Primeiro a guerra, depois a separação. Betül e Rola encontraram forças para se emancipar em Esmirna

Casamento precoce e violência de género são problemas comuns para muitas mulheres sírias que fugiram para a Turquia. Fundos da UE permitiram abertura de mais de 30 “espaços seguros”, onde estas refugiadas recebem apoio psicológico, tratamento médico e aconselhamento legal.

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Betül, de 20 anos, casou aos 15 anos Eren Aytug/Comissão Europeia

Quando Betül El Hac Abdo cruzou pela primeira a porta do Women and Girls Safe Space (WGSS) de Buca, em Esmirna, movia-a apenas o desejo de aprender língua turca. Desconhecia o propósito do centro e os serviços que prestava. Estava deprimida, não encontrava nada a que aspirar na vida e sentia-se vencida pelo peso de um casamento falhado.

Abandonar a Síria marcou-a para sempre, claro, mas esse foi apenas um dos vários obstáculos que teve de enfrentar nos últimos anos. Porque como tantos outros refugiados de guerra, os problemas desta rapariga de olhos verdes, expressivos e tristes não se dissiparam com a fuga ao conflito.

“Quando cheguei a Esmirna era uma completa estranha, não conhecia ninguém e não falava o idioma. Vim à procura de cursos de língua turca e comecei por aí. Pouco depois dei por mim a vir aqui quase todos os dias, para receber aconselhamento psicológico, apoio social e cuidados de saúde”, relata Betül, que encontrou no centro um refúgio e um espaço familiar para contar a sua história.

O WGSS de Buca é um dos três “espaços seguros” para mulheres na cidade de Esmirna e um dos 35 que existem em todo o território turco, financiados através do mecanismo de apoio aos refugiados no país, acordado entre a União Europeia e a Turquia em 2016, e gerido em parceria pelas autoridades turcas e pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). É um dos bons exemplos fruto deste polémico acordo (que inclui a deportação para a Turquia de todos os requerentes de asilo que chegam à Grécia de forma irregular) que Bruxelas e Ancara têm para mostrar ao mundo.

Tomando em consideração os números da ONU, que calcula que entre os 3,5 milhões de refugiados sírios que se encontram na Turquia, cerca de 900 mil são mulheres ou raparigas em idade reprodutiva (15-49 anos), centros como o WGSS de Buca oferecem serviços vários a esta fatia importante da população deslocada, com especial enfoque no acompanhamento e tratamento de problemas relacionados com a violência de género, a violência sexual, as gravidezes de alto risco e os casamento forçados e/ou precoces.

“Na Síria há muita gente que vive em aldeias isoladas, lugares onde as mulheres não têm grandes oportunidades para falar ou expressar as suas ideias ou opiniões. Quando aqui chegam, deixam de estar rodeadas por esses constrangimentos sociais. E ganham coragem para falar”, diz Souad Mohammad Rachid, funcionária do WGSS de Buca, também ela síria, de Deir Ezzor.

Betül, de 20 anos, casou aos 15 anos – o marido tinha 27 – e sofreu violência doméstica, coacção psicológica e assédio. “Não tinha amigos na Síria. Os meus irmãos e irmãs não estavam comigo, estava totalmente isolada. Entrei numa depressão profunda. Cheguei a pensar em suicidar-me e uma vez bebi cloro para pôr fim à vida”, conta a jovem, com a voz a tremer.

Hoje está separada, tem a guarda dos dois filhos – Ömer (4 anos) e Beyan (2 anos) – e o processo de divórcio está em marcha na justiça turca. Uma “excentricidade” na contexto social e familiar de Betül, que assume ainda não ter conseguido convencer totalmente a sua própria família da decisão de se separar. “Ainda me dizem que devia regressar para junto do meu marido. Mas não o farei, depois do que ele me fez.”

Um “longo e duro caminho”

Betül vem de Alepo, a segunda cidade mais importante da Síria e a capital comercial do país antes da devastação trazida pela guerra. Aos 18 anos, a sua casa foi atingida por um míssil e durante várias semanas a família ficou privada de água e electricidade. Decidiram então partir para a Turquia, depois de negociarem com um contrabandista uma forma de entrar no país.

