Violentos, os neandertais? Não mais do que nós

Para verificar se a imagem de humanos violentos que se lhes colou à pele correspondia à realidade, os neandertais foram submetidos a uma análise aos crânios. Passaram no teste da comparação com a nossa espécie naqueles tempos paleolíticos.

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Uma cena de caça dos neandertais Gleiver Prieto/Katerina Harvati

É mais uma machadada (salvo seja) num estereótipo que dura há mais de 160 anos, desde que os primeiros ossos de um neandertal foram descobertos no vale (Tal, em alemão) de Neander, perto de Düsseldorf, Alemanha. Depois de terem sido apresentados tantas vezes como criaturas rudes, os neandertais têm vindo aos poucos a ter o seu retrato traçado mais ao encontro de como terá sido na realidade este grupo de humanos. E é neste sentido que surge uma análise de comparação de lesões no crânio em neandertais e humanos modernos (a nossa espécie) seus contemporâneos. Afinal, tanto eles e como nós tínhamos nessa altura, entre há 80 mil e 20 mil anos, o período dos fósseis analisados, níveis semelhantes de ferimentos. O que contradiz a hipótese de que os neandertais tinham um estilo de vida mais violento do que os humanos modernos, uma ideia que seria evidenciada por taxas elevadas de traumatismos ósseos.

Os neandertais surgiram como um grupo de humanos há cerca de 400 mil anos na Europa e sempre viveram no continente euroasiático. Há cerca de 28 mil anos desapareceram para sempre como grupo humano, não sem antes – sabe-se agora graças ao avanço das técnicas de sequenciação genética, depois de um intenso debate científico centenário – se terem cruzado reprodutivamente com a nossa própria espécie, deixando-nos um bocadinho do seu ADN como herança genética. À Europa, a nossa espécie, saída de África, chegou há cerca de 45 mil anos. Um dos últimos locais onde os neandertais viveram foi na Península Ibérica. O seu desaparecimento continua a ser um mistério.

Viveu em grutas, cobria o corpo com peles, tinha verdadeiras estratégias de caça, inclusivamente de animais de grande porte, alimentando-se quase exclusivamente de carne, aceitava indivíduos menos capazes fisicamente no seio dos seus grupos, trabalhava a pedra de um modo eficiente e pensava na morte”, escreveu sobre o Homem de Neandertal Eugénia Cunha, antropóloga forense e especialista em evolução humana da Universidade de Coimbra, no livro de divulgação científica Como nos Tornámos Humanos, de 2010. A extinção destes seres “inegavelmente inteligentes”, estará relacionada com a nossa chegada ao Próximo Oriente e à Europa, nota Eugénia Cunha, mas o que aconteceu ao certo não está esclarecido.

Sexo masculino mais ferido

Para lá deste debate sobre as razões da sua extinção, a forma como os neandertais foram tantas vezes retratados nem sempre lhes foi muito lisonjeira. Eram vistos como rudes e violentos. Mas, entretanto, também já foram representados no extremo oposto – dizendo-se que, se usassem um fato, uma gravata e um chapéu, passariam despercebidos no metro de Nova Iorque. Muitas das investigações que têm surgido indicam que eram humanos sofisticados e parecidos connosco em muitos aspectos.

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Esqueleto de um neandertal (à esquerda) e de um humano moderno, a nossa espécie Ian Tattersall

Ninguém nega, no entanto, que há diferenças anatómicas entre os neandertais e a nossa espécie – eles com uma estatura mais atarracada e robusta, adaptada ao frio daqueles tempos, e nós mais esguios. Os neandertais, por exemplo, não tinham queixo, a testa era baixa e o seu cérebro mais volumoso do que o nosso.

A ideia da sua rudeza e violência não surgiu do nada: baseou-se numa taxa invulgarmente elevada de ferimentos traumáticos descritos em fósseis de neandertais, explica um comunicado da Universidade de Tübingen (Alemanha), que conduziu agora o novo estudo, publicado esta quinta-feira na revista Nature.

E a zona da cabeça e do pescoço, pensava-se, seria particularmente atingida. Por diversas razões: os neandertais teriam um comportamento social violento, os acidentes seriam comuns, uma vez que eram caçadores-recolectores em condições ambientais duras (a Europa estava então sob um manto de neve e gelo), seriam atacados por animais carnívoros como o urso-das-cavernas e, para caçarem, tinham de se aproximar muito das presas para as apunhalar e atirar lanças.

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Uma cena de caça dos neandertais Gleiver Prieto/Katerina Harvati

Desta forma, as taxas elevadas de ferimentos nos neandertais têm sido usadas para inferir não só que tinham estilos de vida perigosos como um comportamento violento e técnicas de caça inferiores”, refere o comunicado. “Estas interpretações têm implicações importantes para a reconstituição da paleobiologia e comportamento dos neandertais e moldaram a percepção prevalecente sobre a espécie. No entanto, baseiam-se largamente em provas empíricas, uma vez que os traumatismos entre os humanos do Paleolítico são frequentemente relatados em descrições caso a caso”, acrescentam os cientistas no artigo científico.

A equipa de Katerina Harvati, da Universidade de Tübingen, foi então verificar se o estilo de vida e os comportamentos dos neandertais seriam realmente tão violentos como os descreviam. Em vez de se limitarem a analisar os traumatismos em esqueletos a nível individual, os cientistas avançaram para uma análise quantitativa a nível populacional, comparando os traumatismos cranianos entre neandertais e humanos modernos do Paleolítico Superior.

