Crise reavivou preconceitos e deixou marcas na Europa
O diálogo Norte-Sul melhorou, à conta da recuperação económica, mas permanecem ainda sinais dessa tensão. Os anos de brasa podem voltar se as dificuldades regressarem ao quotidiano dos europeus, como prova a vaga de refugiados.
Após os anos da crise permanecem sinais da tensão que nesses duros tempos alimentou a incompreensão e a guerra verbal entre os europeus do norte rico e do sul endividado. Do Norte, vem a admiração pela presidência de Mário Centeno do Eurogrupo. Nessa condição, o ministro português tem instado a Itália a submeter a Bruxelas um novo Orçamento “em linha” com as regras orçamentais europeias, no que o Financial Times considerava, em Outubro, “uma notável inversão de papéis desde 2015”.
Depois do terceiro programa de resgate financeiro concluído em Agosto de 2017 e de oito anos de ajustamento doloroso da sua economia, a Grécia não desiste das indemnizações que exige à Alemanha pela devastação da II Guerra Mundial: Atenas voltou a exigir reparações , sinal de que o ressentimento, sob a forma da outra face da moeda da austeridade imposta, ainda permanece. Estes são os mais recentes episódios, e certamente não os derradeiros, da dicotomia de um sul preguiçoso a viver às custas dos laboriosos contribuintes do norte da Europa. E da retaliação pelos desmandos da história.
“Há um défice de democracia e tecnocracia em excesso na Europa, a divisão do Norte, que se apresenta como produtivo, e do Sul, de preguiçosos, foi evidente durante a crise, e agora há divisão leste/oeste, pelos refugiados”, comenta, ao PÚBLICO, André Freire, professor de Sociologia Política e de Políticas Públicas do Instituto Universitário de Lisboa, ISCTE. E resume numa frase a soma das duas condicionantes, défice democrático e pendor tecnocrático: “na Europa pode-se mudar de Governo, mas não de política.”
André Freire argumenta que as organizações europeias não têm pedigree democrático. “A própria Comissão Europeia tem uma legitimidade democrática limitada, indirecta, não eleita, que advém dos governos nacionais que, contudo, não são eleitos com um programa para a Europa”, sustenta. “A única instituição com legitimidade democrática é o Parlamento Europeu que não tem iniciativa legislativa, não forma Governo nem tem poder de censura sobre a Comissão, embora a partir do Tratado de Lisboa haja uma relação ténue entre o cabeça da lista mais votada e o presidente da Comissão”, insiste.
“Além das questões da democraticidade, existe uma certa cristalização dos dogmas neoliberais”, acusa. “À excepção da Grécia, as crises de Portugal e Espanha são o resultado de um problema da arquitectura europeia, anterior à crise”, defende. E exemplifica: "a Comissão Europeia fez guerra à solução governativa em Portugal [maioria parlamentar de PS, Bloco de Esquerda e PCP], e não fez mais porque, entretanto, apareceu o Brexit.”
Pelo que não é optimista. “O horizonte é sombrio, não vejo grandes mudanças, agora reconhecem que Portugal usou uma receita diferente mas o Eurogrupo funciona à margem dos tratados”, sublinha. Os populismos são, para o professor universitário, “como as dores para o organismo”, ou seja, um sintoma da doença. “Não é por acaso que na Europa os mais desprotegidos são os mais cépticos, porque são os perdedores”, sintetiza: “os social-democratas abandonaram de algum modo as classes baixas, falam para nichos eleitorais das classes médias e para as elites urbanas.”
Europa sem alternativas
A inevitabilidade dos sacrifícios e a ausência de alternativas foram lugares comuns do discurso dos países do norte da Europa desde 2010, que chamaram a si a prerrogativa de traçar o caminho para a saída da crise. “As pessoas estão a sofrer” em Portugal e em Espanha, reconhecia o primeiro-ministro finlandês, Jyrki Katainen, em 2013, durante um debate no Parlamento Europeu. “Mas qual é a alternativa?” E argumentava: “Se estes países pararem a consolidação [orçamental], quem lhes vai emprestar dinheiro?”
Postura semelhante era a de Wolfgang Schäuble que em 2016 se mostrava apreensivo quanto à constituição de um novo governo em Portugal suportado pelo acordo parlamentar à esquerda. “Portugal estava a ser bem-sucedido até entrar um novo Governo”, dizia, manifestando receio de que os compromissos não fossem respeitados. "Dou sobretudo atenção aos alemães que conhecem Portugal e, por isso, sabem do que falam", replicou o primeiro-ministro, António Costa, citando investimentos alemães em Portugal. Já antes, o ministro alemão instara Lisboa, em diversas ocasiões, a manter o rumo do governo anterior, aventando a possibilidade de um segundo resgate.
