Ciúmes, desemprego, conflitos. Telejornais tendem a “justificar” crimes de violência doméstica
ERC alerta para a necessidade de as notícias enquadrarem violência doméstica na esfera da desigualdade de género. As vítimas tendem a desaparecer nos casos mais mediáticos. E foco nos homicídios pode limitar percepção pública do problema, diz o regulador.
Há uma tendência no jornalismo televisivo para “justificar” os crimes de violência doméstica, procurando as “possíveis causas” para que eles aconteçam, havendo ainda notícias que levam mesmo a crer que a responsabilidade da agressão é da própria vítima. Isto é potenciado pela contextualização pobre deste crime enquanto problema social, o que pode limitar a percepção pública e perpetuar preconceitos sobre vítimas e agressores, concluiu a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) no estudo Representações da Violência Doméstica nos Telejornais de Horário Nobre, que é apresentado nesta segunda-feira.
A análise a 432 peças transmitidas na RTP 1, RTP 2, SIC e TVI, entre 2013 e 2015, demonstrou que 41,7% das notícias apresentam os “motivos” para a ocorrência do crime ou a tentativa de os aferir. O “fim de uma relação” e a existência de “um relacionamento conflituoso” aparecem em 65% dessas peças que procuram as razões da violência. “Ainda que em menor percentagem, os jornalistas relatam, com base nos testemunhos de familiares, amigos, vizinhos e, por vezes, das autoridades, a ‘natureza passional’, os ‘ciúmes’ e a ‘infidelidade’ na origem” da agressão.
É assim transmitida a ideia de que há justificação para este tipo de violência, diz Tânia Soares, directora do Departamento de Análise de Media da ERC e coordenadora do estudo.
São poucas as vezes — 18 em 375 peças nas quais é apresentada a vítima — em que é sugerida uma responsabilização da vítima pela agressão. Nestes casos, foram identificadas condutas susceptíveis de culpabilizar as vítimas — “bebia muito”, tinha outra relação amorosa, não se afastava do agressor.
Na base disto está a falta de contextualização da problemática da violência doméstica, diz a ERC. Dá-se o exemplo de uma notícia de 2015, que tinha a seguinte frase destacada: “Mulher fez queixa do marido, mas decidiu continuar em casa.”
“Explicar as dificuldades das vítimas quando tentam acabar a relação permitiria fazer uma abordagem mais correcta e evitaria falsas crenças ou mitos como ‘a mulher merece ser agredida’ porque não quis pôr um fim à violência”, refere o regulador. Há ainda, por vezes, notícias que associam a “violência doméstica a determinadas aspectos como a nacionalidade, profissão ou idade dos envolvidos, “que em nada contribuem para a compreensão do problema”, aponta Tânia Soares.
Esta busca do “como” e, sobretudo, do “porquê” do crime tem como consequência a simplificação de um fenómeno social complexo, que deve ser enquadrado na esfera da desigualdade de género. Citando o Manual Pluridisciplinar do Centro de Estudos Judiciários, a ERC sublinha que “a violência doméstica é resultado de um comportamento deliberado, através do qual um agente procura controlar outro, negando-lhe a liberdade a que tem direito”.
Por isso, ainda que o uso de álcool ou estupefacientes, por exemplo, possa facilitar situações de violência doméstica, “não é a sua causa” ao contrário do que “muitas vezes é referido nas notícias”. Além disso, este tipo de violência na intimidade atravessa vários grupos sociais e culturais, pelo que referir determinadas características “pode contribuir para o reforço de estereótipos”.
A ERC conclui ainda que apenas uma em cada três notícias enquadra e problematiza o tema, com estatísticas e explicações psicossociológicas (algo que aumentou entre 2013 e 2015, em especial nos canais públicos).
Mas a violência doméstica é muitas vezes tratada como qualquer outro crime violento. E não deve, diz a ERC, porque não é apenas a violência que está em causa, mas um problema social com origem no desequilíbrio das relações de poder entre homens e mulheres. Em 2017, por hora, foram registadas quase quatro denúncias em Portugal; 80% sobre mulheres, segundo o último Relatório Anual de Segurança Interna.
Dar voz às sobreviventes
É, por isso, diferente falar em “homicídio” ou em “homicídio em contexto de violência doméstica”, frisa Tânia Soares. Em mais de metade das peças, os jornalistas optaram por designações genéricas.
Uma abordagem mais ampla significa também dar voz às sobreviventes. A ERC quer que os jornalistas percebam que “podem tratar as mesmas matérias, mas de uma forma mais benéfica para a vítima”, diz Tânia Soares, divulgando serviços de apoio, incentivando a denúncia deste crime público.
O retrato das vítimas “é normalmente circunscrito ao medo das agressões e à dificuldade de sair do ciclo de violência”. E nos casos mais mediáticos – como os de Manuel “Palito” Baltazar e Oscar Pistorius – as vítimas “praticamente desaparecem” dando lugar ao protagonismo dos supostos agressores.
Destaque ainda para o tipo de violência doméstica que é mais mediatizado: quase 80% foram homicídios. Se é óbvio que, pela sua gravidade, o homicídio tem particular relevância jornalística, a ERC questiona se isso “não contribuirá para deformar a realidade, fazendo parecer que toda a violência doméstica se traduz em homicídio (incluindo as estatísticas divulgadas), negligenciando em simultâneo outras formas de violência na intimidade a que devemos estar igualmente atentos”. Ao omitir ou diminuir a presença destes relatos, pode-se estar a limitar a percepção pública do problema, acrescenta. Em particular dos maus tratos psíquicos ou físicos, o principal motivo de queixa, nesta área, à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima.