Giles Martin e o White Album “É visceral, é real, são pessoas numa sala a fazer barulho”
Giles Martin, filho de George Martin, o lendário produtor dos Beatles, foi o responsável pela edição comemorativa dos 50 anos do White Album. Contrariando o que diz a mitologia Beatlesca, não detectou nas fitas sinais de conflitos e mau ambiente entre os Fab Four.
Editado em 1968, o álbum homónimo imortalizado como <i>White Album</i> é dos mais debatidos da discografia dos Beatles, culpa da sua extensão (30 canções divididas em dois LP) e de uma abrangência estética que muitos defendem como fascinante e intrigante, que outros vêm como frustrante (esses tenderão a acompanhar George Martin, o lendário produtor da banda, na opinião que manteve até à sua morte, em 2016, aos 90 anos: se tivesse sido editado à duração de um álbum simples, seria muito melhor).
50 anos passados, é um exercício fútil, esse de imaginá-lo compacto e perfeitamente ordenado, amputado dos seus sobressaltos e variações de humor, traindo assim a sua existência enquanto palco para que John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr se expressassem sem constrangimentos, espelhos de si mesmos e reflectores do mundo. É uma obra contraditória? Certamente e esse é parte do seu charme. Afinal, o White Album, peguemos na deixa do cavalheiro Walt Whitman, contém em si multitudes.
“O que o White Album celebra e aquilo que tentámos preservar na [nova] mistura não foi o mundo anódino e perfeito a que tendemos a conformar-nos actualmente. É visceral, é real, são pessoas numa sala a fazer barulho. Acho que é por isso que se tornou influente. Por haver tanta música para gostar, certamente, mas também por ser tão humano”. As palavras são de Giles Martin, filho de George Martin e responsável, com Sam Okell, pela nova mistura, comemorativa dos 50 anos do álbum. O ano passado, a dupla foi responsável pelo mesmo trabalho em Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band e, tal como nessa ocasião, não estamos perante simples reedição. É coisa de fôlego. O White Albumde volta em quatro formatos: a edição standard, em CD e LP, com as novas misturas do álbum original; a edição Blu-Ray, onde se inclui a mistura original em mono; a edição Deluxe, em CD e LP, composta de três discos (ao álbum juntam-se as Esher Demos registadas em Maio de 1968, previamente à gravação, na casa de campo de George Harrison no Surrey); e a edição Super-deluxe, composta por seis CD, que acrescenta ao alinhamento do álbum e às 27 faixas das Esher Demos, 50 takes alternativos – descobre-se que a incendiária Helter Skelter chegou a ser um blues-rock de 12 minutos, ouve-se o trabalho inicial em Hey Jude ou Let it be e constata-se a luta travada para chegar às versões finais (Sexy Sadie, por exemplo, exigiu 107 takes até John Lennon a dar por concluída).
“[Os Beatles] criaram o White Album no estúdio. É um álbum menos preparado que Sgt. Pepper's. Houve, portanto, muito mais material [para trabalhar]”, explica Giles. Depois do trabalho no sonicamente intrincado Sgt. Pepper's, julgava vir a encontrar em White Album um desafio menos exigente, mas foi surpreendido. “Julguei que fosse bastante fácil de misturar, porque é um álbum de banda e não um disco de alta-fidelidade como o Sgt. Pepper's, mas o curioso é que se tentarmos trabalhá-lo como um disco moderno, perde o seu charme e a sua fúria. É um álbum zangado”. É realmente. E é também um álbum bem-humorado e melancólico, intenso e reconfortante, nostálgico e futurista, conservador e vanguardista.
De Rishikesh a Abbey Road
A génese de White Album encontra-se num retiro de meditação transcendental em Rishikesh, Índia. Ali nasceram várias das canções que seriam depois trabalhadas em Inglaterra, ali encontraram os Beatles personagens que as inspiraram – Prudence, irmã de Mia Farrow, a originar Dear Prudence, o Maharishi a ser alvo de escárnio em Sexy Sadie, um jovem magnata americano que alternava a ascensão espiritual com escapadelas para caçar tigres a conduzir a Bungalow Bill.
