Serão poucas as mães que nunca desejaram que "os filhos tivessem um botão de desligar"
Parir? "Se os homens tivessem que passar por isto, há muito que a humanidade se teria extinguido", diz Carmen Garcia, enfermeira alentejana que escreveu um livro em que fala abertamente sobre o lado menos romântico da maternidade.
Cansada da “visão cor-de-rosa da maternidade” que predomina nas redes sociais, uma enfermeira com dois filhos pequenos aventurou-se, no início deste ano, a criar um blogue e uma página no Facebook em forma de desabafo, com uma grande dose de humor e num tom provocador. O blogue e a página foram conquistando seguidores e acabaram por desaguar no livro Os 10 Mandamentos de Uma Mãe Imperfeita (Ego), que Carmen Garcia lançou ontem. Nele, admite, sem pruridos, que não gostou de estar grávida, que tem muitas saudades de tomar um banho demorado, e que não se encheu “de um amor infinito mal viu” o primeiro filho após o parto.
Enfermeira de cuidados intensivos no Hospital de Évora, Carmen, 32 anos, ousou avançar por este terreno minado durante a gravidez de risco do segundo filho, quando começou a enjoar, digamos assim, a visão romantizada da maternidade que abunda nas redes sociais. “É que para onde quer que olhasse as mães tinham sempre um cabelo saudável, um bronzeado natural, viviam em casas decoradas por profissionais e passeavam pelo mundo com filhos vestidos a condizer. E eu, grávida do segundo filho no espaço de um ano e meio, sentia-me permanentemente cansada, não vestia outra coisa que não leggings com camisolas velhas, vivia numa casa sem um único cortinado e Armação de Pêra tinha sido o meu destino de férias mais tropical dos últimos tempos”, escreve.
Decidida a assumir frontalmente que “a maternidade também tem um lado negro”, ainda pensou no início que o blogue A Mãe Imperfeita iria funcionar como uma espécie de terapia e se limitaria a ser lido “pelo marido e pelas irmãs”. Surpreendentemente para ela, foi conquistando muitas mulheres. São agora “mais de vinte mil mães imperfeitas, mulheres que amam incondicionalmente os filhos, mas que não têm medo de dizer que ser mãe é uma tarefa hercúlea, que assumem que às vezes têm saudades da vida pré-maternidade e que aprenderam a viver com mais dúvidas do que certezas”, sintetiza.
A enfermeira está longe de ser a primeira mãe a desvendar em público o lado mais sombrio da maternidade. Nos últimos anos têm-se multiplicado blogues e páginas no Facebook deste tipo, como o Ser Supermãe É Uma Treta, só para dar um exemplo (porque haverá muitos outros). E, em matéria de livros, várias mulheres já se aventuraram antes neste domínio. Como Filipa Fonseca Silva que também começou a falar da experiência da maternidade tal como ela é, sem filtros, num blogue e, há três anos, publicou o livro Coisas Que Uma Mãe Descobre (e de Que Ninguém Fala), editado pela Bertrand, que desencadeou alguma polémica.
Também Sofia Anjos, que foi colunista da secção Life&Style do PÚBLICO, escreveu em 2015 um livro sobre o tema, o Difícil É Parir a Mãe. Sofia tinha desencadeado a fúria de algumas mulheres, como recordou na altura ao Observador, quando assinou uma crónica intitulada “As mães não se medem às mamadas”. É que, no reino das mães, a amamentação é um tema extremamente delicado.
“Brigada das mamas”
Carmen Garcia não poupa as mulheres que agrupa na “brigada das mamas” para lamentar a espécie de bullying que algumas mães que se imaginam perfeitas fazem às mães que se reconhecem muito imperfeitas e que amamentam durante poucos meses. “Os próprios pediatras não são fundamentalistas ao ponto de insistirem na amamentação quando esta já é um problema”, acentua.
