"Ser dono de um carro vai deixar de fazer sentido"
Mate Rimac, 30 anos, criou a única fábrica automóvel no país natal de Nicola Tesla. As grandes marcas aprendem com ele o futuro da mobilidade eléctrica.
Mate Rimac deixou crescer a barba quando começou a ter reuniões com os tubarões da indústria automóvel. “Tinha 21 e 23 anos e esta cara de bebé. A barba fazia-me parecer mais velho”, conta. Agora tem 30, continua a ter barba, mas “a situação mudou bastante”: todos os fabricantes conhecem a Rimac Automobili, e são os executivos das grandes marcas que se deslocam aos arredores de Zagreb para se reunirem com Mate. Alguns chamam-lhe “o Elon Musk europeu”.
“Quando eu comecei, a Tesla era a única novidade que valia a pena seguir. O que está a acontecer agora não teria sido possível sem eles. Há muitas críticas, mas quem as faz ignora o que eles conseguiram. É uma empresa relativamente pequena, nova na indústria, construiu uma rede global de supercarregadores e um carro que, seis anos depois do lançamento, ainda é, de longe, a referência para uma indústria gigantesca que movimenta milhares de milhões de dólares. O Model S entrou no mercado em 2012, a concorrência teve seis anos para se colocar ao mesmo nível e ainda não o conseguiu”, defende. Embora admire, e elogie, tudo o que a Tesla tem feito, não gosta de ser comparado a Musk.
A Forbes elegeu Mate Rimac um dos 30 empreendedores mais importantes com menos de 30 anos, em 2017. Na véspera da entrevista com o PÚBLICO, no início de Novembro, o MIT pô-lo numa lista dos 35 empresários com menos de 35 anos para acompanhar com atenção. É certamente um inovador: criou a primeira fábrica automóvel na Croácia. E fornece propulsores eléctricos e baterias aos grandes fabricantes actuais. Não tem uma bola de cristal que adivinhe o futuro, mas tem uma visão clara do presente: muitos incumbentes do sector “estão de cabeça perdida”. “É uma das maiores indústrias do planeta e há muitos fabricantes que têm muito a perder, porque o modelo de negócio está em risco”, sustenta.
“A electrificação não é uma grande viragem”, continua. “A grande alteração será na mobilidade. Para os consumidores, [o motor eléctrico] é uma mudança pequena, passam a recarregar o carro em casa ou num posto em vez de abastecer o depósito com combustível fóssil. O que vai mudar é a relação que temos com o carro. A compra é feita a pensar em necessidades, mas é feita segundo crenças. Porque o carro está parado 97% do tempo. É um desperdício de espaço, de material, de recursos. No futuro, vamos deixar de os comprar, vamos usá-los on demand, será um objecto sem condutor, eléctrico, e isso sim será realmente uma grande mudança”, argumenta. “A eficiência de frotas inteligentes, com carros conectados e sem condutor é gigantesca. Pode ser até 80% mais barato do que o recurso a um táxi, 70% mais barato do que um Uber e 50% mais barato do que o uso de carro próprio. Isto sim será a força motriz da mudança”, defende.
Há outros factores económicos. “Estima-se que os acidentes rodoviários têm um impacto negativo de 8% do PIB nos EUA”. Em Portugal, também já se fez esta conta: a sinistralidade rodoviária “custa” 1,2% do PIB português, segundo números divulgados a 18 de Novembro pelo Governo.
Mate continua: “A congestão rodoviária são 50 mil milhões de horas por ano, nos EUA - equivale a 9% do PIB nos EUA. Somando as duas parcelas, as ineficiências rodoviárias custam 17% do PIB aos EUA, com os carros de hoje. A mudança é inevitável.”
O automóvel próprio é o transporte mais usado também em Portugal, onde se passa mais de uma hora ao volante todos os dias (em Lisboa e no Porto) e se gasta entre 30 e 100 euros por mês em combustível. Para Mate, “a tecnologia ainda não está preparada, mas a indústria tem-se aproximado do ponto de inflexão e a legislação também acabará por surgir e o consumidor terá de se adaptar”. E a questão da autonomia dos carros eléctricos é uma “falsa questão” porque “uma autonomia de 20 km cobriria 95% das necessidades”. O problema é que depois compramos carros para os outros 5% dos casos. “Um erro.”
