Uma tragédia anunciada no Brasil?
A quem desresponsabiliza os votantes em Trump ou Bolsonaro, chamando a atenção para o facto de se não dever insultá-los, posso dizer que os responsabilizo, sem precisar de os insultar.
Tal como a muitos e muitas, preocupa-me a actual ascensão da vaga de extrema-direita — fascista, em alguns casos —, de destruição das instituições liberais e da própria democracia. Por todo o lado, há muitos distraídos que respondem a essa onda com indiferença e ausência de tomada de posição ou pulsão de resistência à tragédia anunciada. É certo que outros se preocupam, como acontece em Portugal, onde muitas figuras da sociedade portuguesa se juntaram para afirmar que não fechavam os olhos sobre o perigo no Brasil, alertando para o facto de democracia e liberdade serem indivisíveis.
Na Europa, o ataque à democracia liberal advém em grande parte dos próprios governos eleitos, como acontece na Hungria, Polónia, República Checa, Áustria e na Itália, enquanto, noutros países, uma onda populista e xenófoba, antimigrantes e anti-refugiados, sobretudo em regiões onde estes não existem, está a ter resultados impensáveis nas eleições. À França, Holanda e Alemanha juntou-se agora a Suécia em termos de ganhos eleitorais da extrema-direita populista e xenófoba. Até na vizinha Espanha um recente comício juntou em Madrid dezenas de milhares de “aficionados” fascistas que disseram ao que vinham. Portugal parece continuar a ser uma excepção, mas não está imune a indivíduos, por enquanto sem expressão, que aproveitam a actual vaga castanha para formarem novos agrupamentos políticos populistas, com uma agenda discriminatória, racista e xenófoba.
Há 25 anos, Fareed Zakaria (1997), cronista da CNN e do Washington Post, criou o conceito de “Democracia iliberal” para relevar a nova ameaça então em início de ascensão, chamando a atenção para a possibilidade de um governo democraticamente eleito destruir abertamente os princípios políticos liberais violando o Estado de direito, bem como privando os cidadãos dos seus básicos direitos e liberdades. Hoje, a vaga “iliberal” acelerou-se de tal forma que muitos acreditam estarmos à beira de um precipício, já expresso no “sim” ao “Brexit” na Grã-Bretanha e na vitória de Trump nas eleições norte-americanas.
Por todo o lado, quer em democracias mais fortes ou frágeis, a propaganda populista xenófoba e iliberal usa as fake news, as redes sociais e uma linguagem indecente com laivos “antipoliticamente correctos” para rapidamente passar da palavra aos actos. A actual vaga castanha começa por discriminar as mulheres, minorias LGBT e étnicas, migrantes e refugiados estrangeiros, e por insultar os considerados exteriores à “comunidade nacional” caucasiana masculina. Prossegue com a destruição de instituições democrático-liberais e dos checks and balances, como o poder judicial. Em certos casos, como acontece no Brasil, elogiam a Ditadura militar e torturadores como Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI.
Na Europa e na América, em graus e com facetas diversas, o padrão parece ser basicamente idêntico, após populistas xenófobos ganharem o poder através de eleições: calar a comunicação social independente e usar a outra como meio de propaganda; banalizar a linguagem discriminatória relativamente às minorias; tornar as verdades relativas idênticas às mentiras; colocar do seu lado os tribunais independentes e as Forças Armadas; eliminar votantes, no caso dos EUA, e destruir direitos individuais — casamento no seio do mesmo género, despenalização do aborto, entre outros.
À onda iliberal, de subida do populismo de extrema-direita, muitos já chamam “fascismo”, comparando-a com a vaga que assombrou a Europa nos anos 30 e 40 do século XX. Não por acaso, Madeleine Albright intitulou um recente livro de Fascism: A Warning, e o filósofo norte-americano Jason Stanley deu a um estudo o título How Fascism Works, The Politics of Us and Them. Por seu lado, Christopher R. Browning, historiador do Holocausto e da Alemanha nazi, escreveu um recente longo artigo no New York Review of Books (25/10), intitulado “The Suffocation of Democracy”, em que, sem utilizar o termo “fascismo”, refere as aterradoras semelhanças e uma importante mas também terrível diferença entre os EUA actuais de Trump e os regimes de Hitler e Mussolini.
