Pronto para ser co-piloto de Kapuscinski em Angola?
Acaba de chegar às livrarias a primeira tradução da controversa biografia de Kapuscinski e, agora, estreia Mais Um Dia de Vida, filme baseado no relato da viagem que o repórter de guerra polaco fez a Angola antes da independência.
Para simplificar, quando chega à frente sul da guerra de Angola, o jornalista Ryszard Kapuscinski apresenta-se como “Ricardo”. Num lugar onde o mais provável é estarem todos mortos no dia seguinte, é inútil perder tempo com um estranho nome polaco.
Falta um mês para Angola declarar a independência e o país está em guerra civil. EUA, URSS, África do Sul e Cuba armam e apoiam as três facções angolanas que lutam pelo poder.
Em Luanda, o mítico repórter de guerra ouve falar de Farrusco, um ex-comando português que se juntou ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e defende a última linha da frente, às portas da Namíbia, sem homens, sem tanques, sem carros blindados e sem munições. “Ricardo” decide ir ao seu encontro. É correspondente da PAP, a agência de notícias da Polónia, e acredita que as notícias importantes estão ali. São 1200 km de estrada. Quando parte, todos se despedem convencidos de que não regressará vivo.
Mal chega a Pereira d’Eça, hoje Ondjiva, a 40 km da Namíbia — na altura ainda sob administração sul-africana —, Kapuscinski antecipa o colapso. A unidade de Farrusco “está condenada ao aniquilamento”, escreve em Mais Um Dia de Vida, Angola 1975 (reeditado pela Tinta-da-China em 2013), o livro onde relata a sua viagem a Angola pouco antes da independência. “Não há salvação possível.” Farrusco tem 120 homens para defender uma frente que vai de Lubango à fronteira com a Namíbia (450 km) e do Atlântico à Zâmbia (1200). Hoje sabemos que estava certo: a Operação Savana, uma invasão secreta de três mil tropas sul-africanas, começara horas antes e, em poucas semanas, o sul de Angola estava nas mãos da UNITA.
“Sabíamos que os sul-africanos já estavam a sete, dez quilómetros de nós. Eu disse isso ao Ricardo. Por isso, ele chegou, passou umas horas comigo e foi-se embora no mesmo dia. Não dormiu connosco. Nós estávamos praticamente em combate”, conta ao PÚBLICO Joaquim António Farrusco, hoje general das Forças Armadas angolanas, num português ainda marcado pelo sotaque alentejano. “Três ou quatro dias depois fui ferido. O Ricardo soube. Quando chegou a Benguela, alguém lhe disse: ‘O Farrusco foi ferido em combate, está no hospital a morrer.’ A partir daí, o Ricardo não soube mais nada de nós e nunca mais veio a Angola.”
Em 2000, ainda a guerra civil não tinha acabado, Kapuscinski regressa a Mais Um Dia de Vida — dos quase 20 livros que escreveu, o seu favorito — e acrescenta-lhe um capítulo. É aí que se lê: “Volto em pensamento àqueles que conheci naquela época. O que será feito deles? [Do] forte, entroncado, corajoso Farrusco? Mesmo que tenha sobrevivido, seria demasiado velho para estar agora nas trincheiras. Lembro-me de ele dizer que lhe tinha acabado de nascer um filho. Por isso, se eu encontrasse um jovem oficial na frente angolana agora, lhe perguntasse o nome e ouvisse que era Farrusco, responderia: Há anos, andei num jipe com alguém que tinha o mesmo apelido. Sim, diria o jovem oficial, era o meu pai.”
Farrusco vive há quase meio século em Angola e agora está aqui, neste lugar improvável — o café do cinema Ideal, no Chiado, em Lisboa — por causa de Kapuscinski. Outra vez.
“Uma mina de ouro”
Em 2008, foi entrevistado por Artur Domoslawski, autor da controversa biografia Kapuscinski, Uma Vida, que a Assírio & Alvim acaba de lançar em Portugal, na qual o autor, seu antigo colega e amigo, dá voz aos críticos que acusam Kapuscinski de exagerar a realidade. Agora, está em Lisboa a convite do realizador de documentários espanhol Raúl de la Fuente. Fã de Kapuscinski desde a adolescência, De la Fuente pegou em Mais Um Dia de Vida e fez um filme com o mesmo nome, que estreou esta quinta-feira em Portugal. Com Amaia Remirez, sua mulher e produtora de muitos dos seus filmes, De la Fuente foi a Angola à procura dos amigos do famoso repórter. Para além de Farrusco, encontrou Luís Alberto e Artur Queiroz, jornalistas que em 1975 o acompanharam na viagem à frente sul da guerra.
