Dos Açores à Rússia, a volta ao mundo nas ficções do real
Uma competição de primeira água no Porto/Post/Doc.
E, chegados a Novembro, na sequência da presença cada vez mais significativa dos “cinemas do real” nos festivais de categoria A como Berlim, Cannes ou Locarno, depois do panorama exaustivo do Doclisboa, como é possível que a competição internacional do Porto/Post/Doc ainda nos traga surpresas e grandes filmes? Não estamos apenas a ser retóricos; se é verdade que o documentário é hoje um dos territórios mais fervilhantes do cinema moderno, a equipa de programação do ainda jovem festival portuense continua a encontrar pérolas a cada canto, mesmo que isso implique entrar pelos terrenos esquivos das “ficções do real”. A Family Tour, de Ying Liang (Trindade, dia 26, 18h45; e Rivoli, dia 28, 18h), é um exemplo disso: é uma narrativa que ficciona a experiência do seu realizador, exilado em Hong Kong depois da perseguição de que foi alvo por parte das autoridades chinesas, e o reencontro possível com a família que ficou para trás.
É um dos 14 filmes escalados para a maior competição do festival até agora — o que se deve, segundo a organização, pela vontade de ter duas longas portuguesas a concurso. Que são dois filmes frágeis, delicados. Um já o conhecemos de Locarno: Sobre Tudo, Sobre Nada, diário de uma década na vida de Dídio Pestana, engenheiro de som, músico, viajante (Trindade, dia 28, 21h45; e Rivoli, dia 30, 16h). O outro é uma estreia — Hálito Azul, a mais recente aventura de Rodrigo Areias, aqui explorando a povoação açoriana de Ribeira Quente inspirado por Raul Brandão (Trindade, dia 25, 21h45; e Rivoli, dia 29, 16h). A fragilidade do filme de Pestana vem do olhar a nu sobre uma década da sua vida; a de Hálito Azul vem da indefinição do projecto, na sua essência um documentário sobre a Ribeira Quente com “interferências” narrativas, mais conseguido na vertente documental do quotidiano insular, menos convincente nas incrustações encenadas.
É também isso que o americano Robert Greene atinge num dos melhores títulos da competição e, diríamos mesmo, do ano cinematográfico. Depois de Kate Plays Christine, premiado pelo IndieLisboa em 2016, Bisbee ‘17 (Trindade, dia 25, 18h45, e Rivoli, dia 27, 18h) prolonga o interesse de Greene pelas fronteiras esquivas entre o real e o fabricado. Em 1917, a cidade mineira de Bisbee, no Arizona, foi local da deportação de um milhar de mineiros, em greve pela melhoria das suas condições de vida e de trabalho. Cem anos depois, com a mina já fechada, uma comissão de residentes decide marcar o centenário do evento. Acompanhando a preparação das comemorações e registando as reconstituições históricas, Bisbee ‘17 concebe-se como uma meditação à volta da noção de comunidade por relação com o seu contexto social — a família que descobre que teve os dois irmãos patriarcas de lados opostos da barricada, os registos que revelam como a maioria dos mineiros deportados era imigrante, uma América que não nasceu com Trump mas já existia em 1917.
São vários os filmes da competição que tocam nas questões da imigração e da comunidade. O brasileiro Karim Ainouz trata-a em Central Airport (Trindade, dia 27, 21h45; e Rivoli, dia 29, 18h): o aeroporto berlinense de Tempelhof, por onde passaram Hitler e a ponte aérea de Berlim, é hoje um centro de acolhimento para refugiados, comunidade à parte dentro de uma comunidade. Em Obscuro Barroco (Trindade, dia 25, 17h; e Rivoli, dia 29, 14h30), a grega Evangelia Kranioti percorre o Rio de Janeiro através dos olhos da artista e activista transgénero Luana Muniz (falecida após a rodagem do filme) e das palavras de Clarice Lispector, numa exploração das comunidades marginais através da capacidade de reinvenção e luta dos cariocas. E o galego Eloy Domínguez Serén foi a um campo de refugiados no deserto do Saara filmar Hamada (Trindade, dia 25, 15h; e Rivoli, dia 1, 16h): o quotidiano de três jovens sarauis presos no meio de nada. Filmar a vida num campo de refugiados pode rapidamente cair num retrato bem-intencionado mas miserabilista ou no panfleto activista; Serén não cai em nenhuma dessas armadilhas, mesmo que não escamoteie a pobreza a que os sarauis foram condenados pelo seu estatuto quase apátrida. Hamada constrói-se à volta de uma coisa tão quotidiana como um carro, símbolo de uma liberdade que os jovens teimam em procurar, aprendendo a guiar, arranjando carros, procurando emprego ou tentando emigrar.
Numa competição tão inesgotável, ter-se-á que falar de Putin’s Witnesses (Rivoli, dia 26, 18h; e Trindade, dia 30, 21h45)., Vitaly Mansky, exilado na Letónia desde 2014, mergulha nos seus arquivos para redescobrir imagens do ano 2000 — ano I da era Putin. E que imagens: filmadas durante um período em que Mansky fez perfis televisivos de Yeltsin, Gorbachev e Putin, só agora mostradas revelam o momento em que a Rússia mudou sem que o notássemos, com algo de profético do que aconteceria nos 20 anos entretanto decorridos. Putin’s Witnesses é também um mea culpa de Mansky através de uma voz off que questiona a sua convicção daqueles tempos, testemunha cujo estatuto neutral de observador se transformou em cúmplice da ascensão do presidente russo.
Se Vitaly Mansky fala de 2000, Sergei Loznitsa fala de 2018 e das consequências da ascensão de Putin em Donbass (Rivoli, dia 26, 21h30; e Trindade, dia 29, 18h45), filme-gémeo da via sacra Uma Mulher Doce mas também da sua obra-prima documental Austerlitz. Inspirado pelas “repúblicas populares” pró-russas da Crimeia e pela manipulação mediática russa, é uma sucessão progressivamente mais desconfortável de episódios aparentemente desligados entre si, de um absurdo desesperado tornado em humor escarninho e negríssimo, entre Roy Andersson e Franz Kafka. É um retrato de uma realidade desintegrada, onde tudo é verdadeiro e falso e se torna impossível fazer a distinção, com o virtuosismo formal e a lucidez alucinada que reconhecemos ao ucraniano. É coisa para deixar o espectador sem fé na humanidade, mas é também o filme ideal para falar de “ficções do real” num tempo em que o real parece, ele próprio, uma ficção.