"É ilusório pensar que o Estado-nação constitui um casulo protector contra a globalização"
Sandrine Kott é professora de História Europeia Contemporânea na Universidade de Genebra e é uma das mais reputadas especialistas na história do Estado social e das relações de trabalho na Europa.
Sandrine Kott tem uma obra extensa e de referência na história do Estado social e das relações de trabalho na Europa, sobretudo em França e na Alemanha. Recentemente co-editou Globalizing Social Rights. The International Labour Organization and Beyond (2013) e Nazism across Borders (2018). É ainda autora de Day to Day Communism. State Enterprises in East German Society (2014).
O internacionalismo tem sido um tópico negligenciado na história. Tal tem mudado recentemente. O que explica uma e outra coisa?
Durante muito tempo, os historiadores cujas carreiras e redes profissionais se organizavam estritamente à escala nacional, negligenciaram o internacionalismo como realidade ideológica, social e política. Hoje, os estudos em torno deste tema têm-se multiplicado e assumido várias formas, reflectindo não só a internacionalização da profissão, mas também novas preocupações. Em resposta à globalização económica que vivemos, os historiadores da economia têm produzido múltiplos trabalhos sobre as interligações económicas e sobre a financeirização global. Na realidade, estes trabalhos inscrevem-se numa corrente já antiga que, desde a Segunda Guerra Mundial, se foca nas “economias-mundo”, sobretudo em épocas mais recuadas. Os trabalhos sobre o Mediterrâneo de Fernand Braudel (1949) ou sobre Sevilha e o Atlântico de Pierre Chanu (1959) constituem fontes de inspiração, apesar de frequentemente esquecidos pelos nossos colegas norte-americanos. Ainda assim, é verdade que os historiadores da economia contemporânea trabalham muitas vezes sobre períodos mais recentes e interessam-se mais pelas questões financeiras do que pelas trocas comerciais. C’est dans l’air du temps.
Onde se nota mais esse interesse recente?
É sobretudo no campo da história social, cultural e política que a atenção dada à dimensão internacional levou a uma forte renovação das abordagens analíticas. Certos temas tradicionalmente estudados no contexto nacional, como a imigração ou as guerras, passaram a ser tratados do ponto de vista internacional. Os historiadores privilegiam cada vez mais o estudo de fluxos migratórios a partir dos países de origem, ou de fenómenos de hibridização, relativamente às análises das legislações nacionais sobre a imigração ou às formas de integração num espaço nacional delimitado. Da mesma maneira, as guerras, tradicionalmente estudadas sob o ângulo duma expressão agudizada do nacionalismo, que elas de facto são, podem também ser vistas como momentos de troca internacional. Numa perspectiva de “conhecer o seu inimigo”: os governos dos países em guerra inspiraram-se mutuamente na planificação das suas economias de guerra, por exemplo. Por outro lado, a constituição de organizações internacionais após as guerras decorre certamente do objectivo de preservar a paz, mas é também fruto das trocas que tiveram lugar entre as forças beligerantes durante os conflitos. As associações e organizações internacionais que durante muito tempo foram negligenciadas pelos historiadores tornaram-se, por isso, objectos ou terrenos de investigação particularmente populares.
O internacionalismo nunca foi incompatível com projectos nacionalistas e com a ideia de um “mundo de nações”. Porquê?
O século XIX marcou a emergência e a consolidação das nações na Europa ocidental, tanto na definição daquilo que elas incluíam como daquilo que elas excluíam. Ora, é neste mesmo período que se difundem os projectos internacionalistas, como as associações e organizações internacionais. Esta concomitância revela de facto uma relação complexa entre o nacionalismo e o internacionalismo. O nacionalismo é ele mesmo um projecto internacional, na medida em que se impõe como um modelo universal de organização política durante o século XX. É, aliás, a generalização do modelo de Estado-nação que torna possível, mas também necessária, a criação de associações e de organizações internacionais.
O carácter internacional destas associações e organizações define-se pelo facto de elas constituírem espaços onde representantes (oficiais ou não) de estados diferentes se encontram de forma regular para discutir questões que vão além do perímetro nacional. Nestes espaços internacionais, as lógicas nacionais estão duplamente presentes: por um lado, os representantes nacionais defendem os interesses específicos dos seus governos nacionais, por outro, funcionários, especialistas internacionais, e até mesmo activistas obtiveram as suas formações em espaços nacionais, onde não raramente se ligaram de forma estreita a redes nacionais de origem.
