Tanto é quase tudo
Foi reconfortante saber que há uma rede tentacular de vigilantes espalhados pelo território, posta de pé pelo Comité Contra as Práticas Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança da Guiné-Bissau e pela sua carismática líder Fatumata Djau Baldé. Claro que não há garantias de que a excisão tenha sido erradicada — mas foi retirada do espaço público e isso não é, de todo, irrelevante.
Não mudou tudo, mas mudou tanto. E tanto é muito mais do que um princípio, é quase tudo quando se fala de um tema tão complexo como a mutilação genital feminina, prática que há séculos viola os direitos humanos de milhões de meninas e raparigas pelo mundo fora.
Não visitei a Guiné-Bissau durante quase dez anos e a última vez foi uma deslocação relâmpago para acompanhar o na altura ministro da Defesa Nuno Severiano Teixeira, para este jornal onde agora escrevo, mas no qual já não trabalho. Em equipa com o fotojornalista Daniel Rocha, só tivemos tempo, e pouco, para ir registar os danos que um surto de cólera estava a provocar no hospital central de Bissau.
Na verdade, o meu trabalho aprofundado sobre mutilação genital feminina na Guiné-Bissau remonta a 2002, altura em que comecei a escrever sobre o tema para o PÚBLICO. A primeira investigação é publicada a 4 de Agosto, sobre a situação em Portugal, após três meses intensos de leitura, pesquisa, entrevistas, reportagem, dúvidas e mais dúvidas. Um privilégio a que me dediquei fora das horas regulares de trabalho, mas que foi recebido com honras de primeira página e umas raras oito páginas de diário. Escrevi tudo o que achei importante, sem constrangimentos de espaço, como voltaria a acontecer uma e outra vez. Como acontece agora — e por isso agradeço ao PÚBLICO, onde cresci como jornalista durante dez anos.
Só em Novembro de 2003 pousei em chão guineense pela primeira vez — e nunca mais encontrei cor ou cheiro como aquele. Desde então, escrevi tanto sobre a mutilação genital feminina que o PÚBLICO decidiu editar um livro, em 2006 — edição esgotada e sem cópias sobrantes. Nessa mesma altura, a Associação para a Cooperação Entre os Povos (ACEP) organizou e financiou o lançamento do livro na Guiné-Bissau. Menciono isto porque é esta mesma organização que agora nos permitiu, através de uma bolsa, fazer o trabalho plasmado nestas páginas. E porque acho que nada é por acaso. Num assunto como este, isto significa comprometimento. E não é pouco, porque todos sabemos que, no que à mutilação genital diz respeito, o que conseguirmos hoje pode ser revertido amanhã, que tudo muda muito lentamente, que ainda há tantas meninas por salvar.
Foi, por isso, reconfortante saber que há uma rede tentacular de vigilantes espalhados pelo território, posta de pé pelo Comité Contra as Práticas Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança da Guiné-Bissau e pela sua carismática e respeitada líder Fatumata Djau Baldé.
Claro que não há garantias de que a prática tenha sido, efectivamente, erradicada — mas foi retirada do espaço público e isso não é, de todo, irrelevante.
Em 2003, quando fui à Guiné pela primeira vez, assisti ao fim de um fanado — nome dado ao ritual de iniciação, neste caso uma cerimónia alternativa, sem corte de genitais mas mantendo tudo o resto, que era financiada no âmbito de um projecto coordenado por Paula da Costa, a minha primeira anfitriã na Guiné-Bissau e profunda conhecedora do tema.
Lembro-me bem da saída das fanadozinhos (meninas e jovens iniciadas), olhos no chão, cabeças baixas, encostadas umas às outras, no trilho do comboio para a idade adulta. Lembro-me de a comunidade as receber em festa, em contraste com o medo que traziam inscrito no rosto.
Era um cerimonial efusivo, no qual as comunidades respectivas se envolviam activamente, e tolerado como costume pelos não praticantes. Fazia parte da cultura guineense e não havia muito quem o questionasse. Essa cobertura foi-lhe retirada. Já não se ouve como justificação que sempre se fez assim e que qualquer alteração seria uma ofensa à memória dos antepassados.
Outra boa surpresa deste regresso à Guiné foi a descoberta de que o tema da excisão já não é tabu. Pode parecer insignificante, mas é muito mais difícil acabar com aquilo de que ninguém fala. Lembro-me de me virarem a cara quando fiz perguntas sobre o tema, em 2003. Não voltou a acontecer agora.
As próprias mulheres guineenses são agora muito mais empoderadas, capacitadas e assertivas. Querem dar a sua opinião sobre o assunto — e sabem do que falam. Querem porque vivem com as consequências do que lhes fizeram; querem porque estão esclarecidas sobre os danos da prática — para si próprias, para as suas filhas, para as comunidades, para todo o país.
Agora, há outros desafios. Tivemos a sensação de que a prática passou à clandestinidade e, num território onde a denúncia não é bem vista, isso pode colocar obstáculos à acção. Mas também é verdade que as casas das tabancas são viradas umas para as outras e que é difícil ocultar uma coisa destas — só se os vizinhos escolherem não ver.
Ora, o ritual do fanado perdeu a dimensão social e cultural que lhe estava atribuída, as fanatecas perderam o estatuto que tinham e viram-se forçadas, algumas com dificuldades, a reconverterem-se profissionalmente.
Sabemos que não são poucos os exemplos de países que adoptaram leis apenas no papel, que não são aplicadas na prática. Não se pode dizer que seja esse o caso da Guiné — onde dez casos já foram julgados —, mas também não se pode dizer que a justiça está a fazer tudo o que deve, nomeadamente perante as sentenças pouco exemplares que tem aplicado.
A excessiva proximidade entre as autoridades e as comunidades também tem dificultado uma intervenção mais musculada. Afinal, na Guiné toda a gente se conhece e não raramente são até da mesma família.
Também os políticos mantêm o silêncio, na generalidade abstendo-se de comentarem o assunto e mais ainda de combaterem activamente a prática. Todos os votos contam e acreditam — provavelmente com razão — que perderão uns quantos se se referirem a um assunto considerado “privado”.
Por tudo isto, é de louvar o esforço continuado e persistente das organizações da sociedade civil guineense, que nunca abandonaram o assunto. É que agora podem reclamar vitória. Não total, mas sem dúvida uma vitória.
Prefiro sempre ver o copo meio cheio do que meio vazio. Muita coisa já mudou. Vamos lá mudar o resto. Nô pintcha, Guiné-Bissau! Nô sta djuntu!
P.s.: Deixo aqui um agradecimento ao meu camarada Mussá Baldé, com quem tive o privilégio de fazer este trabalho, numa experiência de aprendizagem mútua, rara entre dois continentes tão próximos e tão distantes. As nossas muitas e saudáveis diferenças nunca nos desviaram da rota traçada: perguntar, perguntar e perguntar — para tentar perceber e fazer o mais abrangente retrato possível de um tema complexo. Sem preconceitos, mas também sem falsas neutralidades. O jornalismo deve testemunhar, sem abdicar de denunciar as violações de direitos humanos, ao serviço da transformação social.