Para tal, utilizaram informações sobre centenas de ossos dos dois tipos de humanos, com e sem marcas de ferimentos, publicadas na maior base de dados disponível sobre fósseis. As informações sobre 836 ossos, datados com 80 mil a 20 mil anos, são relativas a crânios de 114 neandertais e de 90 humanos modernos descobertos pela Eurásia – desde Gibraltar até ao Quirguistão, passando por Israel, Itália, França ou Espanha. De Portugal está lá informação relativa a um fragmento de um humano moderno encontrado na Gruta do Caldeirão, na zona de Tomar.

Usando vários modelos estatísticos, a equipa teve em conta o sexo, a idade desse indivíduo na altura da morte, a localização geográfica onde o osso foi encontrado e o estado de conservação. “Tanto quanto é do nosso conhecimento, esta é a maior investigação a nível populacional dos traumatismos cranianos nos neandertais até agora e que usa uma amostra de comparação de humanos modernos do Paleolítico Superior como contextualização”, frisa a equipa no artigo científico.

“Os nossos resultados refutam a hipótese de que os Neandertais tinham mais tendência para ferimentos na cabeça do que os humanos modernos, contrariando a percepção comum. Acreditamos por isso que os comportamentos comummente mencionados dos neandertais como estando na origem de níveis elevados de ferimentos, como comportamentos violentos e capacidades inferiores de caça, têm de ser reconsiderados”, sublinha por sua vez no comunicado Katerina Harvati.

Além de níveis de ferimentos semelhantes, os cientistas constataram que os esqueletos atribuídos ao sexo masculino apresentavam mais ferimentos do que os do sexo feminino tanto entre neandertais como entre humanos modernos, um padrão observado igualmente em grupos humanos mais recentes. Como hipótese para esta constatação, a equipa aponta a divisão do trabalho entre homens e mulheres, bem como outros comportamentos e actividades relacionados com o sexo dos indivíduos.

Mas, numa análise mais fina, também se encontraram diferenças. “Enquanto os neandertais e os humanos modernos do Paleolítico Superior exibiam uma prevalência global de traumatismos, descobrimos que existia uma diferença relacionada com a idade em cada uma das espécies”, explica por sua vez Judith Beier, igualmente da Universidade de Tübingen e a primeira autora do artigo científico na Nature. Também como hipótese para estas observações, a equipa adianta que os neandertais poderiam ter mais probabilidade de se ferirem quando eram novos ou de morrer depois de um ferimento do que os humanos modernos.

“Este padrão relacionado com a idade é um novo resultado. Globalmente, no entanto, os nossos resultados sugerem que os estilos de vida dos neandertais não eram mais perigosos do que os dos nossos antepassados, os primeiros humanos modernos europeus”, assinala Katerina Harvati.

Senhores de pensamento simbólico

Num comentário na revista Nature que acompanha o trabalho, Marta Mirazón Lahr considera que “o poder” desta análise reside precisamente na forma como o estudo foi concebido. “Em vez de se compararem dados de neandertais com dados mais recentes ou de populações humanas actuais, como fizeram estudos anteriores, os autores basearam as suas comparações em humanos que não só partilharam o seu ambiente com os neandertais como havia semelhanças no nível de preservação dos fósseis”, assinala aquela paleoantropóloga da Universidade de Cambridge, Reino Unido.

“O estudo de Beier e dos colegas não invalida as estimativas anteriores de traumatismos entre os neandertais. Em vez disso, fornece um novo enquadramento para interpretar esses dados mostrando que o nível de traumatismos nos neandertais não era excepcionalmente elevado em relação aos primeiros humanos modernos na Eurásia”, acrescenta ainda Marta Mirazón Lahr, que dá ainda destaque às diferenças entre estes dois grupos humanos. “A descoberta de que os neandertais podem ter sofrido mais traumatismos quando eram novos do que os humanos [modernos], ou que tinham um risco maior de morte depois de um ferimento, é fascinante e pode ser uma revelação-chave sobre a razão por que é que a nossa espécie teve uma vantagem demográfica sobre os neandertais.”

Mas se este trabalho vem refutar a má fama dos neandertais, Marta Mirazón Lahr considera que ainda não é a palavra final quanto aos seus traumatismos, uma vez que só foram analisadas as lesões no crânio. “E se os neandertais acumulavam mais ferimentos no corpo do que os humanos [modernos]? Há dados que sugerem que pode ter sido esse o caso.”

Independentemente do que futuros estudos venham a concluir sobre as perguntas ainda em aberto, é longo o caminho que os neandertais já fizeram até aqui para que mudássemos a percepção sobre eles.

Terminamos com alguns exemplos. Se os imaginamos de cabelo e pele escuros, desenganemo-nos. Também os havia ruivos e de pele clara, como muita gente da nossa espécie oriunda do Norte da Europa, segundo revelou uma investigação, em fósseis de neandertais, de um gene responsável pela variação da cor da pele e do cabelo nos humanos (o gene MC1R, envolvido na produção de melanina). Num outro gene relacionado com a linguagem, o FOXP2, apresentavam já uma mutação, idêntica à dos humanos modernos, que lhes conferia a possibilidade de falarem. E há indícios de que enterravam os seus mortos, tal como nós, uma manifestação de pensamento simbólico.

Nos últimos tempos, têm-se acumulado provas de que os neandertais manifestavam um pensamento abstracto e simbólico idêntico ao da humanidade actual – por exemplo, usavam objectos de adorno pessoal, que não tinham função prática mas sim simbólica. E, segundo uma investigação recente de pinturas rupestres em grutas espanholas, terão sido os primeiros a pintar grutas há 65 mil anos, quando a nossa espécie ainda não tinha chegado à Europa. De brutamontes a artistas, e não mais violentos do que nós nesses tempos, assim se traça um retrato mais realista dos neandertais.

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