“Fuja dos fundamentalismos” é, justamente, um dos “dez mandamentos” da obra inaugural da enfermeira. Exagero? Carmen desafia os leitores a visitar meia dúzia de grupos de Facebook de mães que, “em termos de terrorismo psicológico e técnicas intimidatórias, conseguem fazer tremer de inveja a rapaziada do Estado islâmico”. Em tempos, recorda, atreveu-se a confessar que por vezes dava ao filho mais velho papa instantânea. “Fui encostada às cordas por uma brigada de fanáticas.” E uma delas atirou-lhe: “Depois não se venha queixar para as redes sociais que o seu filho é diabético!”
A vida de mãe não tem sido fácil, admite. “Quando engravidamos, vamos um bocado iludidas, ao engano.” “[Mesmo] tentando sempre descomplicar, tenho chorado muitas vezes desde que o mais velho nasceu, [porque] me sinto cansada, porque estou farta, porque tenho demasiado sono...”, explica. “Estive e continuo a estar a milhas de distância do ar tranquilo e sapiente que ostentam as mães do Ruca desta vida”, suspira.
Antes de engravidar, também ela era, confessa, “toda cheia de certezas”. “Que filhos meus não haviam de ser largados em frente à televisão, que filhos meus não fariam aquelas birras de se atirarem para o chão enquanto gritavam e puxavam os cabelos, que filhos meus teriam hora certa para adormecer todos os dias...”
Se antes era “cheia de teorias sobre pedagogia e psicologia infantil”, hoje é “pelo que funciona”, remata a enfermeira, que admite que “leva o tablet para os restaurantes para o puto estar entretido” e poder “comer em paz e sossego”. “Devem existir muito poucas mães que nunca tenham desejado que os filhos tivessem um botão de desligar”, atira.
O fim do silêncio
Com muita polémica à mistura, o silêncio que tradicionalmente imperava sobre o “lado b” da maternidade acabou há algum tempo e cada vez são mais as mulheres que dão a cara e se expõem em público. Em Espanha, um blogue popular é o Club de Malasmadres, um espaço de desabafo para muitas mulheres que podem queixar-se ali da dificuldade de conciliar a maternidade e a carreira profissional sem falhar em qualquer uma das frentes. São, como as próprias se definem, uma comunidade emocional de mães com poucas horas de sono, alérgicas a lamechices e empenhadas em destruir o mito da mãe perfeita.
“A vida é melhor com filhos. Agora, não me venham dizer que fica tudo melhor depois”, sintetiza Carmen, que ainda não regressou ao trabalho — o filho mais pequeno tem três meses —, mas já se cansou de estar permanentemente “em privação de sono”, de ter de sair à rua com “um cabelo sem corte” e de há quase dois anos não tomar “o pequeno-almoço sentada”.
Quanto aos mandamentos que prega no livro, começa por propor que se “discorde da expressão ‘estado de graça’” com que a gravidez costuma ser baptizada. A gravidez? Foi “um mal necessário”, diz. “Sentia-me cansada por causa da anemia, estive nauseada do primeiro ao último dia (...), as hormonas queimaram-me os circuitos, os odores corporais intensificaram-se, tive ciática e diabetes gestacional.”
Parir? “Se os homens tivessem que passar por isto, há muito que a humanidade se teria extinguido”, resmunga. Mesmo sendo um “acto de amor gigantesco”, parir é difícil e “não tem nada de purpurinas, corações ou unicórnios”, resume a enfermeira, cujo primeiro parto foi muito doloroso e complicado — de tal forma que o filho acabou por ficar surdo.
Agora, faz aquilo que gostava que tivessem feito com ela, antes de ficar grávida. Teria apreciado que a tivessem avisado para aquilo que realmente se ia passar a seguir. “Esqueçam o romance”, durmam tudo o que puderem na fase final da gravidez, chorem quanto tiverem vontade e sobretudo “peçam ajuda”, propõe. A “supermulher”, lembra, “é uma personagem de banda desenhada que está longe de existir na vida real”.