Bill Gates adora esta sanita
Foi desenhada para ser usada em países onde não existem redes de água canalizada, saneamento ou energia eléctrica. Para além disso, esta sanita transforma urina em água potável e fezes em cinzas, que podem ser usadas como fertilizante. O desafio de reinventar a sanita foi lançado por Bill Gates e esta é a proposta da Universidade de Cranfield, no Reino Unido. O engenheiro português Pedro Talaia deu uma ajuda.
Há quase dois anos que Pedro Talaia, engenheiro mecânico na área de mecatrónica e investigador na Universidade de Cranfield, no Reino Unido, trabalha numa sanita inovadora. Afinal, há mais de dois séculos que a sanita tal como a conhecemos não muda, mas, apesar da longevidade, ainda é uma solução que não chega a todas as partes do mundo — especialmente aos sítios onde não há rede de esgotos nem água canalizada.
Talaia faz parte de uma equipa multidisciplinar que criou um protótipo funcional de uma sanita que não depende nem de uma rede de saneamento nem de electricidade. Esta invenção é uma das respostas da comunidade científica ao desafio lançado em Setembro de 2012 pela Fundação Bill e Melinda Gates.
O protótipo da Universidade de Cranfield, baptizado “sanita de nanomembrana”, foi uma de entre 20 soluções apresentadas pelo próprio Bill Gates durante uma cimeira dedicada ao tema do saneamento, que decorreu entre 8 e 9 de Novembro, em Pequim, na China. Estes 20 projectos de retrete são o culminar de sete anos de trabalho de centros de investigação, universidades e empresas.
Mas o que faz ser esta sanita tão especial? Quando olhamos de frente, não é muito diferente da sanita convencional: tem uma bacia, um assento e uma tampa. É na parte de baixo e de trás que acontece a “magia”.
“A parte de trás é a de processamento e a que vai garantir uma grande capacidade de higienização”, explica Pedro Talaia ao P2, em conversa por telefone.
O engenheiro lembra que não pode revelar “os segredos” que estão na base de todo o mecanismo por serem propriedade intelectual da universidade, mas levanta um pouco o véu sobre o que se passa no interior do “centro de processamento” desta sanita inovadora.
“Na parte da frente, temos um tanque dividido em dois: a parte tradicional e por baixo uma espécie de malga que roda”, descreve o investigador. Quando o utilizador quer despejar os dejectos, tudo o que tem de fazer é fechar o tampo da sanita — um mecanismo que funciona mesmo sem electricidade nem canalização. A bacia é limpa nesse movimento, graças a uma lâmina de silicone, independentemente da natureza dos resíduos — papel higiénico, pensos higiénicos, urina ou fezes.
Por baixo há um tanque para recolha, onde os resíduos líquidos permanecem até transbordar. Quando isso acontece, são conduzidos para uma nanomembrana, aquecidos e, pela condensação, transformar-se-ão em água — que em teoria deve ser potável.
Os sólidos ficam na zona traseira da sanita, para onde são transportados através de um parafuso de Arquimedes — um mecanismo usado para conduzir materiais entre dois pontos com elevações diferentes. Neste caso, seguem do fundo da retrete para a parte traseira, onde é feita uma pré-secagem dos materiais que a seguir serão incinerados. “Há um pequeno incinerador por trás, e a energia que captamos desse pequeno incinerador será suficiente para auxiliar os sistemas de secagem e pré-aquecimento da urina para a membrana”, explica ainda o investigador.
No final, os dejectos passam a cinza, que pode ser usada como fertilizante, “tal e qual como acontece nas aldeias em Portugal onde as cinzas da lareira são usadas na horta”, lembra Pedro Talaia.
Próximo passo: industrialização
Esta solução já foi testada em Durban, na África do Sul, com o apoio da Universidade UKZN (University of KwaZulu-Natal). “Estive na equipa que deu apoio aos testes de campo deste protótipo”, recorda Talaia. O objectivo era recolher informação e sugestões que depois pudessem ser usadas para melhorar o protótipo que já existe. E o facto de haver testes de campo já é, por si, um bom sinal: “Quando se está a fazer testes de campo, quer dizer que se está a caminhar a passos largos para a industrialização”, explica, adiantando, contudo, que ainda não se pode “prometer datas”. O objectivo é “olhar para esta retrete como se fosse uma white appliance, como um electrodoméstico, um frigorífico ou uma máquina de lavar”, resume.
