Uma casa onde o passado é comum mas não é igual para todos

O principal desafio na concepção de um museu dedicado à História pan-europeia é arranjar espaço para as diferentes perspectivas dentro da mesma narrativa.

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Na Casa, inaugurada em Maio de 2017, a História da Europa começa a contar-se a partir do século XIX, o período em que, como escrevia Vitor Hugo, “tudo se movia ao mesmo tempo” Dominique HOMMEL
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Na Casa, inaugurada em Maio de 2017, a História da Europa começa a contar-se a partir do século XIX, o período em que, como escrevia Vitor Hugo, “tudo se movia ao mesmo tempo” Dominique HOMMEL
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Na Casa, inaugurada em Maio de 2017, a História da Europa começa a contar-se a partir do século XIX, o período em que, como escrevia Vitor Hugo, “tudo se movia ao mesmo tempo” Dominique HOMMEL

Um gigantesco volume de 80 mil páginas com a totalidade da legislação da União Europeia, aberto ao meio sobre uma mesa de luz esbranquiçada, é o ex-libris do espaço expositivo dedicado ao processo da integração europeia, que ocupa todo o quinto piso da Casa da História Europeia de Bruxelas, e é também o objecto favorito da directora do museu, Constanze Itzel.

É, sem dúvida, uma impressionante peça de museu, especificamente desenhada para o local pelo famoso arquitecto holandês, Rem Koolhaas, para representar — ou melhor, demonstrar — o chamado “acervo comunitário”, o conjunto de normas jurídicas adoptadas por todos os 28 Estados-membros da União.

Este volume único tornou-se ainda mais impressionante nos últimos tempos, por servir como um poderoso símbolo (ou, se preferirmos, uma perfeita metáfora visual) do último grande e dilacerante debate político europeu, em torno do “Brexit”. Aqueles que apoiam a decisão do Reino Unido de abandonar a União Europeia, dificilmente poderiam conjurar uma imagem tão categórica da ingerência de Bruxelas: páginas e páginas de regulamentos, directivas, acordos e tratados, que são redigidos longe das capitais de cada país. Aqueles que até hoje não se conformam com a saída olham para o mesmo livro e perguntam-se em nome de quê se pretende desfazer uma unidade ou harmonia que é verdadeiramente singular no contexto mundial.

Pelos sucessivos pisos que compõem a Casa da História Europeia, um museu planeado e financiado pelo Parlamento Europeu para promover a unificação e integração europeia, é possível encontrar centenas de objectos que, tal como o volume único da legislação comunitária, podem simbolizar coisas muito diferentes para pessoas muito diferentes. Porque, como nota Constanze Itzel, “a memória não é igual para todas as pessoas”, e por isso a História não tem apenas uma perspectiva nem pode contar-se de uma única maneira. “O que procuramos é, precisamente, mostrar as diferentes formas de olhar para o passado”, diz.

Na Casa, inaugurada em Maio de 2017, a História da Europa começa a contar-se a partir do século XIX, o período em que, como escrevia Vitor Hugo, “tudo se movia ao mesmo tempo”. O visitante pode entender facilmente como se tratou de uma época de enormes transformações — políticas, sociais, tecnológicas, culturais. É aí que, depois de desmontado o mito fundador da Europa, somos confrontados com os efeitos da revolução, por exemplo na forma do primeiro código civil francês; com o impacto da industrialização, que tornou a Europa o centro mundial da produção de bens das finanças e do comércio; com a crescente concorrência política entre a ordem representada pelos partidos liberais e os nascentes partidos socialistas, repositórios das primeiras reivindicações sociais.

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Casa da História Europeia Benoit Bourgeois

É ali também que se introduz o conceito de nacionalismo, que voltou a ocupar a agenda política dos europeus neste início do século XXI. No seu despontar, há mais de 200 anos, os movimentos nacionais procuravam forjar identidades únicas distintas de todas as outras. Acabaram por alimentar a instabilidade política e a violência, promover a radicalização dos cidadãos e a competição entre os Estados, gerando tensões sociais e rivalidades internacionais que explodiram em conflito no século XX.

Ao mesmo tempo, salienta-se, “alguns visionários falavam já na unidade do continente”. Essa é a linha que guia toda a exposição permanente: o museu procura destacar os “temas comuns”, as experiências partilhadas por todos os europeus, mesmo nos períodos de maior desunião.

