Brasil. Vamos ser felizes só por teimosia
Duas semanas após a eleição de Jair Bolsonaro, o Brasil olha para o que se passou. Há um poeta diz que é preciso saber chorar e o Brasil não chora. E há medo, há perplexidade, mas há sobretudo uma tristeza que atravessa escritores e intelectuais. Eles fizeram campanha contra o presidente eleito e perderam. Porquê? Aqui fala-se de um tempo de fim de ciclo.
Nicolas Behr leva o indicador direito aos lábios quando Chiquinho se aproxima da mesa com uma travessa na mão e conta que os dois costumavam escrever poemas. “Chiu!” Chiquinho finge que não ouve, que não vê. “Quer escutar? Assim: ‘Poetas e poetas, um dia eu vos poetarei’.” Chiquinho é o dono do Beirute, um dos bares mais emblemáticos de Brasília, reduto de escritores, artistas, intelectuais. Fica na Asa Sul da cidade e cheio à hora de almoço num dia de muita chuva. Na placa, lê-se: “Beirute, desde 1966”. “Cheguei em 74”, diz Nicolas Behr, poeta, dono de um viveiro de plantas, brasileiro descendente de imigrantes alemães. Ele ri da suposta antiguidade do espaço onde é um cliente muito conhecido. Foi ali que conheceu a mulher com quem casou há 35 anos. Ela descia da bicicleta e ele disse-lhe “mais ou menos” um poema.
“Era um bar da resistência. Brasília era então uma cidade muito pequena e tudo afluía aqui. Entretanto, a cidade cresceu, é mais dispersa, mas o Beirute continua mítico. E eu vendi muitos livrinhos de mão em mão aqui. Escrevia-os e fazia-os manualmente.”
Behr chegou a Brasília vindo de Cuiabá, cidade no estado do Mato Grosso. “A minha mãe veio trabalhar aqui. Fazia muito calor lá, sem grandes oportunidades. Eu tinha 15 anos. A cidade de Brasília não era a maravilha que é hoje. Não era arborizada. Eu saí do mato para viver numa maquete. Era uma cidade artificial.”
Conta que foi parar à poesia pela leitura, por estar num grupo de teatro e em movimentos muito politizados de cidadania estudantil. Foi preso duas vezes por participar em manifestações na Universidade de Brasília, em 1976 e 1977. Liam Maiakovski, Fernando Pessoa, viam filmes de Pasolini. “Pela primeira vez, uma geração de brasilienses, aqui nascidos ou não, assumiu a cidade. Nós amamos Brasília. Havia dança, música, poesia, literatura, filmes sobre Brasília. Isso foi importante para a afirmação da cidade”, conta, acrescentando que ainda seria preso uma terceira vez, em 1978, processado e levado a julgamento. A razão? “Por causa da poesia, dos livrinhos que eu fazia. Eles achavam que na minha casa havia uma central gráfica. Foram lá, não acharam e, como tinham de justificar a acção, processaram-me por posse de material pornográfico, uma coisa ridícula. Eu não tinha nada, mas diziam que os meus poemas eram pornográficos.” Tinha acabado de fazer vinte anos. “As ditaduras são cobardes, medrosas e frágeis”, refere, a voz a tentar sobrepor-se a todas as outras vozes que, entretanto, transformaram o bar num imenso burburinho.
Behr seria absolvido e tenta não mitificar esse passado. Pertence, simplesmente, à sua história. “Faço muitas palestras em escolas e os jovens tendem a ver os anos 1970 como uma época de glamour. Digo-lhes que não era bem assim, que se eles fizessem as perguntas que fazem nas escolas ia todo o mundo preso ou o director seria expulso. As pessoas ficam meio chocadas com isso, mas a gente tem sempre de desglamourizar o passado.”
Essa prisão foi há 40 anos. Nicolas Behr acaba de fazer 60 no momento em que o Brasil elege Jair Bolsonaro para a presidência do país. Para Behr e para muitos escritores, artistas, intelectuais é impossível não recuar a esse tempo. Este é um momento em que a memória surge de modo involuntário por necessidade de contextualizar o presente. Por isso, Behr vai à sua adolescência para dizer que está disposto a ser preso outra vez em nome da democracia. “Espero que não, mas se for preciso vou preso de novo. Sinto que é possível”, admite, “embora talvez seja só um bom alimento para a poesia”. Sorri. Tem um ar sereno; o tom é calmo; nos olhos, um misto de ironia e bonomia que os óculos de aros finos deixam passar. “Há um receio. Não se sabe”, continua, e afirma que não sente medo. “Na época tinha muito mais medo, não havia habeas corpus, podíamos ser presos sem mandato judicial. No novo regime não vai ser tão fácil, também não vai ser moleza, vai ser difícil; a gente também tem medo. As perspectivas não são boas, sobretudo quanto ao retrocesso de direitos adquiridos. Não sei porque é que o Brasil fez essa escolha. É uma escolha popular, mas é um retrocesso visível.”
