A guerra que mudou o mundo

A Grande Guerra mudou o mundo e as suas consequências ainda hoje se fazem sentir. Quando as tropas marcharam para o conflito, em Agosto de 1914, ninguém imaginou que não viesse passar o Natal a casa. Enganaram-se redondamente. A guerra arrastou-se no tempo e alastrou a vários continentes. Foi a primeira guerra industrial e de massas. Nas negociações da paz, o debate político e diplomático era sobre “as responsabilidades”. E entre os vitoriosos não havia dúvida: a responsabilidade era da Alemanha. Uma reflexão sobre o mundo que saiu da Grande Guerra, 100 anos depois do Armistício.

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Harold M. Lambert/Lambert/Getty Images

Faz hoje cem anos. A 11 de Novembro de 1918, era assinado o Armistício que punha fim àquela que todos chamavam a Grande Guerra. Tinha começado quatro anos e meio antes, a 28 de Junho de 1914, quando um nacionalista sérvio, Gravrilo Princip, assassinara o herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, o arquiduque Francisco Fernando, na ponte velha da pequena cidade de Sarajevo. A Europa ficou chocada, mas talvez não fosse motivo para preocupação. Afinal, não era o primeiro e não seria o último dos assassinatos políticos. Eram sempre uma comoção interna, mas nunca tinham tido repercussão internacional. Jamais se imaginou que tal pudesse desencadear uma crise e muito menos um conflito à escala mundial. Porém, o clima de nacionalismo exacerbado, a teia de acordos secretos entre as potências europeias e uma sucessão de acontecimentos mal entendidos conduziu, em pouco mais de um mês, a uma guerra generalizada.

Quando as tropas marcharam para a guerra, em Agosto de 1914, todos pensaram que esta guerra seria como as outras: limitada no tempo, no espaço, nos meios e nas consequências. De um lado e de outro dos beligerantes — potências centrais e aliados — ninguém imaginou que não viesse passar o Natal a casa. Enganaram-se redondamente: políticos e diplomatas, generais e soldados e a própria população civil. A guerra não foi curta no tempo: foi longa e durou mais quatro anos e meio. Não foi circunscrita na geografia: na procura de mais forças e novas alianças, a guerra alargou-se das grandes potências beligerantes à periferia europeia, aos territórios coloniais e teve repercussões no Médio e Extremo Oriente. Os Estados Unidos, na tradição da doutrina Monroe, entenderam ficar afastados das questões europeias. Mas em 1917 a guerra submarina alemã ataca um navio mercante no Atlântico, pondo em causa os interesses comerciais americanos e a liberdade nos mares. A Alemanha, por outro lado, incita o México a invadir os Estados Unidos. E estes dois simples acontecimentos foram o bastante para mudar a posição americana. Os Estados Unidos entraram em guerra em 1917 e desequilibraram, definitivamente, a balança estratégica a favor dos aliados.

A guerra também não seria limitada nos meios. E por uma simples razão: porque não era uma guerra, apenas, entre exércitos; era uma guerra ente nações. Uma guerra que mobilizou, bem entendido, milhões de soldados e as tecnologias militares mais avançadas. Mas que mobilizou muito mais do que isso, nações inteiras. A economia, a sociedade e a opinião pública, tudo se organiza em função da guerra: a indústria para a produção do armamento; os transportes para a mobilização das tropas; o mercado de trabalho que, com os homens na frente de batalha, se abre às mulheres; a propaganda para moralizar as tropas, mobilizar as opiniões públicas e legitimar o esforço de guerra. O Estado cresce com as novas funções: planeia, organiza, intervém, onde jamais pensara intervir. Os governos reforçam os mecanismos de controlo sobre a economia e a sociedade. É a grande guerra das nações e a primeira guerra industrial e de massas. Militares e civis estão todos em guerra. É essa a lógica da guerra total. As consequências, essas, foram devastadoras. Os números não conseguem traduzir o horror: 10 milhões de soldados mortos, 20 milhões de feridos e mutilados, milhares de civis mortos durante o conflito, vítimas da fome da epidemia ou da violência. E, claro, o colapso de três impérios: o alemão, o austro-húngaro e o otomano.

