Cavaco, o avaliador de caracteres políticos
São mais de quinhentas páginas sobre o seu segundo mandato como Presidente da República, em que Cavaco faz revelações surpreendentes sobre questões de Estado. Mas muito do que é escrito passa pela tentativa de retratar o carácter políticos dos principais líderes partidários com quem se cruzou em Belém.
Se dúvidas houvesse, o II volume de Quinta-feira e Outros Dias desfá-las. Cavaco Silva não concordou mesmo com a aliança político-parlamentar que suporta o Governo de António Costa e foi contrariado que deu posse ao Governo. Mais. Faz hoje uma apreciação negativa da atitude e do carácter político do primeiro-ministro, num livro de memórias, escrito em estilo de relatório, em que retrata também o ex-primeiro-ministro, Passos Coelho, a quem elogia, mas aponta defeitos.
O ex-Presidente da República revela que Passos quis demitir-se aquando da crise da TSU em 2012, que Paulo Portas recusou que o CDS ocupasse o Ministério das Finanças pois não tinha “um bom nome” para a pasta, em Maio de 2013, aquando da demissão de Vítor Gaspar, e que o PCP estava disponível para integrar o Governo de Costa em Outubro de 2015 – diz mesmo que Costa lhe disse, a 12 de Outubro, que Jerónimo de Sousa “manifestara-se disponível para um acordo de incidência parlamentar com o PS e, inclusivamente, para assumir responsabilidades governativas”.
A defesa do papel central na democracia Tribunal Constitucional e da própria Constituição é uma das surpresas do livro. Cavaco chega mesmo a dizer sobre o que considera “obsessão” de Passos contra o Tribunal Constitucional: “Se desistisse, significava que o PSD e o CDS-PP não eram capazes de governar numa democracia constitucional. Não havia precedentes de uma tal atitude da parte de um Governo (…) ‘O Governo não pode encarar uma decisão do TC como a aprovação de uma moção de censura. Seria coisa nunca vista’, disse.”
Destaca-se ainda o reafirmar da defesa da equidade fiscal, que o levou a recorrer ao TC para a fiscalização de Orçamentos do Estado. E a atitude crítica perante a actuação da troika, que avaliou o cumprimento das regras do ajustamento das contas públicas entre 2011 e 2014, considerando que esta era de “um absurdo e uma prepotência inaceitável”, tratava “Portugal como se fosse um protectorado” e classificando como “inconcebível a [sua] atitude de inflexibilidade e de insensibilidade política e social”.
Condena ainda a “atitude impositiva, inflexível e por vezes arrogante da troika”, mas também a atitude do então ministro das Finanças, Vítor Gaspar, na V avaliação que levou à crise da TSU em 2012: “O seu compromisso político era para com o país, não para com a troika. O que os portugueses esperavam era que ele enfrentasse a troika e a convencesse a recuar. E não me parecia que fosse impossível convencer os nossos parceiros europeus do absurdo da posição irredutível da troika, pondo em causa os esforços que os portugueses tinham vindo a fazer.” Saliente-se também a crítica à decisão das agências de rating de continuarem a penalizar Portugal já depois do acordo de ajustamento: “Para mim, era uma decisão que fazia pouco sentido.”
Fel por Costa
O único elogio a Costa surge logo no início em relação à reforma do Código Laboral feita por Passos. “O sucesso da reforma laboral é atestado pelo facto de, no essencial, não ter sido ainda alterada pelo XXI Governo Constitucional”, mas não deixa de perguntar: “Até quando resistirá o primeiro-ministro, António Costa, às pressões desencadeadas em 2018 pelo PCP e pelo BE no sentido da reversão de algumas normas da reforma laboral, é uma importante questão que subsiste.”
As primeiras apreciações negativas de Costa surgem ainda sobre o período em que Seguro era líder. “Sobre a crise interna no PS que se desenrolara ao longo do mês de Fevereiro [de 2013] em que elementos próximos do antigo primeiro-ministro, José Sócrates, - a ‘tralha socrática’ na terminologia do comentador Luís Marques Mendes -, tinham lançado o presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, para afastar António José Seguro da liderança do partido, o primeiro-ministro considerava que este último saíra reforçado do ataque a que fora sujeito”, afirma, considerando que Costa “não se tinha saído bem, revelando calculismo e espírito fértil em manobras de bastidores, incapaz de uma actuação frontal. Ficara, sobretudo, a sensação de falta de coragem por parte do então presidente da Câmara de Lisboa para assumir um desafio claro ao líder do seu partido”.