“A minha solução é uma nova mobilidade. Baseado nos teus dados, empresas como o Google são capazes de saber quantas das tuas viagens são de dez km, de 20 e de 600 km. E eles terão 80% de carros que cobrirão as tuas necessidades diárias, terão 10% de carros para essas viagens longas 10% de carros de dez lugares, para quando te apetecer sair com nove amigos. Na nova mobilidade, ninguém vai ser dono de um carro nem será obrigado a aprender a conduzir. Vais passar a ter um carro no momento em que precisas, ajustado ao propósito, será muito mais barato. Deixará de fazer sentido ser dono de um carro”, insiste.
O que vai acontecer à indústria? Mate acredita que alguns fabricantes tornar-se-ão prestadores de serviço. “Actualmente, os fabricantes vendem ao concessionário, que vende ao consumidor. No futuro vamos passar a ter fornecedores de inteligência artificial, já temos as empresas de partilha de viagens, o Google poderá vir a ser o dono dos carros, a Uber não tem carros, mas poderá vir a ter quando os condutores forem dispensáveis. É um cenário muito complexo. A única certeza é que será um grande abanão na indústria, porque as fábricas vão saber quem são os clientes e o que fazem com o carro. O poder passará da Alemanha e de Detroit para Silicon Valley”.
No início, era um BMW E30
Ao contrário de Musk, que meteu na SpaceX e na Tesla parte da fortuna que ganhou com a venda da PayPal, Mate Rimac começou sem dinheiro, em casa, por gosto. “Tinha 20 quando construí o meu primeiro carro na garagem do meu pai”, recorda. Aos 17, ganhara uma competição internacional de inventores, com uma luva que funcionava como teclado e rato de computador.
“Sempre mexi em coisas electrónicas e sempre fui louco por carros. Queria juntar essas duas paixões”, recorda, numa entrevista feita horas antes de subir a um dos palcos da Web Summit, em Lisboa.
Antes dos 18, já era dono de patentes. Aos 18, comprou o primeiro carro, um BMW Série 3 E30 (1984). “Estava todo enferrujado, era um chaço.”
O objectivo era recuperá-lo e participar em corridas. Mas sempre que saía para a pista, algo corria mal. Numa ocasião, o motor pegou fogo. “Sendo croata, lia muitas coisas sobre Nicola Tesla [que era sérvio mas nasceu em território que hoje pertence à Croácia] e o motor eléctrico dele. Convenci-me que seria a melhor solução e decidi converter o BMW para mostrar como carros eléctricos podem ser empolgantes e interessantes, além de mais rápidos”.
Voltou às pistas e provou ter razão. “No início, os resultados foram péssimos. Imaginem: um carro construído na minha garagem, havia sempre qualquer coisa que falhava - ou era o motor que ardia ou eram as baterias. Mas nunca desisti e fui tentando melhorar de corrida para corrida”. Em 2010, chegou a primeira vitória. Em 2011, bateu cinco recordes da Federação Internacional do Automóvel e do Guinness, para a maior velocidade e aceleração de carros eléctricos. Não era apenas um hobby. “Queria fazer um negócio com isto”, conta ao PÚBLICO.
Nesse mesmo ano, apresentou-se no salão do automóvel de Frankfurt – para onde a família emigrara nos anos 90, fugindo à guerra na ex-Jugoslávia. Era um novato. Tinha para mostrar o primeiro carro eléctrico a sério, o Concept One, construído em 12 meses, por encomenda da família real de Abu Dhabi. A Croácia não tem indústria automóvel. Teve de construir tudo. Tudo mesmo. Mudou-se para a garagem de um amigo, que se juntou a ele neste projecto. Foram noites em branco, fins-de-semana a trabalhar, dormir no sofá. Quando bateu à porta de universidades, para pedir ajuda, deram-lhe um conselho: “quanto mais cedo desistires, menos pessoas arrastarás contigo.” Ele ignorou.
No entanto, Abu Dhabi, que ouvira falar do prodígio croata nos tempos em que inventou a tal luva, só pagaria o carro quando fosse entregue. Mate recebeu mais oito encomendas depois de Frankfurt, cada uma no valor de 1,2 milhões de dólares. O Concept One actual acelera dos zero aos 100 km/h em 2,5 segundos. Fazer descolar o negócio exigiu muita mais paciência.