“Para mim, este livro era uma mina de ouro”, diz o realizador espanhol ao Ípsilon. “Guerra Fria, cubanos, sul-africanos, apartheid, fim do colonialismo, Kissinger, CIA, Fidel, Agostinho Neto... Mais figuras icónicas angolanas como o Farrusco e a guerrilheira Carlota. E o próprio Kapuscinski, que arriscou a vida para contar esta história. Era impossível resistir a fazer um filme.”
De la Fuente, um basco de 44 anos, fala de rajada. Sem tirar o chapéu de feltro, o general Farrusco ouve-o, atento. Imaginou muitas coisas na vida, mas não que seria um herói animado. De la Fuente prossegue: “Senti que em Angola era tudo cinematográfico. Havia muita acção, grandes combates, uma chegada à última hora das tropas cubanas, uma invasão sul-africana e, no sul, um comandante isolado a dizer a Kapuscinski: ‘Se chegares a Luanda, diz-lhes o que se está a passar aqui e que eu preciso de ajuda, de armas e de homens.’ Tudo sequências incríveis para um filme de acção e de aventuras, um filme de guerra baseado em factos reais e com a participação de sobreviventes.”
Não foi preciso muito tempo para De la Fuente perceber que a linguagem realista do documentário não ia chegar-lhe. Autor de Virgem Negra (2011), Minerita (2013) e I am Haiti (2014), todos documentários clássicos, “tinha vontade de mudar”, “criar uma coisa nova”, “fazer uma coisa especial”. Resume assim a sua intenção: “Queria colocar o espectador como co-piloto de Kapuscincski. Senti que a animação me dava a liberdade criativa para mudar coisas, mostrar os ataques e os bombardeamentos e, ao mesmo tempo, entrar na cabeça de Kapuscincski, contar os seus medos e angústias, os seus sentimentos de culpa e emoções.”
O resultado é um híbrido que combina a animação de Damian Nenow com entrevistas aos amigos angolanos de Kapuscinski e imagens reais de Angola hoje e em 1975, e algumas fotografias que o próprio Kapuscinski tirou — como os retratos de Carlota na ponte no rio Balombo, pouco antes de a jovem guerrilheira de 19 anos morrer em combate (os vídeos da Carlota real são de Luís Alberto, que na altura trabalhava para a RTP e acompanhou Kapuscinski com uma câmara de filmar — andou à procura e ainda tinha a bobine dessa viagem). “As animações são muito realistas porque primeiro filmámos com actores e fizemos captura de movimento. Daí o look de novela gráfica”, diz o realizador.
Quando percebeu que o filme seria animado, o general Farruco não sentiu “nem medo, nem surpresa”. “Só expectativa.” O não gostou foi de “ver tanto Farrusco”. Não queria protagonismo e, no início, não quis sequer ser entrevistado. Foram precisos quatro anos para o convencer.
A “cacha” angolana
Em Outubro de 1975, quando Kapuscinski lhe aparece no quartel-general de Pereira d’Eça, montado na antiga estalagem Cisne Negro (“Ar Condicionado — Comida Caseira — Esplanada — Preços Acessíveis”, dizia o anúncio), Farrusco já era uma lenda. Conquistara Lubango com poucos homens, capturara Pereira d’Eça com menos ainda, disparara morteiros sem base, segurando os canos a ferver com as mãos nuas. Filho de agricultores de Mora, Joaquim Farrusco chegou a Angola como comando das forças de elite do Estado Novo para combater contra os angolanos. No fim da comissão, ficou. Tinha 27 anos e trabalhava há três como mecânico de automóveis quando foi à sede do quartel-geral do MPLA de Lubango e disse: “Eu mostro-vos como é que se faz — como é que se luta.”