Ainda que salientando que Costa sempre foi “correctíssimo, até mesmo cordial” nas conversas que consigo manteve, Cavaco avança que, no encontro de 12 de Outubro de 2015, para a formação do Governo, Costa afirmou: “Compete-me salvar o PS”. E acrescenta: “Ocorreu-me dizer-lhe que ser primeiro-ministro era uma condição necessária para se salvar a si próprio como líder do PS, mas, como, é óbvio, não o fiz.” Desse mesmo encontro, confessa ter ficado com “a ideia de que António Costa era um político profissional de pendor taticista que, para ser nomeado primeiro-ministro, estava determinado a estabelecer um compromisso de tipo frente popular com a extrema-esquerda.”
O ex-Presidente crítica também as cerimónias de assinatura de acordos do PS com o BE, PCP e PEV. “Foram cerimónias algo clandestinas, envergonhadas, sem a presença da comunicação social e sem dignidade” . E assume sobre esta aliança parlamentar: “Era uma solução governativa que não podia deixar de me suscitar desconfiança e preocupação quanto ao evoluir da situação económica e financeira.”
Já sobre o Governo de Costa sublinha que “só se falava de reversão de decisões do Governo anterior, algo anormal numa democracia madura e inusitado para um país membro da União Europeia havia já três décadas”. E garante que “não tinha dúvidas de que, se o BE e o PCP conseguissem impor a sua agenda económica, as consequências para o país seriam pesadas”, acusando que “em poucos meses, o Governo foi ao encontro dos interesses das clientelas do PCP e da Intersindical: o respectivo apoio ao executivo de António Costa revelava-se um bom negócio”.
Já sobre Mário Centeno, Cavaco diz: “O comportamento do Governo em matéria orçamental apresentava-se claramente desafiante e pouco prudente. O ministro das Finanças, Mário Centeno, enfiara de tal modo o chapéu de político que isso lhe toldara o seu acervo de conhecimentos de macroeconomia.”
Defende que “a austeridade foi mantida através do aumento de impostos de distribuição difusa, que têm a característica de anestesiar aqueles que os pagam. O Governo foi hábil, por outro lado, em conseguir que a atenção mediática se concentrasse nas benesses atribuídas a funcionários da administração pública e das empresas públicas e a pensionistas, propiciadas pela melhoria da situação económica e financeira herdada do anterior executivo.”
Assumindo que se opôs à baixa do IVA, cuja receita diz poder ter ajudado a financiar a saúde e afirma: “O primeiro ano do Governo do PS presidido por António Costa não foi, de facto, bom para o país.” E conclui: “No princípio de 2017, já muitos tinham percebido que, virada a página apenas para alguns, a austeridade continuava patente na ausência de investimento público, nas cativações, na deterioração da qualidade dos serviços públicos e nos impostos, com a carga fiscal a crescer a níveis nunca vistos.”
Sobre a sua relação institucional com Costa, sublinha: “Retive a ideia de que era um homem pessoalmente simpático e bem-disposto, de sorriso fácil. Um hábil profissional da política, um artista da arte de nunca dizer não aos pedidos que lhe eram apresentados. Uma habilidade patente na sua política de equilíbrio entre a satisfação dos interesses do PCP e do BE e das exigências de disciplina orçamental da Comissão Europeia”. Sustenta ainda que Costa “mantinha uma atitude descontraída, sem revelar grande preocupação, como se tudo fossem meras trivialidades. Os problemas acabariam por se resolver com o passar do tempo e não perturbavam o gosto que sentia em ser primeiro-ministro”, concluindo: “Percebera com Passos que, em política, uma excessiva preocupação em falar verdade não era caminho para o sucesso.”