Foi o fundador da Microsoft que lançou o repto e avançou com uma soma de dinheiro que ultrapassou os 200 milhões de dólares para financiamento de ideias como a da Universidade de Cranfield. E, como todos os desafios, também este teve as suas regras. “A Fundação [Bill e Melinda Gates] apresentou uma série de pré-requisitos” para os projectos de retrete, conta Pedro Talaia. Por exemplo: estas sanitas “não podem depender de infra-estruturas locais de base e deverão ter o tamanho necessário para serem instaladas numa latrina ou dentro de uma casa”.
O constrangimento do tamanho tornará a solução mais inclusiva, pois ao ser instalada numa casa permite que crianças e mulheres usem a casa de banho durante a noite em segurança. Isto mesmo “em zonas onde existem ratos ou violações; onde não existe respeito perante menores e mulheres; ou mesmo onde, por questões sociais, não é admitido que as mulheres possam sair à noite para ir à casa de banho”.
A forma de usar também “não deve ser muito diferente de uma retrete convencional, tal como a que usamos em casa, numa estação de serviço ou mesmo num aeroporto”, continua o engenheiro. “O objectivo de um projecto como este, o desafio de reinventar a retrete é criar um sistema o mais compacto possível para resolver problemas de saneamento básico em países onde água canalizada, saneamento e mesmo energia são parcas ou mesmo completamente inexistentes.” É “extremamente complicado” implementar estas infra-estruturas em centros urbanos onde, na maioria das vezes, nunca existiram.
Essas redes são dados adquiridos nos países de nível quatro — isto é, os países europeus e da América do Norte – mas não existem numa grande parte de África, Ásia e “numa parte não desprezável da América Latina”, explica o engenheiro.
À falta de água canalizada e saneamento, juntam-se outros problemas: estas zonas são, por norma, densamente povoadas e ainda usam “a retrete antiga, um buraco”, descreve o investigador, originando dejectos a céu aberto e dificuldades na limpeza. Outro problema é o facto de estas sanitas estarem situadas, muitas vezes, em leito de cheias: “Quando um sistema destes está numa zona de leito de cheia, todos os dejectos são apanhados nas cheias. O Bangladesh é um bom exemplo”, aponta Pedro Talaia.
Mas desengane-se quem acha que esta solução só serve para países em desenvolvimento: “Incrivelmente, já fomos contactados pelo menos por um português que tem um monte no Alentejo, que achou a solução interessante e mais fácil do que usar uma retrete química.”
Um copo com cocó
Bill Gates, o mecenas desta iniciativa, está consciente de que isso é um problema de saúde pública. Em Pequim, apresentou esta sanita reinventada ao lado de um recipiente com fezes humanas com um propósito — o de ilustrar o perigo que podem constituir os dejectos não tratados. E exemplificou com números: dentro daquele recipiente cabiam “quase 200 mil milhões de rotavírus, 20 mil milhões de bactérias shigella e 100 mil ovos de larvas parasitárias”.
Todos os anos, mais de meio milhão de pessoas morrem por não terem saneamento básico — algo a que pelo menos 2,3 mil milhões de pessoas de todo o mundo ainda não têm acesso, de acordo com os números da Organização Mundial de Saúde (OMS) referentes a 2017. Um número inferior ao de há dez anos, quando o número de pessoas sem saneamento básico ascendia aos 2,6 mil milhões, mas ainda assim preocupante: a falta de saneamento é a principal causa de transmissão de doenças como a cólera, a diarreia e a disenteria, algumas das causas de morte evitáveis que mais matam por ano.
Sem uma rede de saneamento eficiente, os dejectos acabam, muitas vezes, na água de consumo e de rega de alimentos que, de acordo com os dados da OMS, acabam no prato de pelo menos 10% da população mundial.
Transformar esta realidade é um dos objectivos do milionário. “Há uma década, nunca achei que ia saber tanto sobre cocó”, admitiu Gates durante a apresentação. “E nunca pensei que a Melinda teria de me dizer para parar de falar sobre sanitas e material fecal à mesa de jantar.”