Um Brasil que não chora
Chiquinho traz uma travessa sem que ninguém tenha feito um pedido. “Não entendo a estratégia dele, traz esta comida para a mesa, não cobra, a gente come e não almoça!”, repara Behr, enquanto se serve, e serve quem está com ele, de carne com especiarias, arroz e farofa. Pede depois um arroz com lentilhas e cebola. Continua: “Nenhum regime, de esquerda ou de direita, gosta de poetas. Na Rússia foram maltratados por Estaline. Maiakovski foi quase forçado a se matar. Os poetas são imprevisíveis, uns chatos e não são a antena da raça. Não gosto desse conceito do Ezra Pound, acho uma bobagem. Mas o momento tem um lado muito interessante; é revelador de um Brasil que a gente não queria ver.”
Por exemplo, um Brasil que não sabe chorar. A ideia vem de outro poeta, Ricardo Aleixo, 58 anos, negro, de Minas Gerais. “Não sei bem por que motivo tendemos a ultrapassar as situações trágicas sem pranteá-las; atravessámos duas ditaduras e não as pranteámos Não choramos, vamos tocando o barco. Passámos pela escravidão negra, pela dizimação dos povos indígenas sem uma lágrima.” A conversa também se faz à mesa, noutro bar associado à resistência, A Cantina do Lucas, um canto num edifício modernista no centro de Belo Horizonte, cidade de 1,5 milhões de habitantes, onde Aleixo nasceu.
Porque é que o Brasil não chora? “Talvez o Brasil seja muito macho”, responde. “Hoje podemos falar de uma certa naturalização da dor, do sofrimento, mas essa naturalização parece precedida de um esforço muito grande para corresponder às expectativas de sermos um povo feliz, um povo finalmente maduro, adulto. O país que se permite ser um país jovem, um país adolescente, tem um povo que tem de ser maduro e não chorar. É uma contradição. Uma das imagens emblemáticas da cultura brasileira contemporânea me parece ser o encontro de Darcy Ribeiro e Glauber Rocha [o antropólogo e escritor e o cineasta, exilados na ditadura militar] que passearam um dia os dois lamentado a sorte do Brasil. Poucos anos antes do Glauber morrer eles se abraçaram chorando o Brasil que não deu certo. Até tenho vontade de propor uma performance, de preferência em São Paulo, para chorar. Chorar o Brasil. É preciso chorar o Brasil.”
A conversa com Ricardo Aleixo acontece uma semana após a eleição de Bolsonaro. A de Nicolas Behr quase duas semanas depois do dia 28 de Outubro. Um dia que não surpreendeu nem um nem o outro no resultado que trouxe. “Como a minha tendência é ler o Brasil a partir da via negativa eu não esperava nada de diferente”, diz Ricardo Aleixo, voltando àquela noite que viveu no seu lugar de sempre: a casa. “Vivi aquela noite com uma percepção de que o abismo é muito maior.” E dá o contexto pessoal. “Moro no bairro para onde fui com a minha família aos nove anos. Chama-se Campo Alegre. Esse nome é uma das muitas ironias do positivismo do Brasil. Veja, Campo Alegre, na cidade de Belo Horizonte, nas Minas Gerais!, tudo a apontar para riquezas. Mas o Campo Alegre é originalmente um lugar para onde foram 556 famílias entre pobres e miseráveis de Minas Gerais. Eu morava num bairro mais próximo do centro. O meu pai era baixo funcionário do Ministério da Agricultura e a ditadura militar criou, em 1969, um programa de casas populares. O meu bairro é o segundo conjunto habitacional criado em Minas. Hoje é um bairro de classe média com uma visão do mundo alterada o bastante para discriminar pessoas de bairros vizinhos. As pessoas têm muito medo das outras pessoas que moravam na favelinha. Então, a comemoração da vitória do Bolsonaro foi algo de horripilante. A minha casa fica num buraco, é uma caixa acústica. Além dos foguetes, o que mais me chocou foram os tiros, o cheiro de pólvora e sobretudo ouvir uma voz de criança de uns oito, nove anos, gritando "Ehhh Bolsnonaro!!!".
