O mundo tem de ser seguro para quem denuncia a arbitrariedade e a violência

Vivemos num mundo de tal modo globalizado e transparente que os regimes antidemocráticos já não podem dar-se ao luxo de banhos de sangue como em Tiananmen.

Reserve as terças-feiras para ler a newsletter de Teresa de Sousa e ficar a par dos temas da actualidade global.

1. O caso de Jamal Khashoggi, o jornalista saudita assassinado no consulado do seu país em Istambul, está a pôr em causa não apenas a Realpolitik à moda do Presidente americano como a sua forma particular de gerir os interesses americanos no Médio Oriente e no mundo. O “realismo”, neste caso, quer dizer que Trump não dá a mínima importância à dimensão dos direitos humanos e da democracia que sempre existiu na política externa dos EUA, incluindo nos tempos da Guerra Fria, quando, por vezes, era preciso apoiar um qualquer “son of a bitch”, nas palavras de Condoleezza Rice, apenas porque era “our son of a bitch”. Mesmo assim, a bandeira americana no combate à União Soviética nunca dispensou, nem poderia dispensar, a defesa da liberdade contra a tirania. Era em nome dela que combatia. Durante algumas décadas, com a expansão constante da democracia, pareceu ainda possível manter este princípio fundamental como determinante da política externa dos EUA e das democracias ocidentais. É bom não esquecer que as guerras de George W. Bush, por mais desastrosas que tenham sido, ainda foram travadas em nome da expansão da democracia, que, como explicava igualmente Rice, era a maior garantia de segurança que os EUA podiam alcançar. Regressamos — ou regredimos — agora a um mundo em que esses princípios, que fazem parte do acervo ocidental e da sua identidade política, estão em franca recessão.

2. O caso do jornalista saudita é particularmente chocante, pelos pormenores que se vão conhecendo, desmascarando um regime que é moralmente repugnante. As autoridades sauditas, pressionadas pela Casa Branca, falam agora de uma luta envolvendo agressões físicas que acabou mal; fazem rolar duas ou três cabeças; prometem um inquérito “rigoroso”. Afiançam que o príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman (conhecido como “MBS”), o novo “homem-forte” do regime, inicialmente saudado como um “modernizador”, foi alheio à operação. Justamente, Khashoggi centrava as suas críticas mais contundentes contra MBS, desmascarando a fachada “modernizadora” que apenas encobria um autocrata assassino. O jornalista foi, anos a fio, semitolerado pelo regime, com acesso directo à família real. Partiu para o exílio nos EUA, onde residia e era colunista do Washington Post, precisamente quando MBS foi nomeado sucessor do rei Salman.

3. Donald Trump já veio dizer, na sexta-feira, que lhe parecia que as explicações do rei Salman eram credíveis e que ele não ia mentir-lhe. Com uma “candura” rara entre os líderes ocidentais, explicou a sua relutância em abrir uma guerra contra o regime saudita. “A Arábia Saudita tem sido um grande aliado, um investidor tremendo nos EUA. Eles aceitaram gastar 450 mil milhões de dólares em compras e em investimento nos EUA, por isso espero que possamos manter isto aberto. Há imensas coisas que podemos fazer.”

Trump sabe que não pode ignorar o assunto, até porque tem a pressão do Congresso, onde muitos republicanos já disseram que as explicações sauditas são insuficientes e que os EUA não podem participar numa “operação de encobrimento” desta natureza. O comportamento de Trump neste caso não é surpreendente. “É inteiramente consistente com a sua política externa de se colocar ao lado de ‘homens-fortes’ e aceitar a sua palavra — seja ela a garantia dada por Vladimir Putin de que a Rússia nunca interferiu nas eleições de 2016 ou a promessa de Kim Jong-un de destruir as suas armas nucleares”, escreve Richard Haas, presidente do Council on Foreign Relations, um think-tank americano. O primeiro país que o Presidente americano visitou quando chegou à Casa Branca foi a Arábia Saudita, caso inédito nas estreias dos presidentes americanos mais recentes. Trump quis anunciar que olharia para a região de maneira totalmente diferente da dos seus antecessores, não como a potência externa capaz de restabelecer alguns equilíbrios de poder, mas tomando claramente partido pela Arábia Saudita na sua luta contra o Irão pela hegemonia regional. Assinou, convém acrescentar, negócios de biliões de dólares, que é o que quase toda a gente faz quando visita o reino do petróleo que jorra das areias do deserto quase sem custo, como agora admitiu publicamente. O passo seguinte foi isolar o Irão, com a decisão radical de rasgar o acordo assinado em 2015 entre EUA, Rússia, China, França, Reino Unido e Alemanha e o regime de Teerão para pôr cobro ao seu programa nuclear com fins militares. Não pode agora deixar cair o regime saudita. Mesmo que os EUA estejam em condições de exercer sobre Riad o máximo de pressão, não é essa a sua política.