No livro The Beatles Anthology, história da banda contada pelos seus quatro elementos, John Lennon recorda: “O curioso desse retiro é que, apesar de ser muito bonito, e de eu estar a meditar cerca de oito horas por dia, estava a compor as canções mais miseráveis à face da Terra. Em Yer blues, quando escrevi, 'I'm so lonely I want to die', não estava a brincar. Era assim que me sentia. Ali em cima a tentar encontrar Deus e a sentir tendências suicidas”.
A mitologia fala de um disco gravado no fio da navalha e marcado pelas tensões que resultariam, dois anos depois, no fim da banda. Pela primeira vez, os Beatles trabalharam canções em separado, com McCartney a trautear Blackbird num estúdio, George Harrison aprimorando Long long long noutro, Lennon num terceiro a fazer em Julia a elegia da mãe que lhe morrera na adolescência e Ringo Starr a desaparecer durante dez dias por sentir que já não era nem necessário, nem querido pelos companheiros. Outro foco de tensão, diz a mitologia e relataram Paul McCartney ou George Harrison, terá sido a presença constante, presença silenciosa, esfíngica, de Yoko Ono ao lado de Lennon, situação perturbadora para uma banda habituada a trabalhar sem ninguém que lhe fosse exterior por perto.
Giles Martin não encontrou sinais que confirmassem a mitologia nas horas e horas que, através das fitas, passou com os Beatles no estúdio. “Não consigo dizer que houvesse mais tensão no White Album que nos outros álbuns. Tendo em conta o que ouço nas fitas, parecem-me bastante felizes. Em 1967, terminaram a sua última digressão, regressaram a gravaram Sgt. Pepper's. No White Album aquele período em estúdio foi o tempo que tiveram para estar uns com os outros. Já não tinham o [manager] Brian Epstein [que morrera em 1967] a organizar-lhes a vida toda e estavam a habituar-se a não estarem sempre juntos”.
Segundo Giles, a tensão manifestava-se, não entre a banda, mas perante George Martin ou o engenheiro de som Geoff Emerick (que morreu no dia 3 de Outubro, aos 72 anos, poucas semanas depois de Giles Martin falar ao Ípsilon). “O Geoff abandonou a meio as sessões e o meu pai decidiu ir de férias porque já não aguentava”. Nesse sentido, foi um álbum de emancipação para os Beatles. “Queriam ser eles próprios a avaliar o que estavam a criar e não serem avaliados por outros. Ouve-se isso nas fitas em algumas conversas: 'Ainda não estás lá'. 'Não és tu que me vais dizer se cheguei lá ou não, eu saberei quando chegar'”.
Cinco meses depois de entrarem em estúdio, tinham preparadas 30 canções para um duplo álbum. Um disco tumultuoso para um ano tumultuoso, com guerra no Vietname, com o Maio de 68 em França, com tanques soviéticos em Praga, Robert Kennedy assassinado em Los Angeles e Enoch Powell, que integrava então o governo sombra dos Conservadores britânicos, a proferir o odioso discurso dos “rios de sangue” que correriam pela Velha Albion se não fosse travada a imigração vinda das antigas colónias britânicas.
Acreditando na mitologia ou confiando nos ouvidos de Giles Martin, White Album como que marca o início do fim. Tendo isso em perspectiva, as Esher Demos agora reveladas oficialmente na sua totalidade ganham um atractivo especial. “Foram uma revelação para mim”, confessa Giles Martin. “Andava a ouvir todas as fitas do White Album para tentar descobrir o alicerces das canções, a sua essência, e, de repente, chegam aquelas demos. Foi como pegar numa varinha mágica: 'Tcharam!'. Estava ali tudo”.
Ouvimos as vozes e as guitarras acústicas que ecoaram na casa campestre de Harrison em Maio de 1968. Ouvimos as canções, não só as do álbum agora reeditado, mas também uma Child of nature que Lennon transformaria em Jealous guy, Junk, que McCartney editou no primeiro álbum a solo, Sour milk sea, que Harrison ofereceu a Jackie Lomax, ou Mean Mr. Mustard e Polythene Pam, que os Beatles editariam em Abbey Road. Ouvimos os que cantam e tocam, ouvimos os que falam em fundo, ouvimos a música a jorrar naquele ambiente descontraído, feliz. A fascinante turbulência (e ternura e raiva e ironia e melancolia) de White Album chegaria pouco depois, nos estúdios que haviam sido sempre os seus, mas onde já nada seria como antes.