Ricardo Aleixo volta às lágrimas, à falta delas, ao trauma. “Sabe, é como quando a mãe repreende uma criança apanhada a fazer algo errado e lhe diz, quando ela chora, para engolir o choro. Eu vivi numa família um pouco diferente, eu podia chorar, o meu pai chorava. De há uns anos para cá isso ficou ainda pior. Com o avanço das igrejas neo-pentecostais, o individualismo cresceu e a falta de perspectiva colectiva aumentou. É cada um por si, a meritocracia. Temos a tendência para continuar a viver a sobrevida de todos os dias, mesmo com a perda de direitos... A vitória de Bolsonaro, mas já antes a deposição de Dilma, parecem fruto desse imediatismo da sociedade brasileira, desse individualismo também, da falta de perspectiva colectiva, da falta de diálogo e isso tem muito a ver com as redes sociais, a possibilidade de todo o mundo dizer tudo o que quiser a qualquer momento sem mediação. E num contexto em que todo o mundo pode falar talvez ninguém possa porque ninguém ouve ninguém.”
O luto
Aleixo, como Behr, participam de um projecto chamado Artes da Palavra. É uma iniciativa do SESC, Serviço Social do Comércio, associação privada mantida pelos empresários do comércio que presta serviços ligados ao bem-estar, à educação, turismo e cultura dos familiares de funcionários do comércio como da população em geral. Tem um papel essencial junto dos grupos economicamente mais desfavorecidos de todo o Brasil. Após vencer as eleições, Jair Bolsonaro anunciou a intenção de impedir que o SESC canalize dinheiro para a cultura, o que causou espanto junto de grande parte da comunidade artística e intelectual. “Este ano já passei por 17 cidades em seis estados. Faltam quatro cidades no Rio Grande do Sul”, conta Ricardo Aleixo. “Não desperdicei nenhuma das apresentações para falar de como vejo o momento que atravessamos e que nos atravessa. A situação que vivi ao longo deste ano foi muito privilegiada, viajando para estar em lugares onde era esperado. Os meus livros já tratam das questões políticas e havia uma expectativa de que eu fosse falar dessas coisas. Como tinha um excedente de paciência porque venho sendo muito bem tratado, não tive nenhuma tensão na minha família, não soube de caso nenhum de pessoas pró-Bolsonaro, pude ter um armazenamento de energia e viver o meu luto pelo golpe [a destituição de Dilma Rousseff, em 2016], e a preparar-me para o pior. As pessoas perguntam como estou com a expectativa de que responda que estou mal como elas estão e eu digo: estou muito alegre. E estou muito alegre, mesmo. Acima de tudo porque sou alegre; a alegria é um valor para mim. Não tento disfarçar situações.”
É uma alegria que Ricardo Aleixo remete para a cosmovisão africana. “O meu ponto de vista sobre o mundo e sobre a sociedade brasileira em especial é o ponto de vista da população negra, de quem pensa que nem deveria estar aqui. Nós, negros brasileiros, tínhamos todas as razões para desistir. Quando a gente se muda para Campo Alegre, meu pai já era um pré-idoso, tinha mais 50 anos que eu e a minha mãe mais 42. Essa casa que, como a minha mãe falava, era em Campo Triste, porque não tinha pavimento, a luz falhava muito, andava-se quase um quilómetro para apanhar ónibus, era um horror — foi o único bem que meu pai e minha mãe conseguiram ter a vida inteira. É quando deixam de pagar o aluguer que conseguem realizar a entrada da minha única irmã na universidade, e é o que lhes permite aceitar a minha comunicação, aos 19 anos, que não queria mais estudar formalmente; iria ser um autodidata. A situação deles mudou tanto para melhor que puderem olhar com naturalidade a minha decisão. ‘Quero ser artista, quero ser escritor’, e a família toda trabalhou no sentido de eu poder vivenciar o meu sonho. Isso faz com que eu não tenha uma visão amarga da vida; negativa sim, do mundo, não da vida.”
Ricardo recorda então uma frase de Gramsci, a ideia de que não ter uma perspectiva negativa libera espaço na cabeça para ver o que não é ruim, o que não é derrota, o que é possibilidade. “Veja, demo-nos ao luxo de assistir passivamente à crise na Grécia como se nenhuma crise nos pudesse atacar! Essa crença de que somos um povo eleito, um país eleito, de que Deus é brasileiro! A minha posição pessoal é definida pela observação do deslocamento das pessoas negras pelo menos desde o início do século XX. O meu pai nasceu em 1911, 33 anos depois do acto técnico e administrativo que aboliu formalmente a escravidão no Brasil. Ele conheceu pessoas que foram escravizadas. O esforço dessas pessoas foi sempre o de tentar cooperar a partir do mínimo. É o que temos, cada dia é um dia em que você não morreu nem de fome nem de tristeza, naquele dia há mais uma chance.” Daí, a alegria, “uma alegria mais importante do que a esperança, porque a esperança é devir enquanto que a alegria é aqui e agora. É a alegria, inclusive, de não ter morrido. É a alegria como graça. Estou alegre, isso ninguém me tira. Clarice Lispector tem uma frase parecida com isso que é: ‘vamos ser felizes só por teimosia’. Há muita gente querendo que nós nem saiamos mais de casa, que fiquemos só a lamentar o que nos foi tirado.”
