Identificadas células que serão novo alvo terapêutico para esclerose múltipla

Dois investigadores portugueses integram equipa do Instituto Karolinska, na Suécia, que apresenta novas pistas sobre a origem e progressão da doença auto-imune.

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Amagoia Agirre

Primeiro que tudo é preciso ter em conta que nos casos de esclerose múltipla o sistema imunitário não funciona como defesa, mas antes como ataque. Assim, esta doença auto-imune surge quando o sistema imunitário ataca e degrada a mielina, uma espécie de capa protectora dos neurónios, provocando estragos no sistema nervoso central. Agora, uma equipa de cientistas do Instituto Karolinska em Estocolmo, Suécia, que inclui dois portugueses, investigou um grupo de células que produz a mielina e percebeu que podem desempenhar um papel central na progressão da esclerose múltipla. Os resultados, publicados esta segunda-feira na revista Nature Medicine, identificam um potencial alvo para novas terapias.

A frase pode parecer um lugar-comum usado nas notícias de ciência, mas neste caso específico, aplica-se perfeitamente. ”É uma nova porta aberta”, diz a investigadora Ana Mendanha Falcão ao PÚBLICO. Por agora, o que os cientistas descobriram é que há um grupo de células que produzem mielina (chamadas oligodendrócitos) que estão envolvidas no complexo cenário da esclerose múltipla. Não se sabe ainda se o que estas células fazem serve para ajudar a doença a progredir ou para prevenir maiores estragos. Sabe-se que, em ratinhos com esclerose múltipla, uma pequena percentagem dos precursores destas células produz uma proteína que envia sinais para o sistema imunitário. Agora é preciso “traduzir” estes sinais e esclarecer o seu papel na doença auto-imune. Ou seja, é preciso saber o que está atrás da porta.

“Utilizámos uma técnica nova (sequenciação de ARN de uma única célula) que, através de uma fotografia instantânea, permite saber quais os genes que são activados em células individuais. É uma técnica bastante poderosa que permite uma resolução que não era possível há três ou quatro anos. Aplicámos esta técnica a um modelo de ratinho com esclerose múltipla e conseguimos detectar algumas propriedades de algumas das células que estão afectadas na esclerose múltipla”, começa por explicar ao PÚBLICO Gonçalo Castelo Branco, investigador no Instituto Karolinska e outro dos autores do artigo.

Os investigadores focaram-se nos oligodendrócitos, que são umas células que produzem mielina no cérebro, e perceberam que os seus precursores têm um comportamento diferente do normal quando existe um cenário da esclerose múltipla. “Começam a adquirir algumas propriedades que são semelhantes a células do sistema imunitário”, diz, acrescentando que “isto levanta uma série de novas questões sobre o papel deste grupo de células poderá ter na evolução da doença, talvez não tanto na origem”. Embora o estudo tenha sido essencialmente conduzido em ratinhos, alguns dos resultados também foram reproduzidos em amostras humanas. "Em suma, os nossos resultados sugerem que estas células desempenham um papel significativo no início e no desenvolvimento da doença", diz David van Bruggen, outro primeiro co-autor deste trabalho. 

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Os investigadores David van Bruggen, Gonçalo Castelo Branco e Ana Mendanha Falcão DR

Sinal para atacar ou defender?

A procura de soluções para a esclerose múltipla tem estado centrada na investigação à volta das células da microglia, que actuam como células imunitárias do sistema nervoso. Desta vez, e sabendo que os oligodendrócitos são produtores da mielina que é degradada pelo sistema imunitário na esclerose múltipla, os investigadores quiserem perceber o que levava estas células a perder a sua capacidade de fazer essa regeneração no cérebro. “Pensávamos que íamos descobrir coisas sobre a sua capacidade de regenerar, mas afinal tivemos uma grande surpresa quando descobrimos estas outras propriedades”, refere Gonçalo Castelo Branco.

Falamos de um subconjunto de oligodendrócitos (não são todos) e uma pequena percentagem das suas células progenitoras (que ainda não produzem mielina), esclarecem os investigadores. Entre outras propriedades, estas células estarão a participar na limpeza da mielina que é danificada pela doença, de uma maneira que se assemelha ao modo de acção das células do sistema imunitário. “Também vemos que os genes que foram previamente identificados como aqueles que causam uma susceptibilidade a esclerose múltipla estão activos (expressos) nos oligodendrócitos e nos seus progenitores”, diz ainda Ana Mendanha Falcão. As células progenitoras produzem uma proteína que envia um sinal para o sistema imunitário. “Os nossos resultados sugerem que estas células não são alvos passivos, mas sim imunomoduladores activos em esclerose múltipla”, resumem no artigo.

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Ilustração com células precursoras de oligodendrócitos a limpar detritos de mielina e interagindo com células imunes. Amagoia Agirre

E o que é que isto quer dizer? Ainda não se sabe. O aviso pode ser para atacar ou para defender. Nem Gonçalo Castelo Branco nem Ana Falcão arriscam comprometer-se com uma das várias hipóteses sobre a influência destas células na doença. “Estas células podem estar na origem da doença e estar a chamar o sistema imunitário para atacar o sistema nervoso central ou podem estar a aumentar o efeito da acção prejudicial do sistema imunitário na doença ou, por outro lado, podem estar lá para prevenir que o sistema imunitário ataque. Nesta altura ainda não sabemos”, responde Gonçalo Castelo Branco. Entre aliados da doença ou uma tentativa do organismo de a travar, as suspeitas dos investigadores após estudos in vitro encontram-se na primeira hipótese. É a tal porta aberta. Depois dela, estarão algumas respostas e outras tantas perguntas. Mas o mais importante foi encontrar a porta que nem sequer existia e que pode levar a novos alvos para terapias.

Um dos próximos passos da investigação vai, por exemplo, passar por tentar “adormecer” estas células num modelo in vivo com esclerose múltipla para ver se a doença se agrava (e nesse caso o seu papel será benéfico) ou se melhora (e nesse caso o papel destas células será prejudicial). Em ambos os casos, esse papel será sempre central e importante. Ana Mendanha Falcão admite ainda que os novos dados sobre as propriedades surpreendentes deste grupo de células pode servir para investigar outro tipo de doenças, bactérias ou vírus que atacam o sistema imunitário. “Isso é a beleza deste trabalho, abre uma porta para uma possibilidade que nunca ninguém pensou.”

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