Entre as similitudes, menciona o facto de, na Alemanha, terem sido outorgados pela Constituição de Weimar (1919) ao presidente Hindenburg poderes de emergência para defender a democracia, caso esta estivesse em perigo. Em vez de a defender, o marechal e a velha direita conservadora tornaram-se os seus coveiros, utilizando esses poderes para destruir as normas democráticas e aliar--se aos nazis, de modo a substituir o governo parlamentar pelo poder autoritário. Outra semelhança, apontada por Browning, entre a actualidade e os regimes de Mussolini e Hitler, é o facto de o centro católico e a esquerda comunista e social-democrata se terem dividido, sem terem cooperado na defesa da democracia.
No entanto, Browning realça uma grande diferença na actual situação relativamente às ditaduras dos anos 30, mostrando que, como também assim penso, que a história tem matrizes idênticas — é humana —, mas não se repete, pois depende de contextos diferentes e de uma conjunção de circunstâncias e pessoas diversas. E a grande diferença passa pelo facto de os movimentos fascista e nazi dos anos 30 e 40 se orgulharem e assumirem a pretensão de erguerem regimes abertamente antidemoliberais e totalitários. Ora, na actual vaga autoritária, Erdogan na Turquia, Putin na Rússia, Rodrigo Duterte nas Filipinas ou Viktor Orbán na Hungria permitem a continuação de partidos de oposição e de eleições, que não os ameaçam. Claro que eliminam e neutralizam os dirigentes de uma oposição perigosa. Não proíbem de imediato a imprensa e outra comunicação social que não controlam, pois chega-lhes invadir os meios sociais com notícias falsas de modo a tornar irrelevante na “opinião pública” a verdade dos factos.
E o Brasil? O que poderá acontecer, no caso de Bolsonaro ganhar as eleições em 28 de Outubro? Neste mesmo jornal, Jorge Almeida Fernandes arriscou apresentar, no passado dia 13, uma “hipótese de trabalho” sobre algo de novo que é “o projecto autoritário de Bolsonaro”. Começa por assinalar que, ao cumprir a promessa de destruir o “sistema”, liquidar a elite política e formar uma nova, desde a primeira volta das eleições, Jair Bolsonaro já domina o Congresso, parecendo querer também neutralizar o Supremo Tribunal Federal (STF) e instaurar um regime tutelado pelo Exército, “algo que já estará em curso”. A erosão das instituições está já em marcha, com uma imprensa que parece estar quase toda do lado de quem ganhará as eleições e os militares a redigirem já, em Brasília, o seu programa de governo nas áreas ditas “estratégicas”. Bolsonaro também anunciou querer elevar de 11 para 21 o número de membros do STF, nomeando dois em 2020, em substituição dos que se reformam.
Quanto à “guerra cultural”, Vladimir Safatle, professor de Filosofia na Universidade de São Paulo, assinala que da parte de Bolsonaro existiu uma anticampanha, que se deslocou para o ambiente virtual, baseada no esvaziamento do espaço político, através de provocações e insultos preconceituosos às minorias — negros, mulheres, LGBT — e a transmissão de notícias falsas, em substituição do jornalismo. Safatle realça ainda o potencial fascista mais ou menos recalcado que está a ganhar direito de existência, não só porque “vários sectores da sociedade brasileira expressam um padrão racista e preconceituoso”, como porque a ditadura militar nunca deixou de ter apoiantes. Relativamente a esta, o “Brasil fracassou redondamente em conseguir superar seu passado ditatorial, que o volta a assombrar agora” e, por isso, Vladimir Safatle avisa: “Logo, o que está explodindo hoje era uma bomba-relógio que ninguém quis ver.”
Será expectável que se assista a um longo e duro processo de resistência à agenda de Bolsonaro e dos seus apoiantes, mas convém desde já assinalar a demissão dos políticos do centrão que nada fazem para se erguerem — apoiando Fernando Haddad — contra a catástrofe anunciada, mesmo se serão eles próprios vítimas desta. Já agora, para quem acha que a esquerda é a grande responsável pela ascensão da extrema-direita e desresponsabiliza os votantes em Trump ou Bolsonaro, chamando a atenção para o facto de se não dever insultá-los, posso dizer que os responsabilizo, sem precisar de os insultar. A não ser que se sintam insultados por serem considerados egoístas, xenófobos, de extrema-direita ou fascistas ou cúmplices destes. O historiador do nazismo Ian Kershaw já alertou há anos para o facto de a estrada para o Holocausto ter sido construída pelos nazis, mas pavimentada pela indiferença.