Cinco anos de conflito entre Moscovo e Kiev
Forças da Ucrânia combatem desde 2014 separatistas pró-russos no Leste do país, mas este é o primeiro conflito aberto entre as forças militares ucranianas e russas.
O último incidente, ao largo da costa da Crimeia, põe em evidência duas narrativas em choque permanente: para a Rússia, os navios ucranianos capturados no domingo estavam nas suas águas territoriais – o estreito de Kertch liga a península anexada à Rússia continental.
A Praça da Europa
Chamaram EuroMaidan, Praça da Europa, à Praça da Independência e ocuparam-na durante três meses, com milhares de pessoas acampadas desafiando as temperaturas negativas e a neve. A exigência começou por ser uma: o recuo do Governo na decisão de rejeitar o acordo de associação comercial com a União Europeia (em detrimento da entrada na união aduaneira com a Rússia), a 21 de Novembro de 2013. Os primeiros protestos aconteceram de imediato e foram os maiores desde chamada Revolução Laranja, contra a influência russa no país, em 2004.
A Praça da Independência foi ocupada em Dezembro; em simultâneo, ergueram-se barricadas diante da sede do Governo e da autarquia, os primeiros alvos da polícia antimotim. O Presidente, Viktor Ianukovitch, demitiu o governo e fez aprovar uma amnistia, mas entretanto os manifestantes já pediam mais. A 18 de Fevereiro, no dia mais violento dos protestos (ao todo morreram mais de 80 pessoas), a polícia antimotim cercou e desmobilizou os manifestantes na Praça da Independência.
Ianukovitch e a carta a Putin
Enquanto a Maidan era desmantelada, milhares de manifestantes cercavam o Parlamento exigindo a saída do poder de Ianukovitch. Faltava pouco para o Presidente abandonar a capital, horas depois de ter assinado um acordo com os líderes da oposição que não satisfez as ruas. No dia seguinte, o Parlamento ucraniano destituía Ianukovitch e nomeava um chefe de Estado interino. Ao mesmo tempo, era libertada da prisão a antiga primeira-ministra, Iulia Timochenko.
Ianukovitch reapareceu na Rússia, onde deu uma conferência de imprensa para garantir que “nunca teve intenção de pedir uma intervenção militar à Rússia”. Três dias depois, o embaixador de Moscovo na ONU apresentava uma carta de Ianukovitch a pedir à Rússia uma intervenção militar na Ucrânia para defender “a população”. Quase em simultâneo, chegavam camiões cheios de soldados russos no ferry que liga a Crimeia e a Rússia.
“Como representante legitimamente eleito, considero que os acontecimentos em Kiev deixaram a Ucrânia à beira de uma guerra civil. Os direitos dos habitantes da Crimeia [perto de 60% dos seus dois milhões de habitantes são etnicamente russos] estão a ser postos em causa”, defendia, na missiva, o chefe de Estado deposto. No terreno, as autoridades pró-russas da península (que já gozava de uma autonomia especial) ameaçavam cortar o fornecimento de água e electricidade às bases militares que não se rendessem.
A anexação
Demorou pouco para que o parlamento regional da Crimeia aprovasse a independência da península em relação à Ucrânia e pedisse a Putin a anexação à Rússia. Passadas apenas duas semanas desde a entrada de forças russas, 95% dos habitantes votavam “sim” num referendo em que lhes foi perguntado se eram a favor “da reunificação da Crimeia com a Rússia como parte da Federação Russa”, uma consulta considerada ilegal por Kiev, Bruxelas e Washington. UE e EUA impunham então as primeiras de várias vagas de sanções a políticos russos.
A anexação já era um facto consumado, mas foi a 9 de Maio que um Putin triunfante chegou ao porto de Sebastopol, principal cidade da Crimeia. Depois de um desfile militar, discursou perante milhares de pessoas e gritos de “Viva a Rússia”. O ano de 2014, disse, “vai ficar na história russa como o ano em que as nações que aqui vivem decidiram com firmeza juntar-se à Rússia, afirmando a sua fidelidade para com a verdade histórica e a memória dos nossos antepassados”. Kiev denunciava uma “grosseira violação da soberania da Ucrânia” e a NATO repetia que considerava a “anexação da Crimeia pela Rússia ilegal e ilegítima”.
