“É difícil ser antiquário em Portugal”
A primeira Feira da APA abre as portas na SNBA. Os antiquários vêm até ao centro de Lisboa, mas em Abril voltarão à Cordoaria. O mercado não está mal, mas a burocracia, dizem, ameaça a profissão
“Então a China?”, pergunta alguém a Luís Alegria, recém-chegado de Pequim e um dos antiquários presentes na Feira da Associação Portuguesa de Antiguidades (APA), que se realiza pela primeira vez este ano na Sociedade Nacional de Belas-Artes, em Lisboa. “Muito fraco. Eles estão a desacelerar depois destas guerras com o Trump. Há muitas notícias que assustam”, continua o antiquário com loja no Porto, especialista em porcelana da China da Companhia das Índias, e que é uma presença assídua nas mais importantes feiras internacionais do sector. “As pessoas estão sempre a ouvir falar da China, da China, da China!”, diz o interlocutor de Luís Alegria, o fotógrafo Rui Salta, que está a fazer o registo fotográfico dos 15 stands presentes na Feira da APA, que são todos de antiquários associados.
Mas foi o tufão Mangkhut — mais do que as guerras comerciais entre Trump e a China — o responsável pelo relativo insucesso da presença asiática de Luís Alegria, conta o antiquário ao PÚBLICO a poucas horas da inauguração. Primeiro esteve em Macau, com uma exposição na Fundação do Oriente, seguidamente em Hong Kong, na Fine Art Asia, e depois em Pequim, na Guardian Fine Art Asia. “Fui apanhado pelo tufão e em Hong Kong fiquei dois dias fechado no hotel. Aquilo mete medo.”
Se o mercado asiático teve este ano um abrandamento, como notou Luís Alegria, espera-se que acorde a qualquer momento. “Quando os museus com porcelana da China estiverem abertos, que estão agora a ser construídos, vai tudo ser vendido para a China. Esta geração de chineses está a ver pela primeira vez as coisas extraordinárias que fizeram para todo o mundo e estão a tentar recuperá-las. Mas quando esses museus abrirem e os milhões de chineses quiserem comprar coisas iguais, a porcelana da China vai desaparecer toda da Europa. Vai haver um enorme mercado para elas.”
Em Lisboa, Luís Alegria não vai exibir as peças que levou à China, nem as que costuma mostrar na rainha das feiras, que continua a ser a Tefaf, a feira de arte e antiguidades de Maastricht, onde vai há 23 anos. Mas mesmo assim há peças extraordinárias. No capítulo da porcelana da China feita para exportação, encontramos uma caixa de especiarias que pertence a um serviço que Luís XV encomendou para o Palácio de Versalhes, diz-nos o antiquário, à venda por 60 mil euros e datada de 1730: “É uma peça super-rara e está rigorosamente perfeita.” Igualmente de museu, um calvário indo-português, feito em Goa no século XVII. “É uma obra maior entre estes calvários, feito em cobre dourado, marfim e pedras.” Tem mais de um metro de altura.
Segunda feira da APA
Até domingo, quando termina a Feira da APA, as previsões meteorológicas não prometem tempestades como no fim-de-semana passado, com várias inundações registadas em Lisboa, apenas alguns aguaceiros, por isso a expectativa é de uma boa afluência nos próximos dias.
Isabel Lopes da Silva, vice-presidente da APA, explica por que razão a associação quis fazer uma segunda feira em Lisboa, além da que a APA já organiza em Abril na Cordoaria Nacional (começou por ser bienal e passou a anual em 2012). “Havia vontade de fazer uma feira mais pequena no centro de Lisboa. Esta tem metade dos stands. O mercado está mais animado, por causa dos estrangeiros que compram casas e precisam de as decorar.” O filho de Isabel Lopes Baptista, Pedro Baptista, também antiquário, explica que a APA tem tentado profissionalizar mais o sector e isso vê-se na qualidade das feiras, que passaram a inclui um comité de peritos independentes: “As pessoas deixaram de ser comerciantes e passaram a antiquários.” Na área mais restrita do negócio da família — joalharia, ourivesaria e prataria —, estuda-se gemealogia, fazem-se palestras sobre história da ourivesaria, mesmo que, como ele, se comece por um curso de cinema, passe por um mestrado em filosofia e se continue para um doutoramento em cultura contemporânea. “No geral, toda a gente passou a ter mais mundo. Já se empregam especialistas em história de arte ou com sensibilidade artística.”
