Cumplicidades entre o Barroco e o contemporâneo na Casa da Música
A nova peça À sombra das harpas, encomendada pela Casa da Música, confirma Georg Friedrich Haas como um dos grandes criadores actuais.
O diálogo entre agrupamentos residentes da Casa da Música num mesmo concerto já se tornou uma imagem de marca de vários ciclos da instituição, permitindo combinações inesperadas de obras, mas também leituras transversais que proporcionam outros itinerários de escuta. O último festival À volta do Barroco não foi excepção. O programa do recente CD À Portuguesa, que a Orquestra Barroca Casa da Música gravou para a Harmonia Mundi com o cravista Andreas Staier e apresentou numa digressão internacional, foi repartido por dois dias (4 e 6 de Novembro) e combinado com interpretações do Remix Ensemble, incluindo a estreia de obras de Gonçalo Gato e de Georg Friedrich Haas (compositores residentes em 2018).
Intitulado Invenções Barrocas, o programa do dia 6 iniciou-se com o Concerto n.º 5, de Domenico Scarlatti/Charles Avison, um dos mais brilhantes concerti grossi que o compositor britânico concebeu a partir da adaptação de Sonatas de Scarlatti. Esta obra mostrou a Orquestra Barroca em óptima forma, com uma sonoridade brilhante, articulações cuidadas e contagiante vitalidade rítmica.
A direcção plena de energia de Andreas Staier, muito atenta à arquitectura musical (fazendo sobressair com clareza linhas e motivos melódico-rítmicos internos à textura) manteve-se no Concerto para cravo, em Lá Maior, de Carlos Seixas, no qual foi solista.
Tal como no já referido CD, Staier enfatizou a dimensão virtuosística da obra através da escolha de andamentos excessivamente rápidos (com riscos no caso do concerto ao vivo), uma concepção que parece ter sido inspirada pelo imaginário das mais exuberantes sonatas de Scarlatti.
Mas Seixas tem também uma voz própria, que poderia emergir com mais evidência numa velocidade menos extrema. Staier revela assim uma outra dimensão desta composição icónica de Seixas, tanto no Adagio central — cujos acordes incisivos iniciais na mão esquerda lhe conferem um carácter distinto de outras interpretações — como através da sensação de vertigem do Allegro inicial e da dançante Giga final.
Duas Sonatas contrastantes de D. Scarlatti (K. 380 e K. 381) confirmaram a destreza técnica e a afinidade do cravista com este compositor através de imaginativas prestações, mas o ponto culminante do concerto chegaria com a Musica Notturna delle Strade di Madrid, de Boccherini, peça originalmente escrita para Quinteto (op. 36, nº6), transcrita por Staier.
Verdadeira pintura sonora dos quadros pitorescos da vida nocturna de Madrid (com a evocação dos sinos, do “desajeitado” minueto “dos cegos”, da oração do Rosário, das canções e danças populares dos manolhos ou majos e da Marcha da Retirada, que se ouve a diferentes distâncias, entre outros elementos), contou com um desempenho de alto nível da parte da Orquestra Barroca, que se distinguiu pela precisão, teatralidade, humor e variedade de colorido tímbrico.
Na segunda parte, o Remix Ensemble transportou-nos para outro mundo sonoro, mas a ideia do concerto como género musical prevaleceu tanto na obra encomendada a G. F. Haas — uma “espécie de concerto grosso futurista” como lhe chamou Peter Rundel — como na peça de Beat Furrer. Em Im Schatten der Harfe (À sombra das harpas), de Haas, a solista (neste caso Carla Bos) tem de usar duas harpas, uma afinada em temperamento igual e outra com uma afinação distinta, susceptível de criar combinações muito consonantes baseadas na série dos harmónicos mas também sonoridades inusitadas.
São as harpas que servem de impulso aos restantes instrumentos na criação de fascinantes atmosferas e texturas num espaço reverberante fluido, recriado de forma eloquente pelo Remix Ensemble, dirigido por Peter Rundel.
A nova peça confirma Haas como um dos grandes criadores actuais. A acuidade do Remix Ensemble e a desenvoltura do pianista solista Jonathan Ayerst manifestaram-se ainda noutra obra de fôlego: o Concerto para Piano e Ensemble, de Beat Furrer (estreia em Portugal).
Em vez do confronto solo/tutti, o piano é neste caso o “centro de gravidade” e o ensemble (que inclui um outro piano) funciona como a sua extensão ou amplificação. A obra segue uma estrutura complexa com contrastes extremos e fortes acumulações de tensão.
No domingo foi a vez de o Coro Casa da Música, dirigido por Paul Hillier, dar a ouvir a peças religiosas de Alessandro e Domenico Scarlatti (pai e filho), que testemunham vertentes da suas carreiras menos conhecidas do grande público, bem como a facilidade com que os compositores do Barroco se adaptavam a diferentes estilos em função da liturgia — da herança polifónica do stile antico aos novos rumos da linguagem musical.
De D. Scarlatti ouviram-se peças que subsistem em fontes portuguesas (Laetatus sum, Te Gloriosus e Te Deum a 8), pelo que teria sido pertinente incluir também o responsório O Magnum Mysterium, de Alessandro, cujo autógrafo se encontra no arquivo da Sé de Lisboa.
Três belas obras de A. Scarlatti (Salve Regina, Miserere e Magnificat, este último com intervenções solísticas mais elaboradas, cantadas com proficiência por elementos do coro) ilustraram, porém, a mestria da escrita vocal do compositor.
Paul Hillier distribuiu as passagens de cantochão do Miserere por diferentes grupos e teve o cuidado de dosear a presença do baixo contínuo (Jesús Baena na tiorba, Sarah McMahon no violoncelo e Silvia Chulilla no órgão) em função do estilo das peças.
A interpretação do coro foi muito consistente e ganhou expressividade ao longo do programa, mas o resultado teria a beneficiar com um espaço acústico mais próximo do contexto original de execução em vez da imensa Sala Suggia.