Pilotos da Air Astana foram “altruístas” e mantiveram “sangue-frio”
Pedido para pousar no mar mostra que os pilotos procuraram reduzir estragos mais do que salvar as próprias vidas, segundo opiniões colhidas pelo PÚBLICO.
Se há heróis na aterragem de emergência que o avião da companhia aérea Air Astana fez, no domingo, na base aérea de Beja, depois de duas horas de trajectória errática pelos céus, são os pilotos da companhia aérea do Cazaquistão. “Foram absolutamente fantásticos. A preocupação daqueles homens, quando perceberam que o avião estava incontrolável, de quererem ir para o mar é sinal de que puseram a vida das pessoas em terra à frente das suas próprias vidas”, enalteceu ao PÚBLICO o comandante Miguel Silveira, presidente da APPLA – Associação dos Pilotos Portugueses de Linha Aérea.
Num cenário de amaragem, as hipóteses de um desfecho semelhante ao ocorrido em 2009, quando os 155 passageiros de um voo comercial foram resgatados com vida das águas do rio Hudson, em Manhattan, são “de uma num milhão”. O avião pousou no rio depois de um embate contra um grupo de gansos ter levado os dois motores a falhar. “A probabilidade de um avião ficar intacto e de não se magoar nem morrer ninguém é ínfima. De modo que, quando os pilotos pediram para pousar no mar, estavam a pensar na população que estava em terra, mais do que em salvar-se. Foi uma atitude muito altruísta e que requereu muito sangue-frio”, acrescentou o presidente da APPLA.
Bem pode assim o ministro da Defesa, João Cravinho, sugerir na sua conta oficial do Twitter que a intervenção da Força Aérea Portuguesa foi determinante na aterragem do avião. “Parece-me claramente exagerado sugerir que foi a intervenção dos F16 que salvou a situação. A intervenção deles foi obviamente boa – é sempre bom pôr os pilotos a falar uns com os outros –, mas não se pode dizer que foram eles que aterraram o avião”, censura o comandante Miguel Silveira, para apresentar a sua leitura do sucedido naquelas horas: “Ao que parece, a falha foi nas superfícies de controlo dos comandos do avião que ficaram com uma forma totalmente diferente de actuar. Depois de uma primeira fase em que não perceberam muito bem o que se passava, e estiveram a lidar com manobras extremamente abruptas que a aeronave ia fazendo, numa segunda fase, e ao fim de uma hora e tal, os pilotos acabaram por perceber como se pilotava aquele ‘novo’ avião e conseguiram voar de acordo com aquilo que o avião tinha para lhes oferecer.”
Enquanto o Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF) estiver a investigar o que aconteceu, tanto os pilotos – um britânico e um natural do Cazaquistão que estavam ontem alojados num hotel em Beja – como a responsável da Torre de Controlo estão impedidos de falar publicamente. E, como a aeronave está intacta e a tripulação saiu ilesa, “a investigação tem todas as condições para nos trazer a todos uma imensidão de lições: desde os pilotos ao CEO de uma transportadora aérea, todos poderão aprender muito com isto”, acrescenta.
Depois de 25 anos a pilotar aviões em voos comerciais, o comandante Paulo Soares sublinha também o heroísmo subjacente ao facto de os dois pilotos do Embraer terem sugerido pousar no rio. “Há-de ter sido a única forma de o piloto, que tinha um avião incontrolável, não causar estragos por demais. A tripulação podia partir-se toda, mas não iam matar mais ninguém”, interpreta, recordando que o incidente se passou “numa zona de imenso tráfego aéreo em que era preciso preservar as aeronaves que voavam ‘tranquilamente’ de e para Lisboa”. Dito de outro modo, “o piloto sabia que, se fosse para Lisboa, ia ser trinta vezes pior: iam rebentar com o aeroporto”, enfatiza o actual director do aeródromo de Viseu, elogiando-lhes ainda a capacidade de “irem adaptando a solução às novas situações que se lhes foram oferecendo”, até aterrarem em Beja.
Sem sangue-frio, o desfecho poderia ter sido outro. E recorda um episódio que se passou consigo. “Estava como co-piloto num voo que saiu do Porto em direcção a Frankfurt quando embatemos contra um galispo de um quilo e meio, o que provocou uma falha no motor que nos levou a regressar ao ponto de partida. Foi menos de meia hora, os passageiros só se aperceberam do que se tinha passado quando lhes dissemos, mas aquilo pareceu-me uma eternidade. O coração bate mais depressa. E nesse dia percebi que todas as horas de treino nos simuladores e toda a insistência dos instrutores tinham um motivo: ajudar-nos a actuar quando os problemas surgem.” Foi nesse dia, diz, que se sentiu “verdadeiramente um piloto”.