Cisma: Ucrânia na origem da maior ruptura na Igreja Ortodoxa desde o século XI
Patriarcado russo ameaça com ruptura irreversível na comunidade e compara a perda da Igreja Ucraniana, desde 1686 subordinada a Moscovo, com o Grande Cisma de 1054
A Igreja Ortodoxa Russa já pouco reconhecia a primazia de honra tradicional do patriarca de Constantinopla (Istambul). Afinal, dos estimados 260 milhões de ortodoxos em todo o mundo, 150 milhões respondem ao patriarca de Moscovo. A ruptura consumou-se agora por causa de Kiev – Constantinopla concedeu independência à Igreja Ortodoxa da Ucrânia, há 332 anos subordinada a Moscovo. Na Ucrânia teme-se que os russos promovam uma “guerra religiosa”.
Por trás da disputa actual estão um conflito recente – a intervenção russa na Ucrânia, em 2014 –, o desejo nacionalista que fez nascer em Kiev uma igreja dissidente de Moscovo com a independência de 1991, e a competição feroz entre a Igreja Ortodoxa Russa e o patriarcado de Constantinopla pela liderança mundial dos ortodoxos, iniciada com o fim da União Soviética e cada vez mais viva. A recente inauguração de uma catedral russa em Paris por parte do Presidente russo, Vlamidir Putin, é só um dos episódios dessa rivalidade.
Para além de tudo isto, está em causa a situação geopolítica particular da Ucrânia, a mesma que fez do país uma peça central na luta entre a hegemonia russa e a União Europeia. Sem esquecer a própria percepção de identidade de russos e ucranianos – o cristianismo eslavo nasceu em Kiev, onde o príncipe Vladimir se fez baptizar em 988, um acto fundador celebrado até hoje tanto na Rússia como na Ucrânia. Mais: ficam na Ucrânia um terço das paróquias (o que significa fiéis mas também património) da Igreja Ortodoxa Russa.
A somar à vantagem dos números, Moscovo tem a força política, com Putin a pôr os valores conservadores da igreja no centro do seu projecto. Na Rússia e fora desta, já que o patriarcado de Moscovo é a única instituição que manteve as fronteiras da ex-URSS: conta com 100 milhões de fiéis na Rússia, 30 milhões na Ucrânia, dez milhões na Bielorrússia, quatro milhões nos Estados bálticos… A Constantinopla sobra a força simbólica e histórica, um patriarca quase sem crentes e confinado a um palácio de Istambul, praticamente feito refém pelo regime do Presidente Recep Tayyip Erdogan.
Putin e o actual patriarca de Moscovo, Cirilo, “partilham a mesma visão da ortodoxia como fermento da ‘civilização russa’ face à decadência europeia e ocidental”, considerando que “este fermento deve exercer-se livremente em países como a Ucrânia ou a Bielorrússia, que constituem o mesmo espaço espiritual, o da Santa Rússia, criado com o baptismo de Kiev”, escreve na revista online Slate francesa o vaticanista Henri Tincq.
A crise antecipava-se desde Abril, quando o Presidente ucraniano, Petro Poroshenko, levou o votos no Parlamento o apelo de independência feito pela Igreja Ortodoxa da Ucrânia ao patriarca Bartolomeu.
Desde então, delegações enviadas por Kiev e Moscovo a Istambul tentaram influenciar Bartolomeu, considerado primeiro entre iguais entre as comunidades ortodoxas do mundo. A decisão, favorável ao pedido da Igreja Ortodoxa da Ucrânia, chegou a semana passada durante uma reunião do Santo Sínodo de Constantinopla, onde se anulou o decreto de 1686 que colocava as igrejas ucranianas sob tutela da Rússia. Segundo uma investigação da Associated Press, os esforços russos para impedir este processo incluíram ataques aos emails dos principais assessores de Bartolomeu (o patriarca não usa correio electrónico).
A legalização do cisma
“Foi decidido cortar completamente os laços” com Constantinopla, afirmou o metropolita Llarion aos jornalistas em Minsk, capital bielorrussa onde a IOR reuniu o seu próprio Santo Sínodo. “Nenhuma outra decisão era possível, foram as acções do patriarcado de Constantinopla que levaram a isto”, acrescentou. “É a legalização do cisma. Constantinopla ultrapassou uma linha vermelha”, acusou Alexandre Volkok, porta-voz do patriarcado de Moscovo. Para Vlamidir Legoida, outro porta-voz da Igreja Ortodoxa Russa, Bartolomeu tenta assim “destruir os fundamentos canónicos da Igreja Ortodoxa”.
“Não poderemos mais celebrar ofício em comum, os nossos padres não vão participar nas liturgias com as hierarquias do patriarcado de Constantinopla”, concretizou o monsenhor Llarion. A ruptura, disse ainda, incluiu “os locais da eucaristia”, entendendo-se assim que os fiéis do patriarcado de Moscovo deixarão de poder comungar nas igrejas sob jurisdição de Bartolomeu. Entre as 12 paróquias da Ucrânia, há um mosteiro com especial importância: o Lavra, com mais de cem estruturas religiosas e um labirinto de catacumbas do século XI, onde estão enterradas algumas das figuras mais reverenciadas da Igreja Ortodoxa.
A decisão de Bartolomeu não tem efeito imediato mas é, na prática, o primeiro passo para que a Igreja Ortodoxa Ucraniana se torne na 15.ª igreja da Ortodoxia. Igreja Ortodoxa é a designação do conjunto de dioceses ou patriarcados (até agora, 14) que romperam com a autoridade do Papa, em 1054. A maioria corresponde a fronteiras nacionais, como a Búlgara ou a Romena.
Para já, Moscovo recebeu um pequeno apoio, o do patriarca da Igreja Ortodoxa Sérvia, Amfilohije. “Vejo este anúncio do Santo Sínodo do patriarcado de Constantinopla como um passo na direcção do cisma, e temo que abra directamente a possibilidade de separações de outras igrejas”, disse Amfilohije à imprensa local. Esta posição reflecte o receio de que Constantinopla reconheça outra autocefalia [independência em linguagem eclesiástica] – a da Igreja Ortodoxa Montenegrina, que tem vindo a ganhar algum peso desde a declaração de independência do Montenegro, em 2006.
Este episódio poderá vir a abrir uma crise no conjunto da Igreja Ortodoxa, como avisam os russos. Mas, de imediato, veio foi complicar mais a vida da Igreja Russa, já a braços com um problema na Moldova, onde uma Igreja Romana rival desafia actualmente o controlo espiritual que Moscovo mantém no país. O patriarca Cirilo já tem marcada uma visita a quatro cidades moldavas para o final de Outubro.
Conflