Neste comboio olha-se “muito para trás” para explicar o desinvestimento na ferrovia
Entre o espanto dos carris pouco explorados e o desânimo pela situação precária da CP de simpatizantes a profissionais do sector, a Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos de Ferro foi de Lisboa a Évora para assinalar o 41º aniversário
No interior das carruagens, a escassa distância da estação de Setil, em pleno Ribatejo, sente-se o entusiasmo contido da antecipação. A um quarto para as 11h, o comboio especial que tinha partido da estação de Lisboa - Santa Apolónia 37 minutos antes, faz naquele ponto o que um comboio de passageiros não fazia ali há muito: em vez de prosseguir pela Linha do Norte, diverge na bifurcação para a Linha de Vendas Novas.
No momento da curva para Sul, para uma linha que se mantém operacional mas que apenas serve o transporte de mercadorias, saem de bolsos e malas as máquinas de filmar e os telemóveis, com a urgência de captar com a lente o equivalente a um animal arisco ou em vias de extinção. No interior da Unidade Tripla Eléctrica (UTE) vão mais de 130 membros da Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos de Ferro (APAC), que celebra 41 anos neste dia, com a viagem de percurso singular a servir para o assinalar.
Segue-se a troca de experiências de quem passou na Linha de Vendas Novas pela última vez como passageiro e se lembra do tipo de comboio e das circunstâncias, nos já longínquos anos 1980 ou 1990; de quem ali passou numa locomotiva 1300 ou numa Nohab, automotora de origem sueca que já deixou de circular em Portugal.
Jacinto da Silva Santos é dos que se recorda de ter passado nestes carris, em Dezembro de 1983, numa Nohab de bancos de madeira, conta. De óculos, boné azul escuro com a inscrição “Rail Facilities” e máquina de filmar que vai empunhando conforme a oportunidade, explica que veio de Viena de propósito para fazer esta viagem. Chegou apenas na meia noite anterior. O homem de 55 anos que trabalha em Bruxelas fala do gosto pelos comboios como “uma doença”, tanto que, para além de ser sócio da APAC, é também membro de associações congéneres em Espanha, França e Bélgica.
“A situação em Portugal é muito triste”, assinala Jacinto da Silva Santos. “Não há um conceito de rede”, somando-se a “má gestão do material circulante”. A situação actual, considera, é de “tapa-buracos” e da qual “é muito difícil recuperar”. Do centro da Europa, analisa também a perspectiva internacional: “Não há países na União Europeia que estejam tão desconectados quanto Portugal e Espanha”.
Na sucessão de apeadeiros e estações desactivadas, já depois de transposto o rio Tejo, há a curta paragem na estação de Vidigal. Apresenta-se num edifício de dois pisos, hoje com janelas e portas emparedadas, rodeado por figueiras e pinheiros mansos. Não havendo qualquer acesso de alcatrão, é uma oportunidade para tirar uma fotografia à UTE estacionária.
Enquanto recolhe de novo à carruagem, Filipe Ferreira vai explicando que participa nestes passeios para ir mantendo o contacto com o sector dos transportes, no qual trabalhou ao longo da vida. Relacionado com a ferrovia, conta o aposentado de 76 anos, trabalhou no final dos anos 1960 na English Electric, que fabricava as locomotivas 1400 e 1800, mas que viria depois a ser absorvida pela General Electric.
A rede portuguesa tem minguado, lamenta, considerando a ferrovia “um serviço público indispensável”. E prossegue: “Devemos ser o país da Europa com menos quilómetro de caminho-de-ferro por habitante”.
O presidente da APAC, António Reis, diz que já vai sendo difícil encontrar “pontos interessantes para fazer [estes] passeios”, de “tão amputada” que está a rede ferroviária. Mesmo que tenha começado a ser tecida no século XIX e com a extensão ao longo do século seguinte, à rede ferroviária portuguesa têm sido subtraídos quilómetros.
Entre os 1500 sócios da APAC há perfis variados. Desde simpatizantes a profissionais do sector, tanto da circulação como das infraestruturas. “Um conjunto de carolas que discute” a ferrovia “ao longo dos anos”, descreve o presidente.
Recuperar o que se perdeu
“Vamos ter um cruzamento!”, anuncia empolgado António Reis, enquanto a UTE (material circulante dos anos 1970, entretanto modernizado) vai passando o sinal luminoso amarelo, na linha de Vendas Novas. Isto significa que será avistado um comboio de mercadorias que ali circula no sentido contrário. Instantes depois, novo pico de entusiasmo, desta feita colectivo: “é uma Comsa”. E o que tem de especial uma máquina destas? Antes, havia uma grande variedade de material de tracção, explicam-nos. Hoje, pelo simples facto de ser diferente, é motivo de excitação para quem anda de olho nos comboios.