Ponto de viragem

Uma cópia da pistola Browning Model 1910, que foi utilizada pelo anarquista sérvio bósnio, Gavrilo Princip, no assassínio do arquiduque Franz Ferdinand em Sarajevo, a 28 de Junho de 2014, abre a porta à secção dedicada à Primeira Guerra Mundial, o ponto de viragem do domínio global europeu e o primeiro conflito mundial industrializado. “Assim se abriu o século mais sangrento na História da Europa, com o trauma a ter um impacto profundo na memória europeia”, avisa a voz do narrador que acompanha cada um dos visitantes, munidos de um tablet que serve de guia áudio e oferece explicações suplementares sobre todas as peças da exposição permanente (disponível em todas as línguas da UE).

A partir daqui, a visita torna-se menos agradável — o itinerário é marcado pela guerra e o conflito. Vemos desenharem-se novos mapas geográficos e políticos, e percebemos como as democracias deram lugar aos totalitarismos. O museu põe em confronto dois regimes ideologicamente opostos mas “tão semelhantes na sua brutalidade e opressão” - o nacional-socialismo e o estalinismo -, duas paredes oblíquas e negras, que conduzem à Segunda Guerra Mundial, a “guerra total” que não fez distinção entre soldados e civis, o horror mais completo do Holocausto, acontecimento sem paralelo na História mundial.

Um piso acima, mostra-se a reconstrução do continente devastado e dividido entre dois novos blocos antagónicos, os Estados Unidos da América e a União Soviética. Durante a Guerra Fria, nos tempos da Cortina de Ferro, a Europa posiciona-se como a terceira força mundial. Começa, então, a dar os primeiros passos da sua integração; em 1948, com a criação do Conselho da Europa; em 1951, com a constituição da Comunidade Europeia do Carvão e Aço; em 1957, com a assinatura do Tratado de Roma que inaugura o mercado comum e dá origem à Comunidade Económica Europeia.

Em paralelo, percebe-se como a regeneração da Europa se sustentou numa nova concepção de Estado providência ou Estado social, com a criação da segurança social, e as garantias de acesso universal à saúde, à educação, à habitação: há painéis que remetem para o crescimento do consumo e o novo fenómeno do consumismo, quando o poder de compra se elevou para além da procura dos bens essenciais; ou para a emergência do turismo de massas depois das férias pagas se tornarem um direito legal.

Nova consciência política

Ainda assim, como se vê, neste novo período de prosperidade das economias de mercado na década de 60 e 70, a divisão política continuou a interferir na vida dos europeus: os turistas não podiam movimentar-se livremente, necessitando em muitos países de pedir autorização de viagem. Nos países sob regimes comunistas, os constrangimentos às deslocações eram significativos. E na Europa Ocidental, onde emergiam os movimentos de defesa da igualdade de género ou da população LGBT, e arrancavam as campanhas pacifistas e ambientais, uma nova consciência política determinava, por exemplo, o apelo ao boicote de certos destinos, caso de Portugal, Espanha e Grécia, governados na altura por ditadores.

Mas logo ali ao lado também estão as primeiras páginas dos jornais que deram conta do ”golpe militar” de 25 de Abril de 1974, em Portugal, ou da morte de Franco, a 20 de Novembro de 1975. Inicia-se uma nova vaga de democratização, no Ocidente — os dois países ibéricos entram na ainda CEE em 1986 — e depois da queda do muro de Berlim, em 1989, também no Leste, onde revoluções maioritariamente pacíficas, mas também a guerra dos Balcãs, levaram outra vez à alteração do mapa europeu.

A União Europeia alarga-se mais vezes: em 1995, ano em que os controlos de fronteira são abolidos com o acordo de Schengen; 2004, com a adesão em bloco de dez países; 2007, que apesar da rejeição do projecto da Constituição europeia, termina com a aprovação do Tratado de Lisboa (momento assinalado no museu através da edição do jornal PÚBLICO de 13 de Dezembro) e finalmente, em 2013, quando se fechou o actual conjunto de 28 Estados membros. Até Março do próximo ano, quando pela primeira vez haverá uma desistência: a campanha do referendo britânico que resultou no “Brexit” também já está em exposição.

A directora do museu gosta que o percurso da visita se construa desta forma cronológica linear que deixa à vista estas várias “camadas” que fazem uma época, ou marcam uma geração. Como chama a atenção, a chegada aos últimos pisos do museu que dão conta da integração europeia, deixando para trás as crises históricas, permite demonstrar “como as visões políticas permitiram sempre que a Europa evoluísse” do seu passado de conflito para se tornar um projecto de paz. “Foram as crises que levaram à criação de algo tão positivo quanto a União Europeia”.

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