Cita então a frase da líder camponesa Margarida Alves, assassinada em 1983 pelos latifundiários da Paraíba. “Uns dois anos de ela morrer perguntaram-lhe numa entrevista: ‘A senhora não tem medo de morrer assassinada pelos fazendeiros?’ E ela respondeu: ‘Medo nós tem, mas não usa’. O pobre é acostumado a não usar o medo que tem.”
Na outra mesa, noutro estado, o Estado Federal de Brasília, Nicolas Behr também decidiu cedo que não faria a universidade apesar de ter estado envolvido nos movimentos universitários. E também ele fala da queda do mito do Brasil enquanto país de samba, praia e futebol, o país alegre. “Descobrimos que somos um país conservador. Mas talvez seja um povo feliz, o que faz com que os políticos abusem muito. O Brasil é o país das grandes distorções”, afirma Behr quando outra voz se ouve na mesa. É a de Lúcia Helena Ribeiro, professora na Universidade de Brasília, especialista em literatura portuguesa, uma gaúcha descendente de portugueses, natural do Rio Grande do Sul e há 19 anos em Brasília. “Há uma grande falta de cidadania.” Behr concorda. “Sim o brasileiro vota e acha que já fez a sua parte.” Quanto ao envolvimento dos intelectuais na campanha, ao apelo que fizeram que que não surtiu o efeito desejado, o poeta afirma: “O escritor, o intelectual, não tem tanta importância mais, porque o livro também não faz parte do nosso dia-a-dia. Trinta por cento dos brasileiros nunca compraram um livro.”
Lúcia Helena fala da descredibilização das universidades junto da população. “Muitos vêem a universidade como um lugar de vagabundos, onde ninguém trabalha. Há uma campanha de demonização. Mas o intelectual também tem alguma culpa, separou-se do mundo enfiado nas suas pesquisas.” Para Behr, “eles são não mais uma referência”. E acrescenta: “Hoje, os reverenciados são os formadores de opinião, os comentaristas, são eles que têm influência. Mas eu espero que a gente continue incomodando.” Como se faz isso? “Escrevendo, publicando.”
Milton Hatoum, o autor de Dois Irmãos e Retrato de Um certo Oriente, amazonense de Manaus, filho de imigrantes libaneses, amigo de Behr que conheceu em Brasília, diz-nos, por sua vez: “Graciliano Ramos dizia, talvez com ironia, que as armas dos escritores são fracas: caneta e papel. Nossa voz é transmitida por um altifalante de baixa potência, cujo alcance é pequeno. Mesmo assim, vários escritores e escritoras manifestam-se em palestras, conferências, artigos na imprensa e nas redes sociais.”
Tarso de Melo, advogado, poeta, natural de Santo André, estado de São Paulo, onde nasceu há 41 anos, refere: “Os escritores podem escrever, claro, e actuar com outros escritores e, principalmente, unir-se a colectivos, formados por pessoas de diferentes áreas. Toda a forma de associação e solidariedade em que puder se engajar será muito importante a partir daqui, inclusive para aprender com as perspectivas de pessoas que não vivem no restrito circuito da literatura, da cultura, das artes. Na sua função específica, além disso, acho que cabe ao escritor rever criticamente a forma como se comunica, escrever cada vez mais com a consciência de que aquele fosso, dito acima, define a circulação e o alcance de seus textos, de suas ideias.” Beatriz Bracher, 57 anos, outra escritora paulistana, tem um lamento. “O meu negócio é escrever e parece que escrever é a coisa mais inútil.” Diz isto e emociona-se. “Tudo o que sei fazer não adianta nada. O que sei fazer não adianta para o que é preciso fazer. Não sei o que fazer”, emociona-se outra vez e a voz some-se. Como se não houvesse muito mais.
“Um escritor pode escrever”, afirma simplesmente o carioca Bernardo Carvalho, 58 anos, autor dos romances Nove Noites ou Mongólia.