4. Os EUA são hoje independentes do ponto de vista das suas necessidades energéticas e um grande exportador de gás, por isso, muito menos vulneráveis à “arma do petróleo”. A preocupação de Trump, que também não esconde, é apenas mantê-lo a um preço razoavelmente baixo. Ora, a Arábia Saudita é determinante na fixação do preço do petróleo, bastando-lhe aumentar ou diminuir a sua produção. Riad pensa que é essa a “arma” que ainda pode utilizar para silenciar os EUA. Amy M. Jaffe citava no Politico.us de quinta-feira uma frase do ministro da Energia saudita, lembrando que o seu país funciona como “o banco central do mercado petrolífero” e esperando que “os esforços da Arábia Saudita sejam reconhecidos”.

Produzindo mais de um em cada dez barris de petróleo extraídos no mundo, Riad tem funcionado como o principal estabilizador dos preços, absorvendo os choques provocados por outros produtores. Trump tem insistido nos últimos dias para que os sauditas actuem rapidamente de forma a absorver o choque da redução brusca da venda do petróleo iraniano, na sequência das sanções que os próprios EUA aplicaram ao Irão, incluindo a proibição da venda a partir de Novembro deste ano, que já está a afectar por antecipação o mercado. A queda cifra-se em um milhão e 1,5 milhões de barris por dia nas exportações para a Europa, Japão e Coreia do Sul. Trump foi mesmo ao ponto de dizer publicamente que o velho rei Salman não duraria duas semanas sem o apoio militar americano. Jaffe lembra, no entanto, que a “arma” do preço do petróleo não é tão poderosa como Riad quer fazer crer. “Os países ocidentais poderiam libertar parte das suas reservas estratégicas (...), a melhoria em curso nos pipelines do Texas permitiriam um fluxo maior de petróleo americano para o mercado mundial.” Mesmo se a Rússia quisesse ajudar os sauditas, seria sempre uma “vitória de Pirro”. Nesta frente, como noutras, há portanto muitas maneiras de pressionar o regime saudita.

5. O jornalista saudita foi assassinado num consulado em Istambul. O antigo espião russo Skripal e a filha foram envenenados em Salisbury, Reino Unido, por agentes russos, recorrendo a um agente químico. Os autores já foram indiciados mas garantem que apenas andavam a “ver as vistas”. Putin também prometeu uma “investigação até ao fundo”. Os regimes ditatoriais ou autoritários não podem permitir-se matar os seus alegados “inimigos” internos que encontram protecção noutros países e ficarem impunes. O mundo tem de ser seguro para aqueles que se opõem aos regimes que não admitem oposição e para os que investigam e denunciam esses regimes. Cabe às democracias garantir essa segurança. Mas cabe-lhes também penalizar aqueles que atentam contra ela. Citando o colunista do Guardian Jonathan Freedland, “Jamal Khashoggi está a realizar a missão da sua vida. A sua morte trouxe luz não apenas à verdade sobre a Arábia Saudita, mas à específica natureza do seu principal governante, o príncipe bin Salman.” A guerra no Iémen, que provocou a mais grave crise de fome do mundo e uma mortandade para lá de todos os limites, é obra sua, enquanto as democracias tentam olhar para o lado. Está a desestabilizar o Qatar, onde se situa a maior base militar americana na região.

Vivemos num mundo de tal modo globalizado e transparente que os regimes antidemocráticos já não podem dar-se ao luxo de banhos de sangue como em Tiananmen. Pequim faz desaparecer pessoas. Putin silencia os seus detractores no estrangeiro. O efeito pretende ser exemplar. Não pode, de maneira nenhuma, ser tolerado. O príncipe herdeiro saudita pode ter dado um monumental tiro no pé. Vamos ver.

Sugerir correcção
Ler 10 comentários