Seguro, o inseguro
Quem não escapa ao um retrato cruel feito pelo antigo Presidente, é o ex-líder do PS, António José Seguro (AJS). “Apesar dos problemas que enfrentava no interior do partido, sendo alvo de uma intriga permanente da parte do seu antecessor [José Sócrates], AJS mantinha um sentido de responsabilidade que o Governo deveria valorizar”, começa por referir sobre os primeiros tempos de relação institucional, para mais à frente sustentar: “AJS oscilava entre a oposição responsável (…) e o discurso demagógico de oposição a todas as medidas de austeridade, procurando capitalizar o descontentamento da população e manter o controlo do partido.”
Frisando que tentou ao limite que o Governo de Passos se entendesse com o PS, sublinha: “Acrescia o facto de o líder do PS recusar qualquer entendimento com o Governo sobre o período pós-troika. O primeiro-ministro reunira-se com AJS dois dias antes. Não fora fácil conversar com uma pessoa desconfiada, muito sensível e com uma fraca noção das realidades europeias.”
O tom crítico dispara quando Cavaco refere o rompimento pelo líder do PS das negociações do acordo tripartido com o CDS e o PSD que procurou patrocinar em Junho de 2013. “A declaração de Seguro ultrapassou, pela negativa, tudo o que eu podia imaginar. As impressões que registei por escrito depois de desligar a televisão, sob impulso do que ouvira, são disso reflexo”, começa por dizer, para se citar a si mesmo na apreciação que então fez: “Uma demagogia politicamente pouco honesta, contrária ao espírito construtivo em que tinham decorrido as negociações, e um total irrealismo quanto às relações com as instituições credoras; anunciou a ruptura das negociações quando se tinha comprometido a tentar uma nova reunião das delegações; um líder partidário simpático e correcto nas conversas, mas que, perante os problemas, se revela inseguro, medroso e sem capacidade de liderança; se ganhar as eleições, do que começo a duvidar, será um primeiro-ministro fraco.”
Passos, o irredutível
Passos é das pessoas mais bem tratadas por Cavaco no seu livro. Ainda assim, ao logo das páginas vão surgindo críticas ao ex-primeiro-ministro. Relata que logo na constituição do Governo lhe fez uma sugestão que não aceitou, e confessa: “Emergiu, no entanto, a sua tendência para a teimosia, apoiada numa sincera e irredutível convicção de que estava certo, tendência de que me fui apercebendo ao longo da legislatura.” Apesar disso, garante que, “nas reuniões de quinta-feira, mesmo nas situações mais difíceis, apresentava sempre uma grande calma e nunca subia o tom de voz – uma virtude assinalável”.
Passos tem direito a vários elogios pela sua prestação como primeiro-ministro. “Empenhou-se corajosamente – e com sucesso – em resgatar o país da situação de quase bancarrota a que Portugal tinha chegado em reconquistar a credibilidade externa, criando condições para que fosse reencontrada uma trajectória de crescimento económico e de criação de emprego. É, por isso, credor do apreço dos portugueses”, sublinha, mas não deixa mesmo assim de se demarcar: “No entanto, em minha opinião, cometeu o erro de não cuidar adequadamente da equidade na repartição dos sacrifícios que foram exigidos aos cidadãos.”
As críticas a Passos surgem também a propósito da proeminência que o ministro das Finanças, Vítor Gaspar, adquirira. “Voltei a ficar com a impressão que o primeiro-ministro confiava demasiado nas projecções que o ministro das Finanças lhe apresentava”, refere Cavaco, revelando outra conversa: “Disse-lhe mesmo que me parecia errado da sua parte considerar que todos aqueles que discordavam das medidas defendidas pelo ministro das Finanças eram ignorantes. Em economia não havia soluções únicas.”
A estratégia de comunicação de Passos também não sai sem reparo. “O certo é que eu não conhecia outro político que fizesse tanta questão de anunciar medidas impopulares como Pedro Passos Coelho. Ninguém poderia acusá-lo de demagogia ou eleitoralismo”, diz Cavaco, acrescentando noutra passagem: “Era-me difícil entender este tipo de masoquismo político do Ministério das Finanças, que era aceite pela equipa do primeiro-ministro. Tal como era difícil aceitar a desastrada estratégia de comunicação do Governo, incapaz de apontar uma centelha de luz ao fundo do túnel e fazendo questão de acentuar a dureza dos sacrifícios exigidos aos portugueses e a evolução negativa da economia.”
