O Sado encontrou as suas guardiãs

Cidália Nunes é pescadora desde que se recorda. Quase nasceu no mar, mas foi pela mão de uma bióloga marinha que começou a retribuir ao mar o tanto que ele lhe dá. O estuário encontrou as suas guardiãs.

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Cândido Nunes e Joaquim Bravo são pescadores. Apesar de não fazerem parte do prjecto, ajudam sempre que podem na limpeza do estuário
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Os quilos de redes têm de ser cortadas com facas. São depois postas em sacos
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Cidália vive na aldeia de Possanco, a uns quilómetros da Carrasqueira
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Os campos fazem fronteira com o porto
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Os armazéns no porto palafítico são alguns dos locais usados para guardar redes e outros utensílios da faina
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O lixo deixado pelos pescadores acumula-se nas margens e torna-se visível quando as marés vazam
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Cidália Nunes tem 62 anos e é pescadora desde que se lembra
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Cidália é uma das guardiãs que protegem o estuário
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As redes deixadas por pescadores ficam presas ao lodo e não se decompõem

É pela manhã bem cedo que se ganha o dia no mar. Mas, na Carrasqueira, a faina está parada e as redes recolhidas no interior das embarcações e dos armazéns do cais, construído sobre estacas de madeira, esperam ser devolvidas à água. A maré baixa desvela os cascos das bateiras e barcas varadas no estuário do Sado. Mas nem por isso o corrupio é menor naquele porto.

Ao longe, ecoa o tilintar de um martelo contra a madeira de um barco. Cidália Nunes, 62 anos, é pescadora desde que se lembra. Aguarda com a filha, Helena, a oportunidade de arregaçar as mangas ao trabalho que, naquele dia, é diferente do que costuma fazer na água. “Eu sirvo-me do mar, mas também lhe retribuo alguma coisa”, atira.

É nas marés que “vazam bem” que as guardiãs do mar entram em acção. Quando se vai a água, o lixo envolto em lodo emerge no cais e conta a jornada dos pescadores. Cidália é uma das mulheres sadinas que, duas ou três vezes por semana, devolve ao oceano algo de si. E chama a comunidade a participar, mostrando como se pode cuidar das pradarias marinhas (a vegetação que se encontra debaixo de água).


“Nós somos pescadores, mas nunca olhamos para as margens nem vemos a sujidade que se acumula”, considera. As guardiãs do mar, como ficaram conhecidas, são fruto de um projecto levado a cabo pela Ocean Alive, a primeira associação em Portugal dedicada à protecção do oceano.

A bióloga marinha Raquel Gaspar, de 49 anos, é um dos rostos da cooperativa e do projecto. Há muito que se apaixonou pela região, mas cedo se apercebeu que teria de a proteger. A forma que encontrou de o fazer foi envolver as mulheres pescadoras no processo, através de programas de educação, de sensibilização e monitorização das pradarias marinhas.

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A iniciativa, que arrancou em 2016, pretende capacitar as pescadoras para serem guias marinhas em visitas de escolas ou de turistas, e serem agentes de sensibilização junto da população de pescadores e de locais que frequentam a zona.

Em tempos em que já não se traz tanto peixe para terra, esta é também uma forma de dar outra fonte de rendimento a estas mulheres. Segundo diz Raquel, em três anos, estas pescadoras irão receber, no total, cerca de 20 mil euros. No fundo, Raquel quer valorizar o conhecimento que estas mulheres, algumas desempregadas, têm sobre o mar.

Tal como acontece com Cidália, o objectivo é que elas sejam líderes de boas práticas nas suas comunidades. “As guardiãs têm dois tipos de compromisso com o projecto”, elucida a bióloga. “Há voluntárias que, basicamente, são simpatizantes e ajudam passivamente no dia-a-dia a transmitir boas práticas. Outras têm uma profissão no nosso programa”. Cidália é uma das guardiãs que recebe pelo seu trabalho na Ocean Alive.
Em breve será lançado um projecto-piloto com duas pescadoras da Carrasqueira, graças a um financiamento que conseguiram. “Vão ajudar-nos a mapear as zonas onde há pradarias para podermos avaliar o impacto do projecto”, explica Raquel.

