Condutores devem ter formação para lidar com acidentes junto a ferrovias
Peritos que investigam acidentes ferroviários querem formação de condutores para comportamentos seguros. Recomendação surge após análise de acidente em passagem de nível em 2016. Uma pessoa morreu.
Em Portugal os condutores não são ensinados a ter comportamentos seguros na aproximação e atravessamento das passagens de nível porque se considera que estas são um problema exclusivamente ferroviário. O GPIAAF (Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Acidentes Ferroviários) quer “promover a formação e consciencialização dos condutores rodoviários quanto aos comportamentos seguros a adoptar na utilização das passagens de nível, incluindo em situações de emergência, nomeadamente no caso de os veículos ficarem bloqueados entre barreiras”.
Este é o teor de uma recomendação ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) e à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária na sequência de uma investigação ocorrida a um acidente com um veículo pesado numa passagem de nível, perto de Santarém, e do qual resultou a morte do ajudante de motorista.
O caso deu-se às 17h52 do dia 8 de Novembro de 2016, quando um camião que transportava uma retroescavadora num semi-reboque entrou numa passagem de nível pouco antes de esta assinalar a chegada de um comboio. Como o veículo pesado era lento a manobrar e o atravessamento sobre a via férrea era antecedido de uma curva apertada, uma das barreiras caiu sobre a retroescavadora transportada. O motorista e o seu ajudante saíram ambos da cabine para tentar remover a barreira, mas em poucos segundos aproximou-se o comboio. O motorista entrou novamente na cabine do camião para o fazer avançar, mas não conseguiu afastar-se a tempo de evitar o choque da composição ferroviária contra a traseira do semi-reboque. O seu ajudante, atingido pelos destroços resultantes do embate, acabaria por morrer no local.
O inquérito levado a cabo pelo GPIAAF, agora divulgado, afastou quaisquer dúvidas sobre o bom funcionamento do sistema ferroviário. Por parte da infra-estrutura, a passagem de nível automática funcionou com o sinal sonoro, sinal luminoso e a queda de barreiras nos tempos previstos. Por parte do comboio (um regional que circulava entre Lisboa e Tomar), o maquinista agiu em conformidade: mal avistou a traseira do semi-reboque na passagem de nível, buzinou e accionou de imediato o freio de emergência por forma a fazer parar a composição. De seguida atirou-se para o lado oposto da cabine, preparando-se para o impacto (gesto que lhe terá salvo a vida, pois o choque destruiu a parte do habitáculo onde conduzia).
No seu testemunho aos investigadores, o motorista do camião contou que, já na saída da passagem da nível, e com uma parte do semi-reboque ainda na linha, o sinal acústico disparou e a cancela começou a descer. Refere que “nunca pensou que havia um espaçamento tão curto entre o abaixamento da cancela e a chegada do comboio, tendo saído da cabina para verificar onde a cancela tinha pousado”. Nesse instante “apercebeu-se do comboio ao longe e entrou imediatamente na cabina, apercebendo-se que o seu colega já não se encontrava no interior”, porque este tinha também saído para averiguar onde é que a cancela tinha batido na retroescavadora.
O relatório diz que o motorista “tentou puxar o camião o mais possível para a frente, mas dada a configuração da estrada, com o talude em frente à saída da passagem de nível”, tal revelou-se muito difícil. E refere que “questionado sobre o conhecimento de procedimentos a efectuar no caso de ficar retido entre barreiras numa passagem de nível, [o motorista] respondeu que nunca ouvira falar em qualquer procedimento a realizar”.
Por isso o GPIAAF recomenda que os condutores tenham formação sobre como agir nestas circunstâncias: retirar imediatamente o veículo de dentro da passagem de nível, ainda que tenha de quebrar a barreira, a qual, de resto, é concebida, não para ser um obstáculo intransponível, mas para poder ser partida e possibilitar uma fuga de emergência sem danos significativos no veículo.
Nada mudou
O mesmo gabinete alerta que no estrangeiro existe este tipo de formação aos condutores e até salienta os exemplos de boas práticas da Itália, Lituânia, Reino Unido, França e Noruega na formação que é dada sobre como proceder nesta situação. É preferível quebrar a barreira e sair da linha do que correr o risco de colisão com um comboio.
O relatório alerta também para a forma como aquela passagem de nível — numa estrada municipal de Santarém — foi automatizada sem ter em conta as especificidades do terreno. Com efeito, um veículo com as características do acidentado demora, no mínimo, 25 segundos a atravessar a linha. Se este iniciar a travessia até nove segundos antes da activação do sinal de aproximação de um comboio, não conseguirá evitar que uma das barreiras lhe bata ao descer.
Dois anos depois do acidente ainda nada mudou naquele local: nem o funcionamento da passagem da nível, nem a configuração da estrada junto à mesma. O relatório, entre várias recomendações à Infra-estruturas de Portugal, Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, IMT e Câmara de Santarém, chama ainda a atenção para “a necessidade incontornável de uma efectiva integração e co-responsabilização das partes rodoviária e ferroviária no que diz respeito à segurança nas passagens de nível, assunto que, enquanto for considerado matéria exclusiva do âmbito ferroviário, terá um desenvolvimento limitado e aquém do possível e desejado”.