Os genes dos outros

O anúncio de manipulação genética em embriões humanos, dando origem a gémeas que nasceram sem alguns genes que “deveriam ter” não surpreende ninguém. Mesmo que se venha a verificar que este caso em concreto não é exatamente como descrito, e se discuta se foram cumpridos todos os preceitos ético-legais, o fundamental é isto: a tecnologia existe, é muito útil em investigação, tem potencial biomédico inegável e, mesmo que não funcione na perfeição, será aplicada. Por quem? Por quem deixarem. Para quê? Por exemplo, para remover de um embrião genes patológicos que limitarão de forma drástica a qualidade de vida dos indivíduos portadores, como os que causam as doenças de Huntington, de Machado-Joseph, a paramiloidose (“doença dos pezinhos”). Ou, no caso em discussão, retirando um gene que ajuda à infeção pelo vírus HIV.

Mas se a tecnologia serve para isso, também poderá servir para alterar genes que influenciem a cor dos olhos, a massa muscular ou outras caraterísticas. Embora a sociedade tenha uma imagem errada sobre o que determina caraterísticas complexas como a inteligência ou o talento musical (spoiler alert: não sabemos quase nada), a verdade é que o desconhecimento nunca impediu a venda de expectativas, um mercado que qualquer progenitor sabe ser infindável. E é muito curioso notar que o sistema usado para alterar genomas (CRISPR-Cas9) é empregue por bactérias para combater potenciais infeções, uma espécie de sistema imunitário microbiano. Na altura em que foi caraterizado só interessava a especialistas, e ninguém quis muito saber, até que se tornou óbvio o seu potencial biotecnológico. Lembrem-se disso da próxima vez que alguém disser que a “investigação básica não serve para nada” (e não deve ser financiada), porque o que o que interessa é só a “investigação aplicada”. Sem os investigadores “básicos” não tínhamos acesso a esta poderosa ferramenta; para o bem e para o mal.

Um ponto crucial nesta discussão, e uma das mensagens mais negligenciadas em ciência, é que, se os mecanismos tendem a ser universais, a aplicação da tecnologia que deles resulta não é. Basta ver como diferentes países numa mesma Comunidade Europeia encaram procedimentos tecnicamente simples como a doação de gâmetas ou a gestação de substituição. A ciência é a mesma, mas o que é ilegal e estigmatizado num sítio, será aceite noutro.

Podemos pensar local, mas qualquer ação eficaz tem mesmo de ser global para ter consequências; porque se há paraísos fiscais, também há infernos médico-científicos nos quais investigadores menos escrupulosos estarão disponíveis para vender esperança, seja com edição genética, seja com células estaminais, seja com o que quer de novo saia esta semana nas revistas Nature ou Science. Como sucede em muitos outros campos (dos extremismos aos refugiados), se não formos nós a discutir, de forma séria e pragmática, o que deve e pode ser feito teremos, por inação, exatamente o que merecemos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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