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Soldados britânicos na Batalha de Mons Mansell/The LIFE Picture Collection/Getty Images

Uma nova ordem

 A Grande Guerra mudou o mundo e as suas consequências ainda hoje se fazem sentir. Dos tratados de paz surgiram novas ideias, uma nova geografia política e uma nova ordem internacional. Muitas das fronteiras na Europa e no Médio Oriente são, ainda hoje, o resultado dos acordos de paz do pós-Primeira Guerra. Do colapso dos grandes impérios autocráticos e multinacionais, agora reduzidos nas suas fronteiras, nasceu uma pluralidade de Estados com nomes nunca vistos, como Jugoslávia ou Iraque. Uns, nos Balcãs, cujas fronteiras correspondiam a pequenas nacionalidades, outros, no Médio Oriente, em que as fronteiras não correspondiam nem às nações nem às confissões religiosas. Não sabemos ao certo o que teria acontecido se o destino tivesse sido outro, mas o que sabemos é que desde então a violência dos nacionalismos étnicos ou dos fundamentalismos religiosos não deixou de fazer vítimas e espalhar o horror.

Nas negociações da paz, o grande debate político e diplomático era sobre “as responsabilidades” da guerra. E entre as potências vitoriosas não havia dúvida: a responsabilidade era da Alemanha. Apesar da moderação americana do Presidente Wilson, britânicos e, sobretudo, franceses, tinham um só objectivo: a Alemanha tinha de pagar. Tinha de pagar e pagou. Reduzida nas suas fronteiras, mutilada no seu território e obrigada ao pagamento de pesadas reparações e indemnizações de guerra. Numa palavra, politicamente, humilhada.

O resultado político do tratado de paz e as penalidades impostas à Alemanha foram sentidas por muitos alemães como ilegítimas e rapidamente apelidadas como Diktat. Estava aberto o caminho para esse terrível problema que por vezes surge na vida das pessoas como das nações e que se chama ressentimento. Quando Adolf Hitler surge e promete acabar com o Diktat, contava já com esse poderoso aliado. Mas o ressentimento não funcionou apenas entre os derrotados. Funcionou também entre os vitoriosos, insatisfeitos com a sua vitória. Foi o caso da Itália, que nunca obteve, à mesa das negociações, as conquistas territoriais que achava corresponderem ao seu esforço de guerra e a que, entendia, tinha direito. Ora, foi em boa medida esse mesmo ressentimento que ajudou Benito Mussolini a chegar ao poder, em 1922.

A guerra deixou marca também na Rússia czarista. Ainda em plena guerra e por causa da guerra, a revolução russa de 1917 depõe o império dos czares e funda um regime de tipo novo: a União Soviética. Obrigada a uma paz separada e mutilada no seu território, instaura um regime comunista que abre um conflito ideológico e político que marcará todo o século XX: para uns, entre o capitalismo e o socialismo, para outros, entre o totalitarismo e a democracia. Uma coisa é certa, só a falência do comunismo, a queda do império soviético e o fim da Guerra Fria puseram termo a este conflito que a Grande Guerra tinha aberto.

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Vagão-restaurante, na floresta de Compiègne, França, onde foi assinado o Armistício. Na primeira fila, da esquerda para a direita, o almirante G. Hope, o general Weygang, a almirante R. Wemyss, o marechal Ferdinand Foch (comandante da Tríplice Entente) e o capitão Marriot. O político Matthias Erzberger, não representado na imagem, assinou pelo lado alemão Roger Viollet/Getty Images

A herança foi pesada no Médio Oriente. Das ruínas do vasto império otomano nasceu no pós-guerra uma Turquia minguada, moderna e laica. Mas desde 1916 que a França e a Grã-Bretanha tinham dividido a região em zonas de influência: grosso modo, a Síria e o Líbano para a França; a Jordânia e o Iraque para a Grã-Bretanha. À boa maneira imperialista, as fronteiras traçadas para os despojos pós-otomanos eram arbitrárias e correspondiam mais aos interesses das potências europeias do que às realidades locais. Ainda hoje são causa de instabilidade, conflito e guerra. Mas pior do que isso, logo em 1915, os britânicos prometem aos guardiões do lugar santo de Meca a independência para os árabes, em troca de uma aliança na luta contra o Império Otomano. E, em 1917, a célebre declaração Balfour promete, precisamente, o contrário para os judeus: uma pátria na Palestina. De então para cá, sionismo e nacionalismo árabe não mais pararam de se combater e o conflito israelo-árabe está longe de ter um fim. 