Mas aquilo de que mãe e filho querem falar, mais do que as suas peças, é sobre o que preocupa todo o sector — leis e regras “obsoletas”. Lembram que os antiquários têm um papel a desempenhar na recuperação do património, mas que há demasiada legislação para quem trabalha com metais preciosos. “É difícil ser antiquário em Portugal”, defende Pedro Baptista, acrescentando que a burocracia tem sido um entrave ao desenvolvimento da profissão, impondo, por exemplo, que as lojas tenham um cofre com abertura retardada ou que contratem uma empresa de segurança para o transporte de valores acima de 15 mil euros.
Já conseguiram alterar o Regime Jurídico da Ourivesaria e das Contrastarias (RJOC), que chegou a obrigar a que todas as peças anteriores a 1887 voltassem à Casa da Moeda para serem remarcadas com novos contrastes, bem como todas as posteriores que fossem estrangeiras. Foi resolvido, com a ajuda da actual ministra da Cultura, então secretária de Estado adjunta e da Modernização Administrativa, “porque tudo o que tem mais de 50 anos passou a ser considerado antiguidade e ganhou um estatuto diferente”, explica Pedro Baptista. “Mas uma peça da Cartier dos anos 70 tem de ir à Casa da Moeda e perde o seu valor comercial porque a marca é raspada. É todo um processo burocrático que não tem pés nem cabeça.” Houve muitas casas que fecharam por causa do RJOC, dizem os dois ao PÚBLICO.
Entre as jóias do seu stand, Isabel Lopes da Silva destaca um alfinete e brincos desenhados por Seaman Schepps, uma estrela da joalharia norte-americana. Em forma de alcachofras, são feitos com aventurinas verdes, safiras e ouro. Entre as pratas, aponta para uma jarra da autoria do arquitecto finlandês Tapio Wirkkada, num stand em que os preços variam entre os mil euros e os 15 mil.
Pedro Baptista explica como é fácil identificar a joalharia portuguesa do século XVIII. “Com a abundância de pedraria que vem do Brasil, sobretudo de Minas Gerais, as jóias cobrem-se de pedras.” É o caso de um colar feito com crisoberilos verde-amarelados, que desenha uma laça e um Espírito Santo, datado de 1770. “É o tipo de peça que ninguém vai comprar e que devia ir para um museu.” Destaca também no stand do pai, J. Baptista, uma pulseira em ouro feita por um ourives de Gondomar, que ninguém conhece, nos anos 40 ou 50. A brincar, o antiquário chama-lhe “uma pulseira punk”.
Nos últimos anos, as feiras da APA passaram a estar abertas à arte contemporânea e ao design, acompanhando a tendência internacional espelhada, por exemplo, na Tefaf.
Uma pechincha
É o caso da Galeria Bessa Pereira, presente com mobiliário feito para Chandigarh, a cidade desenhada por Le Corbusier na Índia. As peças saíram da mão de Pierre Jeannert, primo e colaborador do arquitecto suíço. Há várias cadeiras, mas a Kangarou (1957-58), feita em teca e palhinha, destaca-se no meio do stand. “É raríssima. Só há 120 exemplares. Ao contrário das outras, feitas para as obras públicas, estas foram feitas para casas particulares”, diz Carlos Bessa Pereira.
Custa 14 mil euros e o galerista-antiquário chama-lhe “uma pechincha”: “O objectivo é mostrar ao mercado português que estas peças existem. São todas peças modernistas de época e vêm de Chandigarh. Sendo satírico, um milionário que se preze não pode deixar de ter na sua sala uma cadeira destas.”
Com bilhete a 10 euros, o horário da Feira da APA é de terça a sexta-feira das 16h às 21h; sábado das 14 às 21h; domingo das 12h às 19h.