A Nova Rússia e o MH17
Entretanto, rebeldes apoiados pela Rússia tinham ocupado os principais edifícios governamentais das cidades de Donetsk (quinta maior da Ucrânia) e Lugansk – em conjunto com a Crimeia, são estas regiões do Leste da Ucrânia, russófonas também, que formam o que Putin chamou de “Nova Rússia”. O Presidente russo admitia pela primeira vez ter enviado tropas para a Crimeia antes da anexação, afirmando o seu direito de usar a força no Leste ucraniano, “Sudeste russo”. A 12 de Maio, os líderes separatistas das autoproclamadas repúblicas populares de Donetsk e de Lugansk declaravam a independência e pediam a integração na Federação Russa.
Em Julho de 2014, Kiev e os separatistas acusavam-se mutuamente da queda do Boeing 777 da Malaysia Airlines no Leste da Ucrânia, com 298 pessoas a bordo – a maioria dos passageiros eram holandeses. Já este ano, uma equipa internacional de investigadores concluiu que o míssil que abateu o voo MH17 foi disparado por um sistema antiaéreo que pertencia a uma brigada do Exército russo e tinha sido cedido aos rebeldes.
Os confrontos com o Exército ucraniano nunca mais pararam – fizeram 10 mil mortos – mas tornaram-se raros nos últimos meses. A excepção foi a explosão no fim de Agosto que matou o líder separatista de Donetsk, Aleksandr Zakharchenko.
Acordos de Minsk
Nunca totalmente cumpridos, os Acordos de Minsk, promovidos principalmente pelos governos da Alemanha e de França, foram assinados em Fevereiro de 2015. O memorando em 13 pontos incluía o respeito pela integridade territorial e a soberania da Ucrânia; a necessidade de criar um estatuto diferente para o território conquistado pelos rebeldes pró-russos (províncias de Donetsk e Lugansk), uma troca de prisioneiros entre as duas partes e, acima de tudo, um cessar-fogo incondicional. Duas semanas depois chegavam as primeiras 24h sem disparos e começava a fazer-se recuar algum armamento pesado. Realizaram-se ainda trocas de presos, mas grande parte do que foi acordado ficou por cumprir.
Disputas navais
As disputas entre a Ucrânia e a Rússia sobre o controlo do mar de Azov e o estreito de Kertch, que liga Azov ao mar Negro, são antigas. Depois de um pico de tensões em 2003, no primeiro mandato de Putin como Presidente da Rússia, foi assinado um tratado bilateral. Segundo esse documento, os dois países podem usar livremente o estreito e o mar de Azov para a navegação comercial, tendo a obrigação de notificar o outro quando em causa estiver a passagem de um navio militar – no domingo, Kiev diz que avisou os russos da passagem dos seus navios; Moscovo desmente.
Desde que anexou a Crimeia, a Rússia controla as duas margens do estreito e passou a considerar como suas as águas territoriais ucranianas em redor da península do mar Negro – ainda a semana passada o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Grigori Karasin, defendeu que a Rússia “tem direito a pôr em prática a sua soberania” sobre o estreito de Kertch desde Março de 2014.
Há meses que Kiev acusa Moscovo de tentar impor um bloqueio aos portos ucranianos no mar de Azov, detendo para revista os navios que partem e chegam aos portos de Mariupol e Berdiansk, fundamentais para o comércio ucraniano (as revistas começaram depois de Kiev ter detido um navio de pesca da Crimeia). A Ucrânia diz que entre exportações e importações a actividade nestes portos caiu 30% desde o início deste “assédio” russo – para além disso, a ponte construída unilateralmente pela Rússia no estreito é demasiado baixa para alguns navios, o que prejudica ainda mais o comércio. Foi em Maio que Putin inaugurou a ponte que liga a península da Crimeia à Rússia continental.
Os riscos de uma resposta militar ucraniana a quaisquer acções russas são demasiados – Moscovo mantém a sua Frota do Mar Negro em Sebastopol, a principal cidade da Crimeia, ao abrigo de um polémico acordo assinado em 1997. Em princípio, o acordo terminaria em 2017, mas em 2010 o Presidente Ianukovitch aceitou que a frota fique mais 25 anos em troca de gás russo mais barato.