O clube que ainda não ganhou um jogo mas quer fazer história na Taça
A festa da Taça vai passar pela freguesia turística das Furnas, nos Açores. O Vale Formoso, clube amador, recebe o Coimbrões na 3.ª eliminatória. Chegou até aqui sem ganhar um único jogo, mas ambição não lhe falta.
Para quem visita São Miguel, nos Açores, é quase obrigatório ir às Furnas. Qualquer guia turístico reencaminha os visitantes para aquela povoação, onde o solo vulcânico expele vapor por qualquer abertura que encontre. Muitos dos postais turísticos da ilha – como as fumarolas em ebulição, as nascentes termais de água amarelada e o cozido confeccionado debaixo do chão – estão naquela freguesia, que dista 45km de Ponta Delgada, a cidade mais importante.
Por estes dias, os cerca de 1500 habitantes têm acompanhado as semanas históricas que o clube da terra, o FC Vale Formoso, tem vivido. O clube, de emblema e equipamento que se confundem com os do Boavista, é apenas composto por jogadores amadores, milita no campeonato de ilha e está na 3.ª eliminatória da Taça de Portugal. Chegou até esta fase sem nunca ter vencido um jogo. Pelo menos dentro das quatro linhas. Nada que retire ambição à equipa, que este domingo, às 13h, vai discutir a passagem à fase seguinte com o Coimbrões, do Campeonato Nacional de Seniores (CNS).
O percurso do Vale Formoso na Taça não é comum. Depois da temporada de estreia em 2017-18, o clube foi convidado para participar na edição deste ano após o Operário (clube açoriano que marcava presença na competição há 26 temporadas consecutivas) ter abdicado por motivos económicos. Ditou o sorteio que se deslocassem até Pinhal Novo, para defrontar o Pinhalnovense, também do CNS, no que foi o primeiro jogo oficial da história do clube fora dos Açores. Apesar do nulo no marcador ter durado até ao fim dos 90 minutos, os açorianos acabaram derrotados por 5-0 no prolongamento. Ficaram à espera do sorteio da fase seguinte, na esperança de beneficiar das repescagens que fazem parte do regulamento da competição. Foram o último clube a ser repescado e ditou o sorteio que as Furnas acolhessem, pela primeira vez na história, um jogo da Taça, frente à União de Leiria.
A semana antes deste jogo foi atípica. “Foi uma semana muito diferente do que estamos acostumados, com muita imprensa em cima de nós, mas foi bom para todos, jogadores, clube e freguesia”, conta ao PÚBLICO Sandro Ferreira, o presidente da direcção. Numa freguesia que vive intensamente o futebol – representado pelo próprio Sandro, que é também o presidente da Junta - a bancada do campo de jogos das Furnas esteve praticamente cheia, como sempre.
Os açorianos perderam por 0-3 e, aparentemente, chegava ao fim a sua participação na Taça. Eis senão quando, quatro dias após o jogo, foram notificados de que tinham vencido o jogo na secretaria pelo mesmo resultado que tinham perdido, devido à utilização indevida de um jogador por parte da União de Leiria. “Aí já não estávamos mesmo à espera, nada mesmo… para mais sendo o Leiria uma estrutura profissional”, revela Sandro, defendendo que “os regulamentos estão lá e todos os clubes, até os amadores, têm obrigação de os cumprir”. Uma surpresa que provocou uma mistura de sentimentos, enumerados pelo presidente: “É um orgulho, uma responsabilidade e uma grande alegria estar numa fase da Taça onde já entram os clubes grandes”.
O treinador do clube, Hélio Oliveira – cognome futebolístico de Helinho –, também partilha dos sentimentos do presidente, apesar de ter sido forçado a mudar de discurso. “Também já estávamos cansados dessa atenção toda, não sei como é que os profissionais aguentam”, assume ao telefone, revelando a palestra dada depois do jogo: “Disse para esquecerem a Taça, esquecerem as televisões e a imprensa, para desligarem disso tudo e concentrarem-se nas nossas competições”. A sorte trocou-lhe as voltas. “A gente queixa-se sempre, mas espero eu ter mais entrevistas, mais Sport TVs e mais jornais PÚBLICO em cima de mim, é sinal de que estamos sempre a passar as eliminatórias”.