Agora que Farrusco está à nossa frente no Ideal — não só vivo como bem-disposto e conversador — é inútil querer manter o suspense sobre o fim desta história — ou o destino de Farrusco. Mas quem ler Mais Um Dia de Vida e a seguir vir o filme de Raúl de la Fuente sem googlar “Farrusco+Angola”, arrisca-se a dar um salto na cadeira. “Muitas pessoas comentaram a ‘sensação incrível’ que tiveram no momento em que Farrusco aparece a falar”, conta De la Fuente sobre as sessões em Espanha. “Ninguém acredita que ele possa ter sobrevivido! É o único travelling do filme: está de chapéu, em silhueta, parece um western. Kapuscincski é uma lenda, Farrusco é uma lenda. Carlota é uma lenda. No livro aparecem como tal, mas na vida real são personagens ainda maiores.”
É exagero de Raul de la Fuente ou, por uma vez, Kapuscincski pecou por contenção? Quem exagera? O repórter que defendeu que “retocar a realidade” — e “ampliá-la” — era uma forma de obter uma “verdade superior” e “um sentido mais profundo”, não acrescentou “contos, histórias e fantasia”, como acusa uma conhecida sua de Adis Abeba (Kapuscinski, Uma Vida, pág. 423)? “O livro está claro”, responde o general Farrusco sem hesitar. “Pode haver uma pitada ou outra de redacção, mas tudo o que o Ricardo diz, está claro. Pode não ter sido em Santa Clara, mas foi numa vila ao pé de Santa Clara. Pode ter sido um pouco mais para a esquerda ou mais para a direita... O que importa é que o Ricardo escreveu sobre a essência do que estava a acontecer e confirmou que as tropas sul-africanas estavam a invadir Angola. E isso ainda ninguém sabia.”
Fidel e o dilema do repórter
Outra coisa que, no fim de Outubro de 1975 ninguém sabia é que, a dias da independência (declarada a 11 de Novembro) havia tropas cubanas em Angola a ajudar o MPLA. Este foi outro “ponto de atracção” para o realizador. “Sendo um dos melhores repórteres de guerra do mundo, em Angola Kapuscinski rompe com os códigos éticos do jornalismo”, diz De la Fuente. “No momento em que tem de decidir se continua a ser jornalista e dá uma notícia, um furo com interesse mundial, ou toma partido e salva vidas, Kapuscinski toma partido. Ele descobre que há cubanos em Luanda a treinar o MPLA e, perante o dilema de o noticiar, decide ocultar a informação e ajudar uma causa na qual ele acreditava.”
Na sua interpretação, a notícia teria a força de “alterar o curso da história”. Farrusco concorda? Por uma vez durante uma hora de entrevista, o general tira o chapéu e amacia a cabeça suavemente antes de responder: “O Raúl que me perdoe, mas o curso da guerra já estava em marcha. A notícia não alteraria nada. As potências da Guerra Fria já tinham decidido dar cabo de Angola, os sul-africanos já tinham marchado do sul para norte, os zairenses já tinham marchado do norte para o centro. E do nosso lado só tínhamos um destacamento de cubanos a dar-nos algum treino, nem era propriamente defesa do país.”
Raúl de la Fuente, que no seu estado natural fala como se tivesse engolido um acelerador, carrega na velocidade e sem uma única pausa: “Mas a presença de tropas cubanas não era conhecida pelos altos comandos dos EUA. Se o telex com a notícia de Kapuscinski fosse interceptado pela CIA, as coisas teriam sido diferentes. A presença de cubanos em Luanda não seria uma surpresa para o inimigo. Holden Roberto [líder da Frente Nacional de Libertação de Angola] não sabia que havia cubanos e vinha a caminho de Luanda num descapotável com uma ruiva, a distribuir convites para a festa de independência. Eles estavam convencidos, tal como os sul-africanos, que iam conquistar Luanda facilmente. Não contavam com a presença de forças cubanas. A primeira força chegou três dias antes da independência. É uma decisão radical de Fidel, que altera o curso da história. Nas horas seguintes, chegaram homens em três aviões. Holden Roberto chegou a Luanda e não sabia que havia três aviões cubanos na cidade. Gabriel García Márquez conta que Holden Robert chega num descapotável com uma ruiva e que as primeiras tropas cubanas vinham disfarçados de turistas em aviões comerciais, a fumar charutos e com roupa civil, só soldados negros, nenhum branco, para se poderem misturar com o MPLA, e que mudam de roupa no fim do voo antes de desembarcarem em Luanda. Esta é uma decisão militar decisiva. Kapuscinski está no aeroporto com Artur Queiroz quando vê os aviões cubanos a chegar e sente que afinal há uma possibilidade de o MPLA ganhar.” Neste ponto, o general do MPLA está de acordo: “O Holden estava preparado para almoçar em Luanda no dia 11 de Novembro!”