"Eu nasci no mar”

Cidália e o mar pertencem um ao outro. À mesa de sua casa, na aldeia de Possanco, a uns quilómetros da Carrasqueira, a pescadora não esconde como veio ao mundo. Ao lume, aquece a água para cozer o peixe por si pescado. “Os meus pais trabalhavam no mar e a minha mãe estava grávida de mim e começou a sentir contracções no barco”. Ao regressar do mar, a mãe terá apenas tido tempo “de pôr os pés em casa” e de dar à luz a menina que um dia também seria filha do mar.

Cidália seguiu destino idêntico. Já grávida, e durante a faina nocturna, começou a sentir contracções por volta das 22h30. Os filhos nasceram-lhe praticamente no mar. “Foi voltar do mar e tê-los”, confessa.

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Sobre as guardiãs do mar diz que, há uns anos, nunca pensaria em juntar-se à campanha. Foi a filha Helena que a puxou. Quando está em acções de recolha de lixo vai encontrando de tudo. “Plásticos, vidros e de tudo um pouco”.

Passado uns tempos ganhou-lhe o gosto e já não quer outra coisa. “É um projecto que tem muito que se lhe diga. E muito cansativo. Às vezes encontramos pessoas que são um bocadinho avessas, e nessas alturas temos que trabalhar essas pessoas. Alguns já vão aceitando”. No fim, Cidália sente que realmente exerce um papel de mudança e consciencialização nas pessoas com quem se cruza.

Com o esforço, garante, “já se sente muita diferença. Muitas reconhecem o que está certo e errado e temos o gosto de ver a compreensão das pessoas e ver que tudo está a melhorar”, concluiu, não sem antes esboçar um sorriso.O marido, que também é pescador, não tem pudor em ajudar. Cândido Nunes, de 68 anos, corta redes de pesca ali deixadas nas margens do cais, por colegas de profissão, como se fossem manteiga. Ele e um amigo da família, Joaquim Bravo, de 58 anos, de facas em riste, enchem sacos do lixo com essas redes e todos os artefactos poluentes que vão encontrando.

A diferença faz-se no mar

Raquel transborda afecto pelo estuário e pela sua vida marinha. Ao caminhar no passadiço de madeira que tem como pano de fundo a Lisnave e a outra margem de Setúbal, inspira e contempla o ambiente em seu redor. Sente que é ali que tem de estar, ainda que as circunstâncias do seu trabalho nem sempre lhe permitam envolver-se em todas as etapas.

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Os programas de educação e sensibilização marinhas geram rendimento para a Ocean Alive, mas esse não é o único aspecto positivo que sai desta iniciativa. Tem-se assistido a uma transformação: “O que eu tenho visto é, sobretudo, o que elas transmitem às outras pescadoras”, admite Raquel Gaspar. De momento, existem 15 guardiãs em diferentes zonas do Estuário do Sado, mas o plano é alargar o número de pescadoras e a área de actuação.

“Numa próxima fase queremos actuar sobre outras ameaças marinhas”. As âncoras das embarcações, que destroem a vegetação marinha e a pesca destrutiva são prioridades para o futuro, mas para isso é necessário conseguir financiamento que sustente a execução das medidas.

Em 2017, Raquel recebeu o prémio Terre de Femmes, da Fundação Yves Rocher, que todos os anos distingue mulheres com projectos na área do ambiente. O prémio permitiu-lhe avançar com as ideias, mas nada está assegurado. Para a bióloga, há que continuar a trabalhar sempre com vista a preservar um habitat tão fundamental como as pradarias marinhas.

Futuramente quer criar “mensageiros para os grandes valores das pradarias enquanto mitigadoras das alterações climáticas” envolvendo alunos e professores de vários níveis de instituições de ensino. Enquanto o projecto vai crescendo, as guardiãs do mar assumem o compromisso de limpar o estuário todos os meses. Das areias retiram-se metais e plásticos, vidros esquecidos e detritos libertados por turistas e locais que ainda não estão consciencializados para importância de cuidar do mar e do que está ao seu redor.

“O tempo passa para trás das nossas costas”, afirma Cidália perspicazmente mas, por outro lado, o seu dever para com o mar está a ser cumprido. Do tanto que ele lhe dá, Cidália ensina as gentes a tratá-lo um pouco melhor.

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