Mas os efeitos da guerra chegaram ao Extremo Oriente. Ambas as potências asiáticas, China e Japão, lutaram ao lado dos aliados. E ambas saíram insatisfeitas com a paz e desiludidas com o Ocidente. Seguiram, contudo, caminhos diferentes. O Japão, sentindo-se maltratado pelas “potências brancas”, quis introduzir uma cláusula de igualdade racial na declaração da Sociedade da Nações. O Presidente Wilson, oriundo do Sul dos Estados Unidos, sabia que uma tal cláusula jamais passaria no Congresso, pondo em perigo a ratificação americana da Sociedade das Nações. Recusou liminarmente, no que foi apoiado pelos europeus. Esta recusa ocidental foi vista como humilhação e pretexto para o desenvolvimento do imperialismo e do militarismo japonês de que o episódio final seria o ataque à base norte-americana de Pearl Harbour, em plena II Guerra Mundial, a 7 de Dezembro de 1941.

Por seu lado, a China tinha uma outra pretensão: o território sob controlo alemão na província de Shandong, ao sul de Pequim. As potências ocidentais negaram também tal pretensão. E pior do que isso entregaram-na, temporariamente até 1922, ao Japão como mecanismo compensatório da recusa da cláusula racial. O resultado não foi só o agravamento da rivalidade entre as duas potências asiáticas. Foi também o afastamento dos nacionalistas chineses em relação ao Ocidente e o princípio da influência de um novo modelo vindo da União Soviética. O Partido Comunista Chinês é fundado em 1920 e muitos dos desiludidos com o desfecho da paz e a democracia ocidental, em 1919, aderiram ao partido. Anos mais tarde, Mao Tsetung iniciava a longa marcha, triunfante em 1949. A China comunista ainda hoje aí está.

A deslocação do centro do mundo

O teatro central da guerra foi a Europa, mas os impérios coloniais das potências europeias foram arrastados pelo vórtice do conflito.  Nos domínios de povoamento britânico como o Canadá, a Austrália, Nova Zelândia ou a África do Sul, a participação na guerra foi vista como pertença à “família britânica”, mas ao mesmo tempo como força e afirmação nacional. Nas colónias, a mobilização política e a participação militar das populações não europeias, africanas ou asiáticas no esforço de guerra dos respectivos impérios foi fundamental na formação das elites independentistas e dos futuros movimentos anticoloniais.

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Soldados celebram a assinatura do Armistício Time Life Pictures/Getty Images

Mas, como é obvio, o essencial passava-se entre a Europa e os Estados Unidos. Ou, dito de outro modo, entre o declínio da Europa e a ascensão dos Estados Unidos. A Grande Guerra enfraqueceu a confiança da Europa em si própria e reforçou o excepcionalismo americano, no sentido em que os Estados Unidos se viam como diferentes e melhores que o resto do mundo. Antes da guerra, a Europa era o centro do mundo, depois da guerra, os europeus descobriram que o centro se deslocara para os Estado Unidos. A Europa estava economicamente devastada e politicamente balcanizada. A América era agora o país mais industrializado, o que tinha o maior stock de ouro, a moeda mais forte e era o maior credor a nível mundial. A grande praça financeira mudara-se para o outro lado do Atlântico: de Londres para Nova Iorque, e a moeda de referência internacional deixara de ser a libra para passar a ser o dólar. Mas a hegemonia económica tinha agora uma tradução política e militar. Os Estados Unidos eram a grande potência emergente e a nova ordem internacional foi uma ideia sua e em particular do Presidente Woodrow Wilson. Contra a velha diplomacia secreta que acreditava ter levado à guerra, propunha uma diplomacia aberta que deveria ser pública e institucionalizada numa organização internacional. A guerra ficaria fora da lei e os Estados comprometiam-se com a resolução pacífica dos conflitos. A Sociedade das Nações foi essa primeira tentativa de uma organização especificamente destinada a garantir a segurança internacional e a paz. Não teve sucesso, mas a ideia perdurou e a sua sucessora — a Organização das Nações Unidas — aí continua.

Claro que houve uma outra consequência, essa mais negra e quiçá menos visível: a brutalização das sociedades, na expressão de George L. Mosse — a exposição à violência quotidiana, ao sofrimento extremo e à banalização da morte. Brutalização de que talvez o absurdo da poesia Dada ou pesadelo da pintura surrealista sejam ao mesmo tempo a melhor expressão e a forma de a exorcizar.

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