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Gozo, a janela azul de Malta

Pode ter perdido o seu postal mais icónico, mas a segunda ilha de Malta (país) não perde o azul de tantos cambiantes. Do sagrado do Neolítico aos contos de cavaleiros, corsários, impérios, Gozo é o lado B de Malta (ilha): é Malta (país e ilha) versão tranquila.

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A tarde vai a meio e Rikardu assume que já está um pouco bêbedo. Menos mal que o seu restaurante, Ta’ Rikardu, por estes dias, não abre à noite, por falta de pessoal. O seu dia já vai longo. “Normalmente, ordenho as cabras às 5h da manhã. Depois, fazemos o queijo. Às 8h, 9h está pronto e é servido ao almoço”, conta, bem-humorado. Divide-se entre a quinta, junto a Marsalforn, e o restaurante, na cidadela de Vitória. Faz queijo e vinho, “muito pouco”, que serve no restaurante e em provas em visitas guiadas à quinta. A quinta foi um complemento: cresceu na cidadela e o restaurante é o seu primeiro amor. Como é um dos poucos restaurantes na cidadela, está em todos os guias de viagem de Gozo e recebe, sobretudo, turistas. Cada vez mais, nota, sobretudo de há três anos para cá, depois dos “grandes restauros” na cidadela, “com fundos da União Europeia e do governo local”. Compôs-se a muralha, arranjaram-se as ruas – “era muito necessário”. “Os tempos estão a mudar”, reflecte, “antes conhecíamos toda a gente, agora não. Mas as mudanças estão a ser, na maioria, para melhor”.

Não há é maneira de Gozo (e Malta, veremos) se preparar para a chuva. “Estamos mais preparados para o calor do que para o Inverno. Quando a chuva chega, todos se queixam e tudo se torna um caos”, garante. Esta manhã o seu carro quase se inundou, à beira da quinta, num vale; aqui, no restaurante, decoração rústica entre pedra à vista e madeira, mesmo ao lado da catedral, foi um não parar de entrar de turistas, em busca de abrigo. “Vamos bebendo uns copos de vinho com eles...”, ri-se.

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Rikardu diz que durante a manhã houve “mais ruído do que chuva”. Nós que estávamos em pleno olho do furacão, contrariamo-lo. O que começou como aguaceiros escassos, rapidamente se transformou em chuva forte e que o vento encorajava. Tanto que ao final da manhã temos de regressar à casa de partida (o hotel) para mudar de roupa. Levamos umas horas apenas de Gozo, de Malta, na verdade, e a tempestade parece acompanhar-nos desde o aeroporto – já instalados no hotel em Vitória, a noite quente é uma espécie de espectáculo de luzes: os relâmpagos rasgam a escuridão dando mais luz à cidadela e às silhuetas do restante casario. Os guias turísticos dizem que Gozo goza de mais de 300 dias de sol por ano – juntamo-nos à minoria, portanto. Mas, sejamos honestos, esta ilha minúscula, em início de Outubro, não vai em ortodoxias: a chuva é apagada pelo sol que é assombrado pela chuva em questão de horas e assim tanto tiritamos de frio junto a uma capela isolada varrida pela intempérie e nos encharcamos no maior areal da ilha, como desejamos mergulhar nas águas verdes junto com os mergulhadores de ocasião.

De Malta a Gozo são apenas 25 minutos de viagem. Três barcos asseguram a ligação 24 sobre 24 horas entre as duas maiores ilhas do arquipélago-país, com tangente a Comino, a ilha que tem na lagoa Azul a principal atracção. Estamos no Norte do país que fica a meio caminho entre a Europa e a África – uma ponte entre ambos os continentes. Ponte geográfica e cultural – atente-se na língua maltesa, uma mistura de árabe e italiano, agitado com o inglês: tantas palavras são italianas, o inglês é escrito como se pronuncia. Mas tudo, inclusive (sobretudo?) o ritmo, resulta mais árabe, que contribui directamente, por exemplo, com a gramática, os topónimos... Veja-se como saímos de Cirkewa (Malta) para aportar em Mgarr (Gozo). Neste país-ponte, também se falou (e fala) em construir uma ponte literal entre Malta e Gozo, contudo a maioria dos gozitanos não quer perder a sua insularidade no país-insular.