Isto não impede, contudo, a emergência de projectos e lógicas internacionais. Estes inscrevem-se na formulação de causas cuja dimensão internacional está menos ligada ao facto de elas serem defendidas por actores de várias nações do que ao facto de elas apresentarem uma mensagem que é global: as associações contra a escravatura no final do século XVIII são disto um caso exemplar. Na sua maioria de origem anglo-saxónica, elas defendem uma mensagem que é universal e que as torna “internacionais”. Hoje, as associações de defesa dos direitos humanos ou do ambiente, de um modo geral centradas no Ocidente no que à criação e composição diz respeito, assumem-se como “internacionais”. Além disso, tanto nas organizações intergovernamentais como nas associações internacionais, funcionários, especialistas internacionais e activistas elaboram análises e métodos de trabalho que se inspiram em diferentes culturas nacionais e se enriquecem mutuamente. Criam-se assim normas e soluções internacionais que podem posteriormente servir de inspiração aos decisores nacionais, e das quais diferentes grupos sociais, em contextos nacionais diversos, se podem apropriar.
São, portanto, realidades interdependentes?
De tudo isto decorre claramente que o nacionalismo e o internacionalismo são realidades co-construídas e que, contrariamente ao que certos discursos nacionalistas afirmam, o internacionalismo não constitui de forma nenhuma uma ameaça contra o Estado-nação ou contra as identidades nacionais. Pelo contrário, permite um espaço de expressão e de enriquecimento.
O internacionalismo tem sido tradicionalmente associado a projectos “liberais” ou “socialistas”, mas existiram (e existem) várias modalidades de internacionalismo. Pode falar-nos um pouco sobre esta diversidade de processos históricos?
Os historiadores trabalharam inicialmente sobre os projectos liberais e socialistas porque, surgindo de certa forma com os Estados-nação, são os primeiros a apresentar-se aberta e claramente como internacionalistas. São, aliás, o espelho um do outro. Se Marx propunha que os proletários não tinham pátria e que se deviam organizar internacionalmente, isso decorria de o capitalismo liberal ser, também ele, internacional. Estes dois projectos organizam-se em modalidades políticas precisas: grandes associações internacionais multiplicam-se ao longo do século XIX. Do lado socialista, está a Associação Internacional de Trabalhadores, criada em 1864, e mais tarde a Internacional Socialista, criada em 1889. Do lado liberal, verificamos uma multitude de congressos, movimentos e associações que geram, a partir do século XIX, mas sobretudo no início do século XX, grandes organizações internacionais.
Como a Sociedade das Nações...
A Sociedade das Nações (SDN), fundada em 1919, no seguimento da Primeira Guerra Mundial, e que precede a Organização das Nações Unidas, exclui inicialmente a então nova União Soviética e todos os países colonizados (excepto a Índia) da possibilidade de adesão. O seu internacionalismo era estritamente limitado pela forma como as grandes potências ocidentais vitoriosas o concebiam. A SDN é rodeada por uma multitude de organizações e associações internacionais que se inspiram igualmente duma visão liberal do mundo e que são dirigidas pelas elites sociais desses mesmos países. Neste contexto, os comunistas criam um internacionalismo concorrente fortemente centrado na defesa da União Soviética como primeiro país comunista. O movimento comunista internacional organiza, ademais, populações trabalhadoras numa miríade de organizações e permite a participação aos povos colonizados. Esse internacionalismo concorrente, que consegue atrair uma parte dos países recentemente descolonizados, constitui uma verdadeira alternativa e abre a porta à contestação do projecto liberal, favorecendo soluções de terceira via. Contudo, ao longo da década de 1970, as patentes falhadas da economia planificada, assim como a denúncia repetida de desrespeito pelas liberdades e direitos humanos, enfraquecem consideravelmente o projecto universalista comunista. O projecto internacionalista que dele decorre perde assim, e de forma definitiva, a sua força de atracção.
Os projectos internacionalistas não começam ou terminam nessas duas manifestações. Pode dar exemplos?
Há outras formas de internacionalismo. O mais antigo e mais poderoso é o internacionalismo cristão que se organiza de maneira centralizada no catolicismo (podemos mesmo considerar o catolicismo como a mais antiga organização internacional) ou em redes mais difusas no caso do protestantismo. Além da mensagem universal largamente difundida no mundo, o cristianismo ou o islão, que são religiões prosélitas, também inspiraram a criação de múltiplas associações internacionais, especialmente de carácter caritativo, mas não só. Ao longo do século XIX, por exemplo no campo sindical, estas associações podem mesmo produzir um internacionalismo rival dos dois primeiros. A sua força vai-se intensificando, especialmente nas últimas décadas do século.