A imagem de uma Europa do sul irresponsável e tentada a viver acima das suas possibilidades voltou à baila em 2017 com as polémicas declarações do ministro das finanças holandês, Jeroen Dijsselbloem, ao Frankfurter Allgemeine Zeitung. “Não posso gastar o meu dinheiro todo em bebida e mulheres e depois disso ir pedir a vossa ajuda”, afirmava o então presidente do Eurogrupo, para justificar que quem pede a solidariedade do Norte “também tem deveres”.
Meses depois, já era o ministro das Finanças português, Mário Centeno, a receber elogios de Schäuble – numa referência de ironia corriqueira apelidou-o de “Ronaldo do Ecofin” – a posicionar-se para conquistar a presidência do Eurogrupo, o que se confirmaria no início de 2018.
A pressão finlandesa
O estereótipo de um sul preguiçoso a viver às custas dos contribuintes do norte da Europa emergiu no discurso de políticos e dos media, quando os resgates financeiros, primeiro da Grécia e depois da Irlanda, se sucederam em poucos meses em 2010.
O pedido de assistência financeira de Portugal anunciado pelo primeiro-ministro José Sócrates, a 6 de Abril de 2011, coincidiu com as últimas semanas de campanha para as eleições legislativas na Finlândia. A obrigatoriedade de aprovação no Parlamento de Helsínquia de qualquer pacote de ajuda aos países da zona Euro catapultou o tema para o centro do debate político e polarizou os discursos.
O aumento exponencial da base de apoio do partido de extrema-direita “Verdadeiros Finlandeses" era um sinal de que o verniz tinha estalado. “Aqui, no Norte, consideram-nos vacas que devem ser mungidas, mas temos algo a dizer e não vamos deitar fora dinheiro”, afirmava, numa reportagem da RTP, Timo Soini, líder do partido nacionalista, que fez campanha sob o slogan “Os finlandeses primeiro”. Ao conquistar, no escrutínio de 17 de abril de 2011, 19% dos votos e 39 assentos parlamentares, quadruplicando o número de deputados de 2007, o partido tornava-se a terceira força e confirmava a desconfiança de parte da sociedade finlandesa aos programas de ajustamento.
Ainda que os outros partidos rejeitassem uma “visão estereotipada” dos países do Sul, a ascensão da extrema-direita endureceu o discurso dos mais moderados face ao resgate a Portugal. As sondagens mostravam um país dividido: 47% dos finlandeses eram a favor, 39% estavam contra.
A “falta de solidariedade” da Finlândia motivou editoriais em jornais portugueses e culminou no vídeo “O que os finlandeses devem saber sobre Portugal”, apresentado pela Câmara de Cascais no final de uma conferência no Estoril, que ganhou lastro nas redes sociais. Não só se proclamava a antiguidade de Portugal e as suas conquistas, mas também o apoio dado por Portugal à Finlândia, em “roupa e cereais”, durante a guerra russo-finlandesa de 1939-40.
Uma resposta finlandesa surgiu nas redes sociais, mas a mensagem final era conciliatória: “Podíamos gozar com a difícil situação financeira em Portugal. Mas não o fazemos, porque o nosso coração e a nossa mente estão convosco”. A participação no pacote de ajuda a Portugal de 78 mil milhões de euros, acabaria por ser aprovada no Parlamento finlandês em Maio do mesmo ano.
“Gregos falidos” e a Alemanha dominadora
A ideia de que, nos países do Sul, se trabalhava pouco e se vivia à custa dos contribuintes do Norte, fora alimentada de forma agressiva, desde 2010, pelo tablóide de maior circulação na Alemanha. Os “gregos falidos” foram, durante o período dos resgates, o alvo do Bild que arrumava a questão de forma simples: de um lado, estavam os gregos “que bebem grandes quantidades de ouzo, vivem com reformas douradas ou cometem fraudes fiscais nas suas ilhas soalheiras”; do outro, “os alemães, ‘que se levantam todas as manhãs, trabalham o dia todo” e têm sido durante anos a vaca que fornece leite à Europa, devido aos impostos que pagam”, como resumia a AFP em 2015.
Na imprensa grega, a resposta passou por evocar o passado nazi da Alemanha e a sua ambição de dominar a Europa. A chanceler Ângela Merkel e o ministro das Finanças Wolfgang Schäuble, foram retratados em caricaturas envergando o uniforme nazi. O jornal Dimokratia chegou a publicar, em 2012, a manchete “Memorandum Macht Frei” para descrever as condições do empréstimo exigidas ao país. Uma sondagem divulgada no mesmo ano pela revista Epikaira revelava que 77% dos gregos acreditavam que a Alemanha pretendia instituir um IV Reich.