Afinal, quando estão no estrangeiro até podem dizer que são malteses, mas em Malta (país e ilha) são sempre gozitanos, como nos diz a nossa guia, Audrey Bartolo, gozitana, claro, vizinha, aliás, do monumento mais importante de Gozo, o Templo Ggantija. “Podíamos ganhar um certo conforto, muitos habitantes fazem diariamente a ligação, mas perderíamos a nossa identidade”, afirma, “aqui, tudo é mais calmo e mais tradicional”. Mesmo o turismo: os visitantes são na sua maioria de um dia, começam a chegar às 9h e às 16h30 já estão a regressar. Vêm em excursões organizadas ou aproveitam os autocarros hop and off para cobrirem o mais possível da ilha de apenas 67 quilómetros quadrados e 35 mil habitantes – “A população aumentou bastante. Nos anos de 1990 andava à volta de 15 mil habitantes”, sublinha Audrey. Uma subida na população a acompanhar o aumento do turismo, indústria onde trabalha “grande parte da população”. “Antes, havia aqui muita agricultura e pesca”, descreve Audrey, “mas agora já ninguém quer trabalhar na terra, é muito duro. E na pesca temos o problema das quotas da UE”.

Se calhar é por isso que Audrey duvida que haja alguém para continuar uma tradição gozitana que vem desde o tempo dos fenícios: a recolha de sal. Tivéssemos vindo de manhã, talvez encontrássemos a família Cini nas salinas de Qbajjar, poucos quilómetros de distância da estância balnear de Marsalforn. É uma das únicas duas que continua a exercer a actividade em Gozo, mas, conta-nos a guia, as gerações mais novas não querem persistir num trabalho que é “duro e mal pago”. “A filha, Joséphine, quer continuar e está a ensinar os filhos...”. Provavelmente como aprendeu dos pais, o patriarca Emanuel e a mulher, que ainda andam, com a filha, na colheita (entre Maio e Setembro) e na venda do produto – aqui, à beira da estrada, em formato souvenir.

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Hoje é só com outros turistas que nos cruzamos, os vendedores-recolectores de sal não estão – deles sobram-nos as portas de madeira colorida incrustadas nas rochas da beira da estrada. São as barracas onde armazenam o sal e guardam os utensílios do ofício, ainda hoje realizado de forma tradicional – excluindo os burros que carregavam os baldes de água para os pequenos tanques, substituídos por bombas que extraem a água do mar, continuam a usar-se vassouras para alisar o sal (como se fosse um ancinho) e depois o amontoar. Sem essa actividade, resta-nos o cenário, que o homem construiu e a natureza parece ter adoptado como seu, as “panelas” (tanques) escavadas na rocha há 350 anos, para deixar a água salgada evaporar e deixar para trás o sal, compõem um tabuleiro de xadrez desirmanado, unidas por pequenos muros de pedra – o calcário amarelo maltês.

Cenários (literais) de filme

A natureza em Gozo não é pródiga. Mas a geografia brilha, sobretudo à beira-mar: falésias e penhascos dourados, com o calcário local, desenham a maioria da costa e ensaiam semblantes pouco convencionais. Durante décadas, a Azure Window, a “janela azul”, foi uma das maiores atracções da ilha – mas uma tempestade destruiu, há quase dois anos, o enorme arco que se erguia 20 metros sobre o Mediterrâneo para terminar numa espécie de passarela. “Perdemos a janela e, let’s face it, perdemos o principal atractivo”, assume Audrey, “embora continue a ser muito bonito”.

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Afinal, a baía de Dwejra, onde ficava a janela, é uma das costas mais empolgantes da ilha. Exibe escarpas teatrais esventradas por grutas e túneis (o mais longo, 80 metros, liga o chamado mar Interior, uma lagoa, ao mar) e o famoso “buraco azul” (“Blue Hole”), uma “piscina” natural com uma “janela” subaquática para o mar. É uma zona muito procurada por mergulhadores, como toda a ilha, aliás, e onde barcos fazem passeios acompanhando todos os caprichos rochosos. Por isso, as visitas continuam a ir lá: nós não vamos porque a estrada principal cortada (obras), mais a tempestade (temporária), tornam a viagem perigosa. Temos, porém, histórias da janela – versão cinematográfica. Foi utilizada como cenário em vários filmes e a fama chegou com Guerra dos Tronos. Audrey recorda outra tempestade, em 2010, que atrasou as filmagens: ela participava, como extra, “toda pintada de azul”, ri-se, e durante três dias passou duas a três horas nas carrinhas à espera que o tempo cedesse – parte dos cenários foram destruídos e só ao quarto dia puderam começar a filmar.

Contudo, se Gozo já não ostenta a Azure Window, ainda tem Wied il Mielah. É outro arco em rocha, mais modesto, menos proeminente – ou, pelo menos, assim nos parece, na visita fugaz que lhe fazemos entre chuva e vento a ameaçarem atirar-nos penhascos abaixo. Abrigamo-nos na Gruta Mixta, vista inteira para a Rambla Bay, uma das maiores praias de Gozo, meia lua em terra vermelha e virgem em pedra. Tem a alcunha de “odisseia”, esta gruta, como se para “responder” à gruta Calypso, do lado oposto da baía (fechada há alguns anos por ameaçar ruir): diz a lenda que, na sua viagem para Ítaca, Ulisses ali ficou sete anos, preso de amor pela ninfa Calipso.