A brevidade do comentário de Bernardo de Carvalho tem a ver com o dia em que a proferiu: o dia seguinte à eleição em que não escondia a tristeza. “O Brasil é um dos países mais hipócritas e contraditórios do mundo. O discurso do Bolsonaro se aproveita justamente disso. O discurso de artistas e pensadores tem pouca ressonância num país deseducado, de iletrados e analfabetos, para não falar na pobreza e na violência a que essa gente está sujeita. São mais de 200 milhões de habitantes. A tiragem média de um livro é de três mil exemplares.” Sobre a espécie de descrédito dos intelectuais, diz ainda: “É normal que gente que vota à extrema-direita seja contra os intelectuais, não? Foi a mesma coisa nos Estados Unidos, com Trump.” Diz que é preciso “tentar resistir como for possível”, e conta uma história pessoal de medo. “Horas antes do resultado do segundo turno, saindo de um restaurante nos Jardins [bairro de as cidade de São Paulo, onde o escritor vive] com o adesivo do Haddad na camisa, ouvi de um típico casal da burguesia paulistana, que passava na sua SUV: ‘Vai pra Venezuela, veado!’ O filho adolescente de um amigo foi ameaçado de morte por colegas de escola, uma escola frequentada por crianças da alta burguesia local, depois de ter participado da ocupação de um edifício no centro da cidade, com o movimento dos sem-tecto. É só o começo.”
Lúcia Helena também tem uma história para contar: “Uma menina foi espancada por sete alunos na universidade por andar de mão dada com outra menina.” Behr ouve. Não há muito a dizer, apenas que o discurso de Bolsonaro “veio legitimar qualquer coisa que existia no subterrâneo brasileiro e não vinha à tona”. “Não vinha à tona por pudor, agora sentem que já podem. Já podem tudo porque se sentem protegidos pelo poder que aí vem.”
O medo
É o medo que impede outro escritor de se identificar. Ele tem medo. Também no dia seguinte às eleições diz: “Há um clima bastante tenso no ar. Parte do eleitorado do Bolsonaro já se sente dono do país, como se o resultado das urnas autorizasse uma série de actos de violência. Na noite de domingo, quando saiu o resultado da eleição, pessoas saíram armadas para a rua, para festejar a vitória; outras já se animavam a caçar petistas; negros e LGBT's começaram a ser perseguidos e provocados, e por aí vai. Ou seja, esses eleitores se sentiam acima de qualquer lei, alimentados pelo discurso de intolerância do novo presidente. Uma deputada recém-eleita do partido do presidente fez uma convocação na internet para que os estudantes filmassem as aulas dos professores universitários e as divulgassem, caso eles falassem sobre a eleição e criticassem o presidente eleito. Vários episódios isolados de violência foram surgindo aqui e ali no país. Hoje mesmo, no Congresso, os aliados do futuro presidente tentaram votar o projecto Escola Sem Partido, que busca amordaçar os professores em sala de aula, pois, na visão deles, os professores transformaram a sala de aula em espaço de doutrinação esquerdista; outro projecto que já foi colocado em pauta é a criminalização dos movimentos sociais, como MST e MSTS; o próprio Bolsonaro, em entrevista na televisão, atacou o jornal Folha de São Paulo, ameaçando cortar verbas publicitárias do seu futuro governo. Enfim, essas ameaças, esses ataques geram um clima de insegurança em relação a liberdade de imprensa a partir do próximo ano. Enfim, estou apenas relatando o clima geral. O país, que já estava tenso, está mais ainda.”
Noemi Jaffe, 56 anos, professora universitária, escritora, autora do livro O Que Os Cegos Estão Sonhando, descreve o actual momento como de dormência e perplexidade. “Há muita preocupação e angústia; a gente não sabe o que vai acontecer, as declarações de Bolsonaro são contraditórias. A equipa se contradiz muito. Será que as atitudes vão dar numa ditadura ou tudo será um pouquinho mais moderado? Mas mesmo no melhor cenário vão acontecer muitas perdas.” Jaffe receia que a terceirização da sociedade, anunciada pelo novo presidente, leve a uma diminuição do desejo de frequentar a universidade, associada à intenção de privatizar o ensino superior. “As melhores universidades brasileiras são públicas”, salienta. “Mas a pior coisa em termos de projecto é o Escola Sem Partido [projecto de 2004 que pretende o que chamam uma escola sem doutrinação ideológica]. Isso é o fim, dá vontade de ir embora. Transforma professor e aluno em inimigos. É acabar com a educação.” Lúcia Helena também fala desse temor e diz que não há ensino sem ideologia. Isso não significa que o professor doutrine os alunos. “No dia seguinte às eleições disse na minha aula: ‘Se alguém quiser gravar a minha aula vai ter de pagar porque eu sou cara’.” Era a resposta a uma governante que pedia aos alunos que denunciassem, através de gravações por telemóvel, atitudes suspeitas de professores.
