticos da Herdade da Comporta não suscita reservas ao fundador da ProDuna: “Espero que os investidores de hoje tenham uma visão que preserve os ecossistemas”, embora reconheça que os processos de investimento “são como os comboios que não fazem marcha atrás”.
“[A defesa do meio ambiente tornou-se uma tarefa] muito mais complexa do que no passado, mas a nossa capacidade de intervir também se reforçou”, revela o fundador da associação ambientalista ProDuna, frisando que o “novo alvo” das intervenções na defesa do ambiente “são os decisores públicos e privados”, defendendo um tipo de intervenção mais pragmática que no passado.
Um relatório elaborado pelo Tribunal de Contas Europeu em 2017 reconhece que “são necessárias melhorias na gestão, no financiamento e no acompanhamento da rede Natura 2000”, o programa emblemático da União Europeia em matéria de biodiversidade. O P2 teve acesso a um contrato do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas, assinado em Junho de 2017, para a elaboração de 20 planos de gestão de habitats naturais, da fauna e flora selvagens, em sítios de importância comunitária, entre eles os que encontram na Comporta/Galé e Costa Sudoeste. Deveriam estar concluídos há quase duas décadas.