"Uma das semanas mais bonitas da época"
Apesar das diferenças entra as duas equipas, o clube das Furnas garante que vai lutar pela vitória. “Se cada jogador der o melhor de si, por que é que não posso acreditar que o Vale Formoso é capaz de ganhar o jogo?”, pergunta retoricamente Rui Maciel, o capitão de equipa, que está a cumprir a nona temporada consecutiva no clube. O médio de 32 anos, que também é funcionário administrativo do clube, afirma que o jogo “vai exigir muito”, mas deixa o alerta: “Nem sempre os mais fortes vencem”.
Por norma, já são poucos os que falham os treinos. Esta semana todos os 25 jogadores do plantel compareceram às três sessões semanais. Houve quem fizesse mudanças de horários, trocasse turnos e pedisse folgas. Tudo na esperança de jogarem. Condicionantes de um clube amador e um “problema” para o treinador, que só pode convocar 18. “É uma das semanas mais bonitas da época, a motivação está altíssima mas temos de gerir as emoções porque alguns vão ficar desanimados por não participar”, assume Helinho, que já esteve a estudar o adversário, através de uns relatórios fornecidos por “algumas pessoas que vivem no continente”. “São uma equipa forte a nível defensivo, muito bem organizada e com jogadores com experiência do CNS”, aponta.
Pelo percurso realizado até agora, parece evidente que a sorte tem estado do lado dos micaelenses. “A sorte só protege quem a procura, trabalhamos sempre de forma séria e justa, nunca deixando de defender a identidade do clube, a sorte vem por acréscimo”, defende o capitão Maciel. Há quem diga que é uma forma de compensar a época passada, uma espécie de escrever direito por linhas rotas. Na época transacta, o Vale Formoso, mesmo ficando em primeiro lugar do play-off de manutenção, desceu do campeonato dos Açores para o campeonato de São Miguel. Tudo porque o campeonato dos Açores está dependente do número de equipas açorianas que desçam do CNS. “O ano passado fomos injustamente prejudicados, estivemos meia época a lutar no grupo da manutenção, ficámos em primeiro lugar e descemos de divisão”, explica o presidente, referindo que, mesmo não compensando, o percurso da Taça sempre dá um “bocadinho de alento”.
A realidade dos amadores
Alento e um importante incentivo financeiro de 12 mil euros, numa equipa com um orçamento anual de 20 mil. Os engenheiros, estudantes, pedreiros e pescadores que compõem o plantel recebem apenas pequenos prémios de jogo – “uns miminhos”, como classifica o presidente. O resto é por amor à camisola. “O futebol português é feito pelos clubes amadores, o futebol profissional é um futebol completamente à parte”, descreve Sandro Ferreira.
Duas realidades diferentes, que o treinador Helinho gostava que confluíssem na Taça. “Todos os clubes dos distritais deviam ter o direito de participar e os grandes deveriam entrar desde o início….”. O raciocínio é interrompido. “Espera aí que me estão a ligar do trabalho, porque eu vim para um sítio mais escondido do escritório para dar a entrevista”, explica Helinho, que trabalha na contabilidade de um hotel. Depois de 40 segundos de espera, a ideia é retomada. “Desculpa lá, já estavam preocupados comigo”, começa por dizer, acrescentando depois que com a actual estrutura “a Taça acaba por beneficiar os clubes grandes”.
Sobre domingo, fica a garantia de que, independentemente do resultado, não vão faltar bifanas, frangos nem cerveja. Depois dos jogos, há sempre uma churrascada que junta jogadores, famílias, dirigentes e adversários. “Aconteça o que acontecer, vamos fazer a festa da taça”, diz Maciel. E isso é tudo o que importa.