Carta ao meu irmão: você tem dois dias
Somos bonitos, fortes, e inteligentes. Representamos unidos, no entanto, aquilo que Jair Bolsonaro detesta e despreza na sociedade: a negritude, a feminilidade, a homossexualidade, a fragilidade económica, o risco social, e numa extensão de sentido da minha identidade, a imigração
A 8 de Setembro acordei em minha casa, em Lisboa, com uma notificação de mensagem vinda do WhatsApp. Com os olhos ainda embaçados, vi logo que o “zap” vinha do grupo “Irmãos”. A foto do grupo é singular, tirada em Arcos, pequena cidade do estado de Minas Gerais, Brasil profundo. Mostra os meus três irmãos homens, e eu com um lacinho vermelho na cabeça. É uma foto do meu primeiro aniversário. E também de um irmão, cinco anos mais velho, que faz anos quase no mesmo dia que eu. Na foto, está atrás de nós uma samambaia (feto em Portugal), bem frondosa e viçosa, e à nossa frente um bolo grande, bem brasileiro, cheio de açúcar. Eis a memória do início da minha vida. O presente já não é tão doce.
Li o “zap”. Meu coração disparou. E senti um peso de chumbo no meu ombro direito. Desembacei os olhos. Li a mensagem outra vez. Várias imagens e memórias evocadas por aquela foto do grupo assaltaram a minha mente. Fui inundada por um sentimento de confusão. Éramos quatro irmãos, entre eles uma mulher negra e um rapaz homossexual. Éramos quatro irmãos negros, num país de profunda desigualdade racial/social e herança escravocrata. Tínhamos sobrevivido, embora tenhamos ficado órfãos na infância (para mim) e adolescência (para eles). Crescemos saudáveis. Somos bonitos, fortes, e inteligentes. Representamos unidos, no entanto, aquilo que Jair Bolsonaro detesta e despreza na sociedade: a negritude, a feminilidade, a homossexualidade, a fragilidade económica, o risco social, e numa extensão de sentido da minha identidade, a imigração. Seria apesar disto tudo um dos meus irmãos um eleitor de um candidato de extrema-direita, fascista? Por várias razões, algumas delas aqui evidenciadas, não queria acreditar. O tal zap do meu irmão consistia de uma notícia com muitas afirmações dúbias sobre a facada maldita em Bolsonaro. Não tinha fontes citadas no corpo do texto, nem sequer hyperlinks a demonstrar a proveniência daqueles três parágrafos, com 176 palavras refutáveis. Tinha todos os indícios de notícia falsa. A primeira reacção foi de uma jornalista indignada. Respondi com uma palavra: “Fonte?”. Em Portugal, a luz solar tinha acabado de aparecer. O Brasil mantinha-se submerso na escuridão da noite. Meu irmão estava provavelmente a dormir. Sem obter respostas, continuei a enviar várias perguntas desesperadas: “De onde vc tirou isto?” “Está louco?” e a dar orientações de literacia dos media: “Não partilhe texto sem indicar fontes.”
Doutorei-me, com mérito, passando por universidades em Portugal e nos Estados Unidos, países diferentes do meu país de origem. Fui uma das primeiras na família a terminar uma licenciatura, há 13 anos, e sou a primeira doutorada na família inteira, incluindo tios e primos. As minhas memórias de sucesso académico são tão frescas como as de discriminação racial. Ambas fazem de mim quem eu sou agora e abandoná-las seria um extermínio da minha identidade. No Brasil, na infância, crianças recusaram-me a dar as mãos nas brincadeiras de roda na escola primária por ser negra. Diziam-me na minha cara. Eu chorava baba e ranho. Em Portugal, o pai de um ex-namorado português loiro não falava comigo declaradamente por ser preta. Também o dizia descaradamente. Eu chorava baba e ranho. Nos Estados Unidos, no Texas, onde vivi quase cinco anos, tinha receio de correr no meu bairro de classe média alta, à noite, como os americanos brancos faziam-no. Não queria correr o risco de ser atirada por uma arma de fogo, como é uma constante no Texas. Eu aceitava, mas já não chorava. Agora escrevo contra aquilo que poderá acontecer no país, onde nasci, com um possível presidente, disparador de declarações racistas, misóginas, homofóficas e apologista do porte de armas.
Isto é para dizer que já vi e vivi o racismo ao longo da minha vida nas suas diferentes matizes e geografias, mesmo ele não sendo moralmente aceite. O que poderá acontecer, a partir de agora, sendo o racismo e outras bizarrices instigadas pelo próprio presidente do Brasil? Estive feliz por algum tempo pelo despontar de movimentos de afirmação cultural e racial pelas Américas, e pelas políticas afirmativas que se alastravam pelo Brasil. Ver o retrocesso disto causa-me dor física e emocionalmente. Dói-me ainda mais descobrir que o meu irmão, aquele que saiu do mesmo ventre que eu, é a favor deste retrocesso, é a favor de um sujeito que instiga pensamentos racistas ao ofender quilombolas (descendentes de africanos escravizados) e indígenas, ao confundir relações inter-raciais com promiscuidade, e ter como objetivo reduzir as políticas afirmativas .
O meu irmão acordou do seu sono. Não soube especificar fonte nenhuma. Meu irmão explicou-me que após a facada maldita tinha decidido o seu voto dizendo: “Depois dessa loucura eu me decidi, não estão tentando matar ele à toa não, tá incomodando muitos bandidos da política pode ter certeza.” Desde 8 de Setembro, tenho tentado dialogar com o meu irmão. No entanto, ele ignora que uma boa parte da massa intelectual e cultural no mundo, como o sociólogo Manuel Castells e a cantora Madonna, está sim extremamente incomodada com o seu candidato predilecto. E não por este ser um herói salvador ou antes um exorcista do PT, mas por ser um “canalha à porta do planalto”.
Permitam-me agora os leitores dirigir-me diretamente ao meu irmão. Eu posso ter lhe agredido, irmão, com as minhas palavras desesperadas nos nossos longos debates no WhatsApp. Se lhe agredi não foi intencionalmente e não foi certamente pela dor que eu queria que você sentisse. Mas sim pela dor que tenho sentido. Pela dor que sinto também agora por ter de partilhar isto tudo num jornal internacional, do país onde agora vivo. Mas ser mulher, negra, jornalista, e pesquisadora, no século XXI é isto. É ser livre. É estar no espaço público. É questionar o status quo. É lutar pela democracia, pela igualdade e pela liberdade no mundo, mesmo que isto doa às vezes. Eu só espero que você reflicta. Você tem dois dias.