Uma e outra professora não livram a esquerda de culpa. Lembram como Bolsonaro conseguiu atingir o brasileiro mediano para baixo, que está cansado de políticos e de violência. E Noemi sublinha o desprezo votado aos intelectuais. “A esquerda é muito marcada pela intelectualidade. O raciocínio das pessoas é: ‘Vocês teorizam, teorizam, mas não pegam duro’; é a ideia da esquerda caviar que despreza o povo. E não estão totalmente errados. A esquerda no Brasil são muitas esquerdas, mas dá para generalizar; ela se esvaziou, se desiludiu consigo mesma. Depois das manifestações de 2013 e da apropriação do que era da esquerda pela direita, a esquerda praticamente ficou anestesiada, olhando sem conseguir actuar.” Quanto ao medo: “Estava com medo e agora não estou com tanto medo. Acho que não vai haver perseguições aos gays, por exemplo, mas vai ser uma coisa mais subtil e subliminar e quando a gente se der conta já perdeu muita coisa. Perdemos o essencial: os direitos sociais, a educação, a cultura.”
O medo, palavra repetida à exaustão. Um longo eco que atravessa o Brasil. O que quer dizer? Como pode levar à entropia? Que medo é este? “É preciso exorcizar o medo. Passei a minha juventude e parte da vida adulta sob a ditadura civil-militar, fui detido e fichado pelo DOPS [polícia política], mas nunca deixei de protestar contra um sistema opressor. Nessas eleições, quando me sentia angustiado ou acuado, lia poemas de Drummond, Manuel Bandeira, João Cabral, Sophia de Mello Breyner, Herberto Helder, Adonis, Wallace Stevens. A poesia é essencial ao espírito. Lia esses poetas e escrevia o segundo volume da trilogia O lugar Mais Sombrio. A escrita e a leitura me movem e comovem. Mas se for necessário ir às ruas e protestar, farei isto sem hesitar. E, sem hesitar, afirmo que os brasileiros elegeram o mais estúpido e ignorante presidente desta triste América. Esse capitão reformado é, sem dúvida, um homem bruto e oco, sem uma única qualidade ética e moral. Preferiram essa figura sinistra a Fernando Haddad, um professor competente e ex-prefeito de São Paulo. Além disso, Haddad foi um excelente ministro da Educação, sem dúvida o melhor deste país, cujo povo necessita exactamente disso: formação educacional de qualidade.” É Milton Hatoum, triste, por reviver um passado que não queria ver ganhar corpo, outra vez.
“Há uma geração muito derrotada, muito triste, uma geração que não queria passar por tudo isto outra vez”, refere Rodrigo Lacerda. “Ponho-me no lugar deles e tento imaginar. Se eu estou triste, como estarão os que sofreram na ditadura militar e agora não sabem o que aí vem?”
A ressaca
Na ressaca da eleição, Julián Fuks sentiu a urgência de escrever. O escritor de São Paulo, autor de A Resistência, publicou um artigo no jornal britânico The Guardian onde contava o exílio dos avôs, judeus que saíram da Roménia na II Guerra Mundial devido ao anti-semitismo nazi, e depois o dos pais, que fugiram da Argentina na ditadura. Será que era agora a vez dele?, interrogava-se. “O escritor talvez não possa muito num contexto como esse. O escritor pode não mais do que qualquer outro cidadão num contexto como esse. Trava a sua batalha na esfera individual na maior parte dos casos, mas penso que tem a seu favor uma ferramenta fundamental, em particular num país que tem combatido tanto o pensamento, a palavra e a cultura de uma maneira geral. O escritor tem ao seu dispor o seu discurso, as suas palavras, a sua razão e me parece que são armas importantes neste momento. São as únicas armas viáveis e aceitáveis no momento em que o outro lado defende clamorosamente a manipulação e a distribuição de armas literais. Neste momento, o escritor só tem ao seu dispor a sua palavra e com ela pode ter bastante alcance, acredito.”
Milton Hatoum mostra um misto de cansaço e de vontade de não se acomodar. Nunca. Falou muito, escreveu muito, fez campanhas, manifestos. Como Julián Fuks ou outro escritor, Nuno Ramos. Não queriam Bolsonaro em Brasília. Mas o povo quis. Contra os intelectuais, contra toda a argumentação dos escritores. “Uma grande parte direita brasileira e certamente todos os extremistas desprezam ou até mesmo odeiam intelectuais e artistas. São pessoas a que se refere Virginia Woolf no Mrs. Dalloway, uma personagem ‘que vinha da mais imprestável das classes – a dos ricos com verniz de cultura’. No Brasil há poucos verdadeiros liberais (da direita liberal) como se vê em Portugal e em outros países da Europa. Li declarações de jornalistas e políticos da direita portuguesa. Todos criticavam a atitude fascista do capitão [Bolsonaro]. Senti inveja dessa direita”, refere Hatoum. Julián Fuks, sobre isto, diz: “Acho que há um pensamento fortemente anti-intelectual nos tempos recentes, já que essa aliança entre intelectuais e operariado no PT resultou em algo que boa parte da população agora rechaça. O que a gente vê é isso, o pensamento de esquerda e o pensamento académico também sofrem de uma queda de autoridade. E nos casos mais extremos isso se manifesta como perseguição ao próprio pensamento académico e evidente perseguição à esquerda. Nas vésperas das eleições, a gente viu uma investida jurídico-policial nas universidades para que não houvesse troca de ideias, para que não houvesse actos políticos, debates ou pronunciamentos. É uma coisa muito assustadora ver nas universidades esse anti-intelectualismo ganhando corpo de forma bem radical. Dá para ver que essa vai ser uma das fronteiras do confronto, vai ser uma das linhas de frente da defesa da liberdade de cátedra, da liberdade de pronunciamento contra, inclusive, essa noção de escola sem partido, de universidade sem partido, de uma suposta supressão da ideologia nesses espaços quando a gente sabe que essa própria supressão já é por si mesma ideológica.”