Como tantos locais de Gozo, esta gruta é o fim da estrada, o fim da terra, num penhasco imponente. Noutros locais, o fim da estrada é em baías solitárias entre as falésias, mais solitárias quando a chuva paira. Chegamos a Dahlet Qorrot e é Inverno – as portas coloridas, uma vez mais incrustadas nas rochas onde pescadores guardam barcos e material, parecem tristes, mas é indesmentível a beleza da baía de águas transparente. Chegamos a Mgarr ix-Xini e é Verão – sente-se a tranquilidade do calor na pequena enseada protegida, como se todos os movimentos fossem coreografados: os mergulhadores que colocam os fatos para desaparecerem na água, a mulher que faz snorkeling num fato azul celeste, o casal que abandona as toalhas no canto da minúscula praia (de seixos) para nadar, os caminhantes que parecem equilibrar-se nas paredes rochosas, os clientes da esplanada como se num filme mudo. Este é o fim da estrada no fundo de um vale apertado que termina em águas esverdeadas, a desaparecerem serpenteantes entre um desfiladeiro rochoso – dá ideia de um fiorde em ponto pequeno, com uma torre de vigia a guardar a sua entrada (e esta baía era usada como esconderijo ocasional para as galeras da ordem e o invasor otomano chegou a embarcar aqui os prisioneiros gozitanos no pior ataque à ilha, em 1551). Agora, galos cantam ocasionalmente e ouvem-se histórias de Brad Pitt e Angelina Jolie, que aqui estiveram cinco meses em 2014, a gravar o filme By the Sea para o qual foi construído o cenário de um hotel nas encostas.

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Dilatação da fé

A natureza, dissemos, não é pródiga em Gozo, conhecida como a ilha dos três montes. Na verdade, são mais, e são estes acidentes de terreno que a tornam mais propícia à agricultura do que a irmã maior. Mas a paisagem é monótona no interior de Gozo, pelo menos no Outono: as colheitas já feitas, os fardos de palha já enrolados e embalados, sobra o solo rochoso, ervas rasteiras, aqui e ali oliveiras, uns poucos vinhedos e figueiras-da-Índia omnipresentes (o fruto é usado em compotas e em licor). Distraímo-nos com os muros que dividem os terrenos como uma tapeçaria, com as ruínas avulsas, com um inesperado aqueduto enquanto o carro (e é importante tê-lo: os transportes públicos são bons, mas para quem tem pouco tempo para desfrutar Gozo o tempo das ligações é limitativo) circula entre estradas impossivelmente estreitas. E é assim que se destacam no horizonte as cúpulas das igrejas, sempre cor avermelhada (a cor é uma tradição com origens na pré-história das ilhas, os zimbórios herança dos cavaleiros, que introduziram o barroco no país): a mais omnipresente a da igreja de São João Baptista, conhecida como Rotunda de Xewkija, que é a terceira maior do mundo sem suporte.

Há 13 povoações em Gozo, pelo menos 14 igrejas (a capital, ir-Rabat, como os locais continuam a chamar-lhe, Vitória para o mundo, nome colonialista atribuído no jubileu de ouro da rainha Vitória, tem duas), 14 festas que no Verão ajudam a marcar o ritmo do calendário. Poucos dias antes de chegarmos, celebrou-se a festa de São Demétrio, na aldeia de Gharb – “tem apenas 300 habitantes, não há café nem restaurante, só uma mercearia”. Quando chegamos à pequena capela, portas vermelho-vivo contra as pedras gastas, esta está fechada (“só abre em ocasiões especiais”), assolada pelo vento e a chuva, isolada num promontório. Diferente o santuário Ta’Pinu, onde os visitantes parecem indiferentes à intempérie. A basílica foi construída no século XX em estilo neo-romântico, no entanto este já era um local de devoção. A capela original mantém-se no interior do novo templo e foi ao passar por esta, o século XIX prestes a chegar ao fim, que uma rapariga ouviu a voz da Nossa Senhora instando-a a rezar três Avé Maria. A partir daí, tornou-se local de peregrinações e de milagres. Além da arquitectura e dos trabalhos escultóricos (sempre no omnipresente calcário maltês), destacam-se as salas revestidas de ex-votos, muitos deles ainda do século XIX: tanto se pede um “emprego perfeito” como se agradece ter sobrevivido a um acidente; há muitas próteses, gessos, medalhas, cartas, recortes de jornal, roupas de bebé e até capacetes.

