Da democracia-que-tem-dias na América
O problema da democracia representativa na América não é que seja pouco democrática, mas que se esteja a tornar cada vez menos representativa.
New Bedford, Massachusetts, EUA. — Amanhã há eleições para o Congresso dos EUA, como é sabido, e se o Partido Democrático ganhar pelo menos a Câmara dos Representantes Trump pode ter a vida um pouco dificultada. Por outro lado, se os Republicanos mantiverem a Câmara e o Senado, Trump terá ainda mais poder sobre os três poderes no país — o executivo é seu, o legislativo é do seu partido, e o judicial é encimado por um Supremo Tribunal onde ele deve ter garantido uma maioria ultra-conservadora por uma geração. Até aqui, isto é mais ou menos do conhecimento geral.
Agora a pergunta é: o que significa ganhar ou perder nestas eleições? Para quem está habituado a sistemas eleitorais proporcionais, a resposta parece óbvia: ganhar significa ter mais votos, perder significa ter menos. Mas esse não é de todo o caso aqui. Para os democratas, ganhar na terça terá de significar ter muito mais votos do que os republicanos — seis ou sete pontos percentuais a mais. Para os republicanos, ganhar pode significar ter menos votos, e mesmo bastante menos votos do que os democratas, e mesmo assim manter o controle de ambas as câmaras do Congresso.
Quase todos já ouvimos falar do Colégio Eleitoral, a quem os fundadores da constituição dos EUA atribuíram a função de escolher o Presidente da República. Por causa do colégio eleitoral, estamos todos conscientes de que um presidente dos EUA pode ser eleito tendo menos votos do que o adversário, e sabemos que Trump é um caso extremo dessa possibilidade, tendo chegado a presidente com muito menos votos do que Hillary Clinton: três milhões de votos a menos. Mas se na presidência essa distorção se explica pelo facto de, num sistema federal, se ter dado aos estados menores mais peso no Senado — onde todos os estados têm o mesmo número de senadores, como faz sentido que tenham — e essa equalização no Senado se tenha transferido para o Colégio Eleitoral (que é composto por um número de eleitores igual à soma dos representantes de cada estado na Câmara e no Senado), o que não faz sentido nenhum é que também a Câmara dos Representantes, cujo objetivo é precisamente o de representar o povo, e não os estados, esteja neste momento tão distorcida.
Ora, as razões para esta distorção não estão na história federal americana mas antes num outro fenómeno bem conhecido dos politólogos: o gerrymandering — palavra que pretende descrever o efeito da manipulação por ambos os partidos do desenho dos círculos eleitorais, por forma a garantirem que só democratas ou só republicanos ganham o máximo de lugares numa determinada região. O resultado é que os círculos eleitorais aqui são tudo menos círculos, acabando por ter fronteiras em recortes e meandros sem qualquer lógica geográfica, tanto que mais se assemelham a uma salamandra (daí gerrymandering, que mistura a palavra para salamandra com o nome de um governador do estado onde agora me encontro, o Massachusetts, Eldridge Gerry, que era especialista nestas batotas). Quando os americanos votam têm em cima séculos de gerrymandering que dão como resultado que, em vez de serem os eleitores a escolherem os políticos, foram os políticos que previamente escolheram os eleitores para se perpetuarem nos seus lugares. Por isso há enormes extensões territoriais dos EUA em que nem é preciso fazer campanha nas eleições gerais, porque quem ganha é sempre o republicano ou o democrata (o que por sua vez desloca a emoção para as eleições internas no partido). O problema é que o problema se agravou mais do que nunca, e a questão agora é como poderá a sociedade americana conviver confortavelmente com o facto de ser governada na Presidência, no Senado, no Supremo e, eventualmente, até na Câmara dos Representantes, por um partido que representa a minoria dos estado-unidenses. O problema da democracia representativa na América não é que seja pouco democrática, mas que se esteja a tornar cada vez menos representativa.
A democracia americana continua a ter as suas virtudes: do Café da Tia Maria, onde esta crónica começou a nascer, e que se apresenta como Café Europeu aos turistas que aqui passam a comprar os seus pastéis de nata, o Sr. Eduardo Coelho, de Linhares da Beira, pode facilmente meter conversa com o seu deputado Tony Cabral, da Ilha do Pico, a quem vê frequentemente passar e que o representa há quase trinta anos no Congresso do Massachusetts. Lá longe, em Washington, é que a democracia americana já teve melhores dias. Independentemente do que acontecer amanhã, isso dificilmente mudará. Mas se os democratas ganharem a Câmara dos Representantes neste sistema eleitoral agora desequilibrado a seu desfavor, pelo menos Trump será enfrentado por algum contra-poder. Os EUA precisam disso — e nós no resto do mundo também.