Extrema politização do conflito “torna muito difícil” a acção humanitária da ONU na Síria
A ajuda chegou finalmente à população desesperada no campo de Rukban. Fica no deserto junto à fronteira com a Jordânia, mas bem podia ser na lua. "Aquele não é um lugar onde as pessoas possam continuar", reconhece o coordenador da assistência humanitária das Nações Unidas na Síria, Panos Moumtzis.
As condições para os mais de 50 mil refugiados sírios que estão encurralados há quase três anos no campo de Rukban, junto à fronteira com a Jordânia, não seriam muito diferentes se em vez de estarem perdidos no deserto estivessem na lua, compara o vice secretário-geral e coordenador da assistência humanitária das Nações Unidas para a crise da Síria, Panos Moumtzis. “Literalmente no meio do nada”, o campo de Rukban, tal como o território lunar, “é duro: é quente, é frio, inunda…”, descreve. “As condições são mesmo muito difíceis. Aquele não é um lugar onde as pessoas possam continuar”, afirma.
Há uma semana, depois de intensas negociações, as Nações Unidas conseguiram finalmente fazer chegar um comboio humanitário, composto por 78 camiões, até ao campo de Rukban. A população que ali se encontra (a grande maioria são mulheres e crianças) é vítima da complexidade e violência do conflito do país, que desde 2011 tem obrigado os sírios a movimentos de deslocação internos constantes.
Aqueles que sobrevivem em Rukban tencionavam escapar da violência do Daesh e fugir para a Jordânia, que alberga mais de 670 mil refugiados sírios. Mas no final de 2015, uma sequência de ataques protagonizados pelos islamistas levou ao fecho da fronteira. Sem hipótese de voltar para trás, as famílias em fuga não tiveram outra alternativa que não assentar campo em pleno deserto — onde permanecem. "A situação é trágica e aquelas pessoas estão desesperadas”, resume Moumtzis.
A última vez que a ajuda humanitária chegou a Rukban foi há dez meses, em Janeiro. Antes disso, as Nações Unidas, em parceria com o Crescente Vermelho da Síria, só tinham conseguido lá entrar em Julho de 2017. “Há muitas necessidades que não estão a ser preenchidas há demasiado tempo. No último ano, não fomos capazes de prestar o apoio que desejávamos”, lamenta este responsável — que poderia repetir a mesma frase em relação a muitos outros campos e locais da Síria, onde as populações desalojadas por uma guerra que se prolonga há mais de oito anos, e deixou o país totalmente devastado, estão dependentes do auxilio internacional para sobreviver.
Isolados pelos acesso do exterior, e sem recursos no interior, as carências no campo de Rukban são totais. “Na semana passada, perdemos duas crianças que morreram com diarreia, uma doença que pode ser prevenida e é totalmente tratável”, observa Panos Moumtzis. Por isso, diz, foi tão importante ter conseguido trazer agora água, alimentos, medicamentos e outros materiais médicos, roupas, fraldas e produtos de higiene, cobertores e tendas. Com o Inverno a chegar, a ONU quer garantir que os refugiados alojados em mais de dez mil tendas e cabanas têm a protecção mínima contra o rigor dos elementos.
A expectativa das organizações humanitárias é poder voltar a Rukban em Janeiro com um novo carregamento de ajuda, o que obrigará a renegociar a autorização com todos os actores políticos e militares no terreno. Como reconstitui Moumtzis, para os camiões fazerem o percurso entre a capital, Damasco, e o chamado quilómetro 55 da estrada que conduz à fronteira, têm de ter uma permissão para circular do Governo e do Exército sírio, bem como das forças russas que apoiam o Presidente sírio, Bashar al-Assad, que podem travar o seu avanço em qualquer ponto do percurso. O km 55 está debaixo da supervisão da coligação militar internacional que combate o Daesh, liderada pelos EUA, que tem que dar luz verde à passagem da caravana humanitária. E daí até ao campo, é preciso “discutir” com as milícias rebeldes, dois grupos de militantes armados que se mantêm activos na zona.
Toda a assistência de emergência que se consiga fazer chegar ao local será pouca para resolver o problema daquelas pessoas. “Falaremos as vezes que for preciso com quem tenha poder ou capacidade de influência, seja o Governo da Síria ou da Turquia, os grupos não estatais que negoceiem connosco, os russos e os americanos, para poder chegar perto das pessoas e ajudá-las”, garante Panos Moumtzis, que não tem dúvidas de que a distribuição de ajuda humanitária, por mais fundamental que seja no momento, “não é a solução” para a crise síria. “O que é preciso é uma solução política que permita a paz e a estabilidade necessárias para a reconstrução do país.” Mas enquanto isso não acontece, promete, “continuaremos a apertar a mão a todos para poder fazer o nosso trabalho”.
Rubkan não é um caso único na Síria, nem na escala das necessidades extremas da população, nem nos constrangimentos ao acesso e trabalho das organizações humanitárias. De acordo com os cálculos das Nações Unidas, há pelo menos 1,1 milhão de pessoas em situação de carência severa em zonas do país que permanecem inacessíveis ao apoio internacional, metade delas em áreas dominadas pelo Governo de Bashar al-Assad e a outra metade em zonas sob o controlo dos grupos armados de oposição ao regime sírio. E não existe uma diferença na situação de umas e outras: em todos esses lugares, a população depende da ajuda internacional.
“O acesso é restrito por várias razões. Obviamente, quando há combates, é muito difícil conseguir chegar até às pessoas. E nas zonas controladas pelo Daesh é impossível entrar”, nota Moumtzis. No resto do país, as organizações humanitárias “deveriam poder entrar com a devida autorização”, mas tal não acontece em “80% ou 90%” das localidades, sejam elas em zonas governamentais ou da oposição. “A nossa missão é chegar ao povo sírio onde quer que ele esteja. Mas isso torna-se muito difícil por causa da extrema politização do conflito na Síria”, denuncia, lembrando que todas as missões humanitárias respeitam os princípios da imparcialidade, neutralidade e independência.
O responsável máximo da ONU pelo apoio humanitário à crise da Síria falou ao PÚBLICO em Bruxelas, onde se reuniu com responsáveis da Comissão Europeia, e também representantes dos 28 Estados membros da UE, para fazer um ponto da situação no terreno, principalmente dos constrangimentos que ainda impedem que o auxílio de emergência alcance os mais necessitados, mas também do desenvolvimento das operações financiadas pela comunidade internacional. “Neste momento recebemos 60% do montante total [de 3,5 mil milhões de dólares] que pedimos aos países doadores”, revelou Panos Moumtzis. Na Síria calcula-se que sejam 13 milhões as pessoas em necessidade. Numa base mensal, a ONU consegue dispensar ajuda a cerca de 5,5 milhões.