Malta é um país profundamente religioso – “católico apostólico romano”, sublinha Audrey (e onde as despedidas são normalmente acompanhadas de um “Deus te abençoe”). Um legado da Ordem dos Cavaleiros Hospitalários de São João, que chegou em 1530 e “enriqueceu muito mais a história de Malta”, considera a guia. A meio da semana, a Basílica de São Jorge, em Vitória, está relativamente composta com crentes a escutarem o serviço religioso gravado. Cá fora, o dia declina, enchendo de sombras as ruelas que se emaranham à volta da igreja e da praça cheia de esplanadas que a flanqueia, debruadas com casas de não mais de três andares e as típicas varandas fechadas de madeira coloridas maltesas. Nem só terror espalhou o império otomano, a “besta negra” destas ilhas tão acossadas: diz-nos Audrey que estas varandas terão sido introduzidas por eles (e, de facto, recordam os bairros mais típicos de Istambul). Há portas e janelas abertas, ouve-se televisão para lá das cortinas fechadas, para lá das plantas que trepam em algumas fachadas – e lá estão os azulejos com os nomes das casas e os nichos com as imagens religiosas que são parte integrante do casario maltês.

Não se adivinha este pitoresco quando se observa Vitória do alto, que é como quem diz da sua cidadela, durante séculos o principal reduto defensivo de Gozo (usado ainda na II Guerra Mundial). Brilha de “nova”, a pedra dourada de dia e de noite (a iluminação confere-lhe um ar etéreo), mas daí de cima Vitória parece parda, um homogéneo conjunto branco sujo com antenas espetadas – e as aparências enganam. Há recantos intocados pelo tempo e há a velocidade de uma cidade moderna (sobretudo de manhã cedo, ao fim do dia vem uma tranquilidade quase rural), há cafés, restaurantes, bastante comércio tradicional e uma vida cultural que faz inveja a muitas cidades grandes, sobretudo no que à ópera diz respeito. Na principal rua de Vitória, dois teatros de ópera, o Astra e o Aurora, um quase diante do outro, preparam-se para a temporada (Outubro, altura em que até o movimento de ferry se adapta aos horários dos espectáculos, já que, reconhece Audrey, grande parte do público vem de Malta), sempre com produções próprias e solistas internacionais. Em cena estão Tosca e La Traviata – o regresso da ópera, em Abril de 2019, far-se-á com Norma. A temporada de ópera é um momento alto para Gozo, com restaurantes e hotéis a reforçar o seu serviço. Até o Ta’ Rikardu, na cidadela, vai servir jantares. “Há grupos que fazem reservas de um ano para o outro.”

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E, então, andamos aqui nós pela cidadela, um museu ao ar livre que, no seu calcário cor de mel, parece mais esculpida do que construída. Como um sonho dourado, pousado numa colina onde já os povos neolíticos viveram, onde deambulamos entre casas e ruínas, portas pesadas de madeira e arcos que não levam a nenhum lado. Não falta o comércio de souvenirs e museus: o de arqueologia e o etnográfico em breve serão transferidos para fora das muralhas, o antigo tribunal será transformado em hotel boutique e ficará apenas a antiga cadeia, que era destinada somente a membros da Ordem (Jean de la Valette, que se tornaria grão-mestre e construtor de Valetta, foi aqui prisioneiro, durante três meses, por ter atacado um leigo) e tem nos brasões de armas semidestruídos marca perene da presença dos exércitos napoleónicos (os franceses, bem-vindos pelos malteses até que começaram os saques às igrejas, seriam expulsos do país, primeiro de Gozo, com a ajuda inglesa).

Já só vivem duas famílias na cidadela, ocupando casas mesmo ao lado da catedral (à falta de dinheiro para cúpula, pintou-se um trompe l’oeil), que coroa uma portentosa escadaria. E do caminho de ronda da cidadela, é Gozo a 360 graus que se observa: diante de nós, duas das “três” colinas da ilha (estamos na “terceira”), ocupadas por ix-Xaghra e Nadur, “ozzieland” e “little America”, alcunhas ganhas pela grande emigração para Austrália e EUA, respectivamente (em ix-Xaghra a ligação é acentuada pela quantidade de figuras de cangurus nas fachadas); para o outro lado, se a visibilidade ajudasse, a vista poderia chegar à Sicília.

Como não mergulhamos (e este é um paraíso para os mergulhadores), a nossa Gozo é vista assim: do alto. De uma falésia, de um desfiladeiro, de um monte. É apropriado que a última paragem seja no cimo de penhascos, em Il-Qala, com Comino à mão de semear e Malta a esperar-nos.

A Fugas viajou a convite da Autoridade do Turismo de Malta

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