Que desafios, então, se põem neste momento ao país? Milton Hatoum responde: “O maior desafio é defender a democracia e a Constituição de 1988. Bolsonaro tomará posse em Janeiro, mas há inúmeros casos graves, verdadeiros atentados à democracia. Em Outubro, um líder sindical e dois eleitores de Fernando Haddad foram assassinados por apoiantes do capitão. Houve e ainda há agressões verbais e físicas contra professores, jornalistas, intelectuais e artistas. Vários campus universitários foram invadidos pela polícia. Há todo o tipo de violação ao estado de direito. E isto não se limita a pessoas ligadas à cultura. Além disso, a floresta amazónica e o cerrado podem ser devastados. É uma tragédia para o meio ambiente e para os povos indígenas.”
Outro desalento. Parece o sintoma comum a todos os escritores. “Nunca pensei assistir a essa crise”, afirma Rodrigo Lacerda, editor, escritor, 49 anos, natural do Rio de Janeiro, a viver em São Paulo, autor do romance Outra Vida. “Era uma crise que ameaça estourar de novo desde a destituição de Dilma Rousseff, há dois anos. O Brasil é como um ex-alcoólico, ele não pode tomar o primeiro copo de whisky ou amanhece três dias depois em Maceió.” É outra conversa à mesa, num restaurante do centro de São Paulo, onde o escritor traça, também ele, um paralelo entre a crise profunda no mercado editorial brasileiro e o estado actual de um Brasil que escolhe alguém como Bolsonaro, por mais que esse Brasil esteja cansado da insegurança, da corrupção, do crime, da pobreza. “É preciso que o centro-esquerda e a esquerda façam uma auto-crítica. Não estamos aqui por acaso”, afirma. Beatriz Bracher vai mais longe nessa ideia: “Não houve um compromisso de esquerda, ou centro-esquerda, um acordo. Cada partido quis cuidar de si e a gente é que está tramado. Sinto-me traída pelo centro-esquerda.”
Maria Esther Maciel, professora, escritora, ensaísta também não esconde a angústia. “O momento é assustador. Nunca pensei que pudesse viver algo assim no meu país: a eleição de um presidente truculento, sustentado por fundamentalistas religiosos, que ameaça as minorias, faz apologia das armas e da tortura, é avesso a práticas ambientalistas e defende o desmatamento da Amazónia, em nome do ‘progresso’ económico. Temo pelas minorias raciais, sexuais, culturais. Temo pelos pobres. Temo pela cultura, pela educação, pela pesquisa. É o momento sombrio de um país à beira do precipício.” É um temor semelhante ao que sente Beatriz Bracher que enumera uma série de iniciativas e de ONG’s a trabalhar no Brasil em defesa dessas minorias, ou, como também prefere dizer, dos mais vulneráveis. Com Noemi e com Esther Maciel, também refere o fosso entre elites intelectuais e o resto da população. É Esther quem sintetiza: “Infelizmente, a ignorância – seja a decorrente da falta de investimentos na educação, seja a estimulada por grupos religiosos e pelos meios de comunicação — venceu o esforço que muitos escritores, artistas, intelectuais e cientistas fizeram para impedir o avanço dessa extrema-direita no Brasil. Houve também o ódio ao ‘petismo’ que cegou grande parte dessas pessoas para os perigos da eleição de Bolsonaro. Certamente, os escândalos de corrupção amplamente divulgados pelos media contribuíram para isso, assim como o ódio e a intolerância. Soma-se a isso a campanha suja das fake news que confundiu muita gente.”