Fora do olhar crítico de Cavaco não fica a forma como Passos geria o Governo. “Tinha deixado de discutir questões delicadas em Conselho de Ministros, confrontando-o apenas com as decisões finais, o que interpretei como mais um sinal de fragilidade da coligação e de falta de autoridade dos líderes dos dois partidos”, revela o ex-Presidente.
Portas, o infantil
Nas memórias de Cavaco surge relatada pormenorizadamente a turbulência nas relações entre Passos e Portas. “Entendi que servia melhor o país sendo claro e franco com o primeiro-ministro. Apesar de o considerar uma pessoa confiável, séria nos seus propósitos, defensor da transparência na vida pública, empenhado na realização do interesse nacional e em falar verdade aos portugueses – qualidades que muito apreciava num político -, concluíra que lhe faltava paciência e flexibilidade para lidar com as permanentes angústias e humores de Paulo Portas. Por sua vez, este tinha alguma razão quando afirmava que o primeiro-ministro tinha pouca autonomia em relação ao ministro das Finanças, e não me era difícil entender os que sublinhavam a sua teimosia”.
A propósito da quinta avaliação da troika e da opção de baixar a TSU para as empresas, revela que recebeu “a seu pedido e confidencialmente” o líder do CDS a 14 de Setembro de 2012 e conta: “[Portas] Concluiu afirmando que, em relação à TSU, não podia oferecer solidariedade ao primeiro-ministro, o que me deixou estupefacto”.
Revela igualmente o que percepcionava das conversas com Passos sobre o que o ex-primeiro-ministro pensava de Portas. “Percebi que a sua desconfiança em relação ao líder do CDS-PP não se tinha esbatido. Sabia que Portas não gostava do ministro Vitor Gaspar e não me podia garantir que não surgiriam outras ameaças de crise política.” Uma relação difícil entre Gaspar e Portas que surge noutra passagem: “Ouvi as suas [de Portas] queixas relativamente ao ministro das Finanças.”
E não poupa as críticas ao ex-líder do CDS-PP sobre a sua demissão de ministro dos Negócios Estrangeiros, em Junho de 2013. “Manifestei a minha total estupefacção perante o que acabava de ouvir. Paulo Portas não me dera qualquer palavra, uma atitude inaceitável. Terá dito, no dia seguinte, na reunião da Comissão Executiva do CDS-PP, que não o fizera porque queria que a sua demissão fosse ‘irrevogável’.”
Uma demissão que Cavaco comenta: “A decisão de Paulo Portas era completo absurdo. Fazer um comunicado anunciando a demissão em cima da posse da nova ministra das Finanças, que teria lugar uma hora depois, parecia-me uma infantilidade pouco patriótica. Visava, propositadamente, destruir a credibilidade da nova titular da pasta, quer no plano interno, quer no plano externo. Absolutamente inaceitável.”
Com a remodelação que se seguiu a turbulência sossegou, afirma o ex-Presidente. Numa reunião, “Passos Coelho afirmou que, da sua parte, garantia a coesão e a solidez da coligação e a governabilidade até ao fim da legislatura. Acreditava que, depois de tudo o que se passara, pesava sobre Paulo Portas um ónus que o forçava a uma atitude de lucidez e realismo e a procurar relacionar-se correctamente com a ministra das Finanças.”
Uma melhoria que se deveu ao facto de Portas ter ficado responsável pelas relações com a troika. “Até então, Paulo Portas pensava sempre que o primeiro-ministro e o ministro das Finanças não enfrentavam os técnicos da troika. Com o seu envolvimento nas negociações, começara a sentir as dificuldades, o que o levara a ganhar mais racionalidade nos seus argumentos e mais realismo nas suas propostas”, diz Cavaco, concluindo: “Fiquei com a ideia de que o primeiro-ministro tinha passado a cuidar melhor do seu diálogo com o líder do CDS-PP, envolvendo-o mais profundamente nos assuntos da governação.”
Cavaco não hesita mesmo em comparar o Governo de coligação entre o PSD e o CDS liderado por Passos com aquele que de que ele próprio foi ministro das Finanças: “Na AD havia uma liderança inequívoca, diálogo fácil entre Francisco Sá Carneiro e Freitas do Amaral, espírito de coesão e consistência nas políticas. O Governo era uma equipa, todos remavam no mesmo sentido, o que não acontecia agora.”