O herdeiro de Nicola Tesla
A história deste empresário, que partilha com Nicola Tesla as origens balcânicas, a dedicação aos motores eléctricos e a paixão por inventar coisas, tem todos aqueles ingredientes típicos do mito do empreendedor: a família que fugiu à guerra; o rapaz que era gozado pelos colegas no recreio (tinha sotaque, porque nascera na Bósnia); o negócio que começou na garagem; e, como tantas vezes acontece, uma colecção de momentos em que o negócio esteve à beira do precipício.
Dias depois de se estrear em Frankfurt, Rimac negociava com investidores. Precisava de dinheiro e Abu Dhabi prometeu-lhe uma soma significativa. Mas, na recta final, exigiram-lhe que transferisse a produção. Porém, colocar a Croácia no mapa da indústria automóvel sempre fez parte do sonho dele. E por isso recusou. Pediu um empréstimo, dando como garantia tudo o que tinha. Agora tem uma fábrica com 200 engenheiros, 450 funcionários. Continua a ser a única do sector no país. O que, para empresários portugueses, também mostra que a falta de tamanho de um país e de um mercado não é necessariamente uma limitação.
Actualmente, tem em mãos a produção de 150 exemplares do C_Two, um novo supercarro desportivo capaz de atingir 415 km/h e que vai dos zero aos 100 km/h em 1,85 segundos. Preço de cada um: 1,84 milhões de euros. Mas o negócio fundamental da Rimac são as baterias e propulsores eléctricos. A tecnologia deles está em carros da Aston Martin, da Pinifarina, da Jaguar, da Porsche, que investiu 18,4 milhões na empresa, a troco de 10% do capital social da Rimac.
A empresa foi lucrativa durante cinco anos: em 2012, declarou lucros antes de impostos de 158 mil de euros; em 2016, foram 6,1 milhões de euros. Mas, em 2017, as contas voltaram ao vermelho. “Estamos numa fase de grandes investimentos, a construir uma nova unidade, a desenvolver um novo carro, mas a situação financeira de curto prazo não é a nossa preocupação”.
“A Renault, a Mercedes, a Seat são nossos clientes. Toda a indústria está à nossa procura”, afiança o fundador que, até agora, reuniu 60 milhões de investidores. Almeja levantar uma nova ronda até à Primavera de 2019. Objectivo: 100 milhões de euros. “Desisti de tudo por esta empresa”, sublinha. “Quando a Porsche quer fazer um híbrido, vem ter connosco e nós dizemos-lhes como se pode fazer.”
Tem havido momentos muito difíceis. Um dos piores foi Junho de 2017, quando um dos carros da Rimac foi testado no popular programa The Grand Tour, que a Amazon Prime produz com Jeremy Clarkson, Richard Hammon e James May. Num confronto com um Lamborghini Aventador S e um Honda Acura NSX, o Concept One que a empresa de Mate pôs nas mãos de Richard Hammon pulverizou a concorrência. “É mais rápido do que qualquer outro que conduzi na minha vida, por uma larga, larga margem”, diria Clarkson, que ficou para trás no Lamborghini e nunca foi adepto de carros eléctricos.
O problema é que, após as quatro voltas inicialmente combinadas (o programa foi gravado na Suíça), Hammond decidiu-se por uma volta final. Acabaria por despistar-se numa curva, a mais de 200 km/h. Partiu um joelho e o carro pegou fogo – devido à densidade das baterias, ardeu durante cinco dias. Apesar da boa prestação, o incêndio num carro eléctrico era má publicidade. O que deveria ser a glória mediática, ameaçava tornar-se num pesadelo financeiro.
A empresa acabou por sobreviver a este golpe, que poderia ter abortado as negociações que na altura decorriam com investidores. Mas tudo acabou bem – e a empresa vai continuar a crescer, acredita. “Esta é a altura das oportunidades, tivemos de aprender a dizer que não. Todos vêm ter connosco, barcos, camiões, aviões, aplicações aerospaciais, armazenamento energético, contentores. Tivemos de dizer que não porque fazer crescer uma empresa exige foco. E o nosso está nos nossos próprios carros eléctricos desportivos, na propulsão eléctrica de alta performance e nas baterias.”
Como diz o Financial Times, a peregrinação de executivos até à fábrica de Zagreb não parece ter afectado o ego de Mate Rimac, porque "tal como os condutores dos supercarros dele, é possível que Rimac esteja a subestimar o seu próprio poder".