E a literatura clama pela literatura. “A certa altura do processo eleitoral, lembrei-me muito do romance de Saramago, Ensaio sobre a Cegueira. Tem tudo a ver com o que acontece no Brasil hoje”, diz ainda Maria Esther Maciel, 55 anos, natural de Patos de Minas, cidade a noroeste de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais, que lembra, como durante a campanha eleitoral, os grupos reacionários se empenharam a disseminar a palavra “comunista” para designar artistas, escritores e professores. Maciel diz ainda que a partir de agora é preciso “exercitar, mais do que nunca, os poderes da imaginação e dos sentidos, para que a vida seja possível”. Ou seja, “munir-se de um pouco de utopia para enfrentar as grandes e pequenas violências que assolam a realidade presente; empenhar-se a mostrar o aqui/agora do mundo fora dos enquadramentos; ou, parafraseando Sophia, apreender a não ceder aos desastres. Ela disse ‘sou aquela que não aprendeu a ceder aos desastres’.”
Todos, sem excepção, falam do fosso entre escritores e população. Como Milton Hatoum, que lhe acrescenta um “mas”: “Mas não podemos esquecer que muitos eleitores ‘escolarizados’ e ‘diplomados’ votaram em Bolsonaro. São pessoas ingénuas, sem discernimento político, sem a compreensão do processo histórico. Mas entre esses diplomados há também muitos oportunistas, gente que não quer perder privilégios. Por exemplo, Bolsonaro foi o único deputado que votou contra o PEC das Domésticas [nome popular dado à Proposta de Emenda à Constituição n.° 66 de 2012 que dá novos direitos às empregadas domésticas no Brasil]. Muitos brasileiros abastados, acostumados à boa vida, querem manter empregadas mal remuneradas, sem direitos sociais e trabalhistas. Na minha infância em Manaus, muitas empregadas trabalhavam sem receber salário e eram humilhadas pelas patroas. Eram as ‘agregadas’ das famílias burguesas, personagens que aparecem nos romances de Machado de Assis e de outros escritores daquela época. Sob vários aspectos, o Brasil ainda não saiu do século XIX.”
O tom de Rodrigo Lacerda traz uma serenidade triste: “Desde a redemocratização o Brasil, aos trancos e barrancos teve avanços, conseguiu travar a inflação, estabilizar a economia, que era básico para tudo o resto poder acontecer. Sobretudo no período de Fernando Henrique Cardoso e na primeira metade do governo Lula esses avanços foram sensíveis para a população. Mas depois o Brasil se acomodou e dormiu nos próprios louros e essa paralisia institucional acabou por comprometer os bons resultados. A constatação de que o bom momento tinha passado e que a gente não tinha aproveitado para fazer algumas reformas importantes, como a legislação trabalhista, que é dos anos 40, virou num jogo de culpabilização mútua e tomou uma forma que não tinha antes. A passagem do governo de Fernando Henrique Cardoso para o de Lula foi uma verdadeira passagem democrática, chamada festa da democracia. O Brasil teve o gostinho do que é viver uma transição de uma maneira civilizada. Mesmo pessoas que não votaram no Lula estavam felizes. Parecia que o Brasil tinha aprendido o que era democracia. Um trabalhador podia ser eleito presidente da República. Mas isso se desmoronou nos últimos anos. O fosso foi-se reabrindo. E agora estamos assim. É muito triste.”
Da mesa do restaurante de São Paulo, ainda em Outubro, ainda na ressaca mais dura, passamos para a mesa do bar em Belo Horizonte, já Novembro, outra maneira de sentir a mesma derrota. Estamos outra vez com Ricardo Aleixo num reduto de resistência. Olham-se os rostos à volta, há todas as gerações, homens e mulheres. Conversam, comem, bebem uma cerveja, uma cachaça. Os empregados de mesa parecem conhecer toda a gente. Pergunta-se a Aleixo se ali alguém votou Bolsonaro. “O dono”, responde. “Descobri o noutro dia.” Aponta para uma fotografia na parede. “Aquele homem ali. É o senhor Olímpio, muito famoso aqui. Ele usava no peito uma tarjeta do Partido Comunista em plena ditadura. Ajudou a esconder muita gente. Este lugar foi aberto em 1962”, conta, num momento de grande vigor crítico ligado ao cinema. “Este era um dos pontos de encontro de gente como Silviano Santiago, Sérgio Sant'Ana, os músicos; o primeiro trabalho de Milton Nascimento foi aqui num bar chamado Lua Nova. Este lugar é memória viva. O senhor Olímpio tinha um modo muito próprio de lidar com a clientela. É um lugar de memória da resistência contra a ditadura militar. Caetano Veloso lançou aqui o livro Alegria Alegria. Tudo aqui está marcado pela arte e pela cultura. Ironicamente... o dono votou Bolsonaro. Eu continuo a vir aqui como resistência e como provocação...” Muda de assunto. Aquele incomoda-o. “É hora de ser maduro. E não cometer um pecado típico do Brasil: deixar para as novas gerações a tarefa de reconstrução. A geração de hoje é feita de todos os que estão vivos hoje.”