Finalmente, os historiadores têm-se debruçado mais recentemente sobre o internacionalismo fascista e de extrema-direita. Eles mostraram, como demonstram hoje as iniciativas de Steve Bannon, que, apesar do seu nacionalismo declarado, os movimentos de extrema-direita estão estreitamente ligados e que os seus líderes mantêm diálogo constante entre si. Os movimentos e governos populistas ou de extrema-direita inspiram-se também uns nos outros na formulação das suas agendas políticas. O salazarismo português serviu de inspiração a outros regimes cristãos e conservadores a partir dos anos 30. É o caso do marechal Pétain, em França, durante a Segunda Guerra Mundial. Os nazis, por seu turno, criaram organizações e movimentos internacionais que eles utilizaram sobretudo para tentar difundir o seu modelo de organização política e social. O internacionalismo nazi é uma forma disfarçada de imperialismo, como mostram as organizações internacionais que ele inspira, todas centradas em torno da celebração do Grande Reich alemão.
Esta diversidade lembra-nos que o internacionalismo é, tal como o nacionalismo, um instrumento de inclusão, mas também de exclusão, e até de discriminação. É por isso importante ficar atento às formas precisas que o projecto internacional assume.
Nas últimas décadas tem trabalhado sobre a história da “globalização dos direitos sociais”. Quais são os seus aspectos fundamentais?
A questão dos direitos sociais constitui uma belíssima ilustração da dialéctica complexa que une o nacionalismo e o internacionalismo e dos efeitos perversos do discurso nacionalista. A partir do primeiro terço do século XIX, alguns grandes industriais, preocupados com a necessidade de uma mão-de-obra qualificada e em boa saúde, procuraram limitar e enquadrar o trabalho das crianças e das mulheres, dois grupos excluídos das organizações políticas e sindicais e por isso impossibilitados de se fazer ouvir. Eles consideraram, contudo, que a regulação do trabalho num só país iria prejudicar a concorrência entre as empresas e defenderam por isso uma legislação social de cariz internacional. Na segunda metade do século XIX, os países industrializados da Europa ocidental adoptaram progressivamente medidas sociais que protegiam os trabalhadores assalariados, a fim de evitar uma exploração excessiva da mão-de-obra, que poderia colocar em perigo a população e, portanto, o próprio Estado-nação. Eles exploraram medidas legislativas que favorecessem o desenvolvimento do diálogo social e que evitassem revoltas e revoluções. Através de programas de segurança social e diferentes formas de responsabilização do estado por necessidades fundamentais, acabaram por gerar processos de redistribuição social.
Que explicam a emergência dos Estados sociais...
Estas legislações sociais nacionais deram origem aos Estados sociais, os quais permitiram o reforço dos laços sociais entre os que eram beneficiados pelos programas de protecção, além de contribuírem fortemente para a construção nacional, incluindo as populações beneficiárias e excluindo as outras. É com este pano de fundo que os discursos populistas actuais insistem no facto de o Estado-nação constituir um casulo protector para as populações fortemente afectadas pela globalização, ao mesmo tempo que rejeitam quem, segundo eles, beneficiariam de forma ilegítima das vantagens desse casulo.
Quão “nacional” é o direito laboral de cada país?
Importa lembrar que as legislações nacionais na Europa e no mundo foram elaboradas numa conversa internacional. As soluções implementadas diferem entre países, mas organizam-se em torno de um número de modelos simples, elaborados através de discussões em arenas internacionais e posteriormente difundidos. A concorrência virtuosa entre as nações tem aqui um papel muito importante. É verdade que as normas sociais internacionais, como as da Organização Internacional do Trabalho ou as mais recentes da Comissão Europeia, não se impõem de forma automática aos governos nacionais, mas servem de quadro de referência e grupos nacionais podem apropriar-se delas.
Pode dar um exemplo?
É o caso da recente convenção da OIT sobre os trabalhadores e trabalhadoras domésticos em 2011. Esta convenção regula um grupo fortemente feminizado e que inclui uma proporção considerável de migrantes. Estes trabalhadores são por isso duplamente marginalizados nos espaços nacionais e por essa razão são mais dependentes da protecção internacional que outros. A maneira através da qual os grupos de activistas se envolveram nesta questão é reveladora da importância simbólica, mas também prática, que uma regulação internacional pode ter para estes trabalhadores, que são indispensáveis à prosperidade económica dos países em que trabalham.
Se é verdade que a redistribuição social se faz essencialmente num quadro nacional ou infranacional (regional ou local), é falso dizer que não há redistribuição internacional. Os fundos regionais europeus contribuíram fortemente para a elevação do nível de vida das populações mais desfavorecidas na Irlanda, nos países do Leste e no Sul da Europa.
Enfim, num mundo em que as empresas multinacionais escapam maciçamente às regulações sociais nacionais e, pela evasão fiscal, não participam na redistribuição social é ilusório pensar que o Estado-nação constitui ainda um casulo protector contra a globalização.
Tradução de Tiago Moreira Ramalho