“Ricardo” Kapuscinski tomou partido? Farrusco não concorda. “Não é verdade. Ao ler o livro, percebe-se que ele tem um declivezinho para o MPLA. E porquê? Porque o MPLA era quem tinha os quadros melhores no país. Os outros partidos eram feitos só com o povo... os quadros da UNITA já estavam todos nos matos. Por essa razão, ele contacta mais com os quadros do MPLA. Mas não sei se ele era comunista. Falámos um bocadinho e eu não o vi muito inclinado pelos comunistas. Falámos da II Guerra e ele manifestou-se de uma maneira que... percebia-se que não gostava muito dos russos. Ele não tinha inclinação para ser comunista ou capitalista. Estava ali como repórter. Aquele polaco pequenino [Artur Domoslawski] foi a Angola perguntar-me a mesma coisa, se o Ricardo andou com armas, se disparou...”.
Página 298 de Kapuscinski, Uma Vida:
— Como recordas o Ricardo?
— Esteve connosco durante os combates no Sul. Não o tratávamos como um simples jornalista.
— Como é que o tratavam?
— Como um de nós.
— Por ser de um país socialista? Por pensar como vocês?
— Não só, mas porque, quando era necessário, também disparava.
Numa entrevista em 1977 a um jornalista polaco (Conversas sobre a Etiópia, de Sztandar Mlodych), perguntam-lhe:
— Viu-se alguma vez em situação de ter de agarrar numa arma?
E Kapuscinski responde:
— Sim, em Angola. Na frente, há muitas vezes situações em que temos de participar no combate.
— Disparou algumas vezes?
— Disparei, mas eram excepções que confirmavam a regra. É melhor ir para a frente sem nada, pois se te apanham podes defender-te com o facto de estares desarmado, fingir que foste ali parar sem querer, sorrir de maneira estúpida e mostrar as melhores intenções. O melhor é não levar nada, nem uma faca.
Sempre que se falou disto, o repórter explicou que abriu excepções para não ser “um fardo” para quem o levava para a frente de batalha e porque “o repórter tem de responsabilizar-se por si, disparar para não ser morto”.
Raúl de la Fuente também quis saber se Kapuscinski disparou em Angola. “Perguntei a todos e todos me disseram que ele não disparou em Angola ou, pelo menos, que eles não viram.” O general nunca o viu com uma arma? “Absolutamente nada. A esse jornalista polaco que veio tentar contrariar o que Kapuscinski escreveu no livro, eu disse-lhe: ‘O Ricardo nunca usou uma arma. Mas se tivesse usado — lembro-me de lhe ter dito isso — na guerra, se ele está numa trincheira, há outros homens com ele, um cai, ele pode pegar na arma. O facto é que ninguém o viu a pegar em armas. Por tudo o que me é sagrado: ele chegou, amavelmente nos cumprimentámos, tirámos umas fotografas, conversamos 20 minutos e depois fomos dar umas voltas na linha da frente para ele ver o que ele pediu.”
Como ficamos? Na biografia de Domoslawski, Farrusco disse que às vezes o “mestre Kapu” disparava e o próprio Kapuscinski diz que disparou em Angola, mas afinal ninguém viu. “De tudo o que li, Kapuscinski dá entender que o jornalista não pode ser um peso e que cria empatia com os homens que o levam. Mas ele deixa a questão aberta. Escreve de forma ambígua. Cada leitor decide se ele disparou ou não”, diz o realizador. Com Artur Queiroz, um jornalista local que acompanha Kapuscinski em parte da viagem angolana e que é entrevistado em Mais Um Dia de Vida, a questão foi mais simples.
— Tive de disparar. Isto não era digno de um jornalista, mas eu era um combatente também. Tenho consciência de que infringi o meu código profissional. Ainda bem que o infringi. Não estou arrependido.