Grávida de oito meses da filha Beyan, Betül percorreu 45 Km a pé e foi obrigada a permanecer, com o marido, o filho, os pais, a sogra e as cunhadas, escondida numa floresta durante uma semana, à espera de luz verde do traficante. Entraram finalmente na Turquia a 17 de Fevereiro de 2016, por volta da 1h da manhã, o dia do terceiro aniversário do seu filho mais velho, Ömer, no final de um “caminho muito longo e duro”.

Beyan nasceu já em solo turco, na cidade de Gaziantep, onde a família viveu durante seis meses, depois de estadias passageiras em Kilis e Sanliurfa.

A estabilidade e segurança que a Turquia trouxe às suas vidas não se traduziu, porém, em melhorias no relacionamento entre Betül e o marido, com quem a jovem assume, de olhos postos no chão, nunca ter partilhado “qualquer ponto em comum”.

A oferta de trabalho que Betül recebeu do Ministério da Família da Turquia foi a gota de água numa relação já gasta pela postura opressiva e recriminatória do elemento masculino do casal, que a queria em casa e não fora dela. Em Junho, depois de ter sido agredida e obrigada a fugir a meio da noite, Betül tomou a decisão de se separar.

O apoio psicológico e o aconselhamento legal que recebeu do centro, diz Betül, foram essenciais para avançar para separação e para a disputa pela guarda dos filhos.

Hoje alegra-se por ter uma vida social, por voltar a “tomar decisões com os pés bem assentes no chão” e por ter conquistado a oportunidade de sonhar com o seu futuro. “Quero completar os meus estudos, gostaria de estudar jornalismo. Não tenho qualquer prova da minha educação prévia, na Síria, mas não importa”, diz. “Se for preciso recomeço tudo de novo, desde o básico até à universidade.”

Combater mentalidades

Abir Mohamed Refaat Abdelmonim, natural do Egipto, é assistente social no WGSS de Buca e aponta a violência de género e os casamentos precoces como os principais desafios a que o centro tem de responder.

“Os casos mais preocupantes são os que envolvem violência contra as mulheres – não apenas violência física, mas de outros tipos. Isto é algo que herdámos há várias gerações. Tal como a tradição dos casamentos precoces e forçados, que se agravou com a guerra. Em áreas controladas pelo Daesh os combatentes raptaram e violavam muitas jovens, por isso as famílias começaram a casar as suas filhas muito cedo para as salvar desse destino”, explica Abir.

A egípcia só vê uma solução lidar com estes flagelos: “Temos de aumentar a consciencialização sobre estes comportamentos e tentar mudar mentalidades e tradições”.

Às mãos de Abir chegou Rola Khuddair, natural de Alepo, mãe de duas filhas – 11 e 13 anos –, “num estado problemático em termos psicológicos, sociais e de saúde” e perdida num atribulado processo de separação, sobre o qual não quer adiantar grandes pormenores.

“Quando aqui cheguei estava devastada, frustrada com o falhanço da minha vida, com o falhanço do meu casamento e com o futuro incerto das minhas filhas. Não falava com ninguém. Só precisava de alguém que me apoiasse, que me fizesse sentir que tinha alguém”, conta a síria, de olhos castanhos e véu de cor clara. “Aqui encontrei tudo isso”.

Rola chegou a Esmirna em 2017, depois de dois anos em Hatay, junto à fronteira com a região Noroeste da Síria. Na Turquia encontrou segurança para si e para as filhas e agora nem pensa em voltar para casa: “As minhas filhas foram criadas em tempo de guerra, por isso associam a Síria ao medo. Tudo que conhecem de lá são as mortes, as balas e as más pessoas”.

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Eren Aytug/Comissão Europeia

O WGSS de Buca, assume, mudou a sua vida, por lhe permitir falar abertamente sobre determinados temas “pouco abordados nas nossas comunidades”, como “o divórcio, a separação e a violência doméstica” e lhe ter “dado a conhecer os seus direitos”. Encontrou apoio e forças para se divorciar e está prestes a integrar a equipa do centro, como assistente das equipas médicas que se prestam serviços ao domicílio, em casas de refugiados idosos ou deficientes.

“Sou uma mulher divorciada e os meus pais são muito idosos, por isso preciso mesmo de trabalhar. Acredito que a minha experiência pessoal pode ser útil para muitas raparigas. E foi o centro que me deu essa motivação para as ajudar.”

O jornalista viajou a convite da Comissão Europeia

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