A ligação de Fernando Pedreira aos caminhos-de-ferro é involuntária, mas nem por isso deixa de ser dedicada. Já vem desde antes dele, pelo pai, que era ferroviário, e desde antes dele ainda, pelo avô, que era chefe de estação. Dos seus 67 anos e bigode grisalho, assenta a palma da mão esquerda estendida no estofo laranja do banco ao lado: os últimos seis anos no activo foram passados a trabalhar numa empresa que vendia bancos para carruagens. “Estes”, afirma enquanto ensaia o gesto.
“Tenho alguma dificuldade em encontrar culpados”, refere Fernando Pedreira, quando o assunto de conversa se encaminha para a situação actual da CP, que no último Verão diminuiu a oferta em várias linhas do país devido à falta de material circulante. Não que não existam. “Tenho que olhar muito para trás”, esclarece.
O presidente da APAC confirma a tese de que os problemas na operação ferroviária em Portugal “não são de agora”, mas que tiveram um reflexo mais acentuado este ano. “Ao longo de décadas, o caminho-de-ferro tem sido alvo de um desinvestimento muito grande”. Esse aspecto mostra também uma “falta de opção estratégica por parte do Governo”. Não apenas de um executivo, mas de sucessivos. Fernando Pedreira tenta ser ilustrativo: “não é no mês a seguir a deixarmos de lavar os dentes que começamos a ter cáries”. Processo semelhante aconteceu com o material circulante. No entanto, se tal aconteceu, o “aumento dos ciclos de manutenção do material” também contribuiu para o desgaste, refere António Reis. “Nunca esteve em causa a segurança, mas tem-se verificado um número cada vez mais elevado de material encostado”, diz.
Acrescem “determinados conceitos de padrões de qualidade”, refere o responsável, tendo-se assim encostado “material que podia ter tido uma vida mais longa”. “Muitas vezes, em ambientes turísticos, as pessoas não se importam de prescindir de determinado tipo de conforto se puderem abrir uma janela para ver a paisagem”, adensa, exemplificando com o caso das carruagens Schindler. Estes veículos, apesar de não terem ar condicionado, foram recuperados para pôr ao serviço na linha do Douro, no comboio Miradouro. No entanto, com a falta de material, a empresa estatal já os utilizou em comboios regulares nas linhas do Douro e Minho.
Numa simplificação, Reis considera que é preferível “haver serviço do que não haver serviço”. E o exemplo de não haver serviço é a Linha do Oeste, “uma autêntica lotaria”.
“Não vejo saída a curto prazo”, afirma Pedreira, que, por ter trabalhado no sector, sabe que os prazos de entrega de material não permitem resoluções imediatas. Num processo que corra bem, estima, entre o lançamento do projecto e a entrega, decorrem quatro anos.
Évora serve de ponto mais afastado, numa viagem circular cujo regresso a Santa Apolónia se faz via Ponte 25 de Abril, passando antes por Poceirão, Águas de Moura e Setúbal, noutro trajecto que não está habituado a ver composições de passageiros. Jacinto da Silva Santos serve-se desta capital de distrito alentejana para fundamentar a sua tese de que a ferrovia portuguesa “já não é uma rede, mas sim um eixo com algumas ramificações”. Da cidade partia-se para Reguengos, Mora ou Portalegre. “Chamavam-lhe a estrela de Évora. Agora chega ali e acaba”, conclui.
O economista João André Margalho não quer ser pessimista, como ele próprio declara. Mas os últimos anos não têm sido “os mais favoráveis” para os caminhos-de-ferro nacionais. À falta de material circulante, de manutenção e de renovação acrescenta a falta de respeito “flagrante” pelos passageiros, que se materializou em “supressões e avarias no meio do nada”, como o célebre episódio a caminho de Beja.
Todavia, lembra Margalho, de 61 anos, há anúncios de modernização das linhas e de compras anunciadas. A espera pode durar anos, resta saber se os passageiros resistem até lá, sublinha. E prossegue: “Vamos ter anos complicados que, em vez de servirem para passarmos a um patamar superior de velocidade ou segurança, vão ser passados a tentar recuperar aquilo que se perdeu”.