Guerra de palavras e números
A narrativa simplista de um sul preguiçoso contaminou o discurso de figuras centrais da política europeia. “Em países como a Grécia, Espanha e Portugal, as pessoas não devem poder ir para a reforma mais cedo do que na Alemanha”, defendia Merkel, na campanha eleitoral em Maio de 2011. “Todos temos de fazer um esforço, isso é importante, não podemos ter a mesma moeda, e uns terem muitas férias e outros poucas”, avisava.
“A chanceler deu a entender que os alemães estão a financiar uma espécie de prosperidade fácil nestes países”, analisava a Der Spiegel, reconhecendo que se isto não era novo na substância, “o tom certamente é”.
Em Portugal, o confronto levou a que, no final de 2012, Marcelo Rebelo de Sousa, então comentador televisivo, divulgasse um vídeo, realizado em parceria com o social-democrata Rodrigo Moita de Deus, que procurava desfazer junto da população alemã, antes da visita da chanceler a Portugal, alguns mitos sobre os portugueses e a economia nacional. No vídeo, cuja exibição pública na Alemanha acabou por não ser permitida, mas que circulou nas redes sociais, realçavam-se os sacrifícios da população, faziam-se contas às relações comerciais entre os dois países e evidenciava-se que os portugueses trabalhavam mais horas do que os alemães, tinham menos férias e feriados e ganhavam, em média, metade.
Novamente era atacada a falta de solidariedade dos parceiros do Norte, recordando-se que Portugal não tinha contestado, em 1990, a decisão da Alemanha de declarar a caducidade da sua dívida externa ou exigidas sanções, quando em 2005, esta infringira os limites do défice. A face mais visível da tensão foi Wolfgang Schäuble, autor das declarações mais polémicas sobre os países intervencionados, afirmando que estes eram “um pouco invejosos” do sucesso da Alemanha, espoletando uma onda de acusações de arrogância e paternalismo.
A linha dura que adoptou nas negociações dos resgates deu azo a que os comentadores anunciassem o regresso da “questão alemã”. “Nós, os alemães, não queremos uma Europa alemã”, assegurava, no entanto, Wolfgang Schäuble num artigo de opinião, publicado no Guardian em Julho de 2013, em que admitia que o discurso público sobre a crise fora demasiadas vezes “dominado por recriminações mútuas e comentários populistas”. “Clichés e preconceitos nacionais, que acreditávamos estarem há muito ultrapassados, estão a levantar as suas feias cabeças novamente”, escrevia.
O Grexit e a “humilhação” grega
A tensão ganhou um tom mais acintoso nos meses que anteciparam a cimeira, em Julho de 2015, na qual seria assinado novo acordo com a Grécia, nesta altura já liderado pelo Syriza de Alexis Tsipras. O recém-eleito governo helénico, que vinculara a um referendo o novo pacote de austeridade, já acusara Bruxelas de “terrorismo” e de “chantagem” sobre a população grega.
Às acusações de falta de solidariedade, juntavam-se denúncias de hipocrisia. As reparações de guerra pela ocupação nazi da Grécia durante a II Guerra Mundial foram estimadas pelo Ministério das Finanças helénico em 280 mil milhões de euros e exigidas oficialmente à Alemanha.
A maioria dos alemães já defendia a saída da Grécia do Euro e notícias de que Schäuble tinha proposto, no Eurogrupo, um Grexit temporário alimentaram a hostilidade. Um acordo acabou por ser atingido, mas caucionado por um reforço das medidas de austeridade e uma lista de garantias adicionais para satisfazer os credores, incluindo um polémico fundo de privatizações no valor de 50 mil milhões de euros.
Muitos comentadores, críticos do acordo, falaram em “humilhação” do povo grego, o economista norte-americano Paul Krugman apelidou-o de “pura vingança” e, nas redes sociais, o hashtag #This is a Coup (Isto é um golpe de Estado), ganhou força no Twitter. O mal-estar estendia-se à oposição interna como ficava patente nas palavras de Reinhard Bütikofer, eurodeputado alemão do Grupo dos Verdes: “a Alemanha cruel, ditatorial e feia volta a ter um rosto e esse é o de Schäuble”.
Contudo, a maioria dos alemães apoiava a forma como Merkel e o seu ministro das Finanças tinham conduzido as negociações, segundo uma sondagem, citada pelo Guardian. A leitura de dissensão era rejeitada pela Comissão: “Não penso que o povo grego tenha sido humilhado e também não acho que os outros europeus tenham perdido a face. Este é um típico entendimento europeu”, afirmava Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia.
Mas na Grécia, o acordo foi recebido com frustração e desalento e os jornais gregos davam voz ao sentimento de derrota: “Afundem o país, ordena Schäuble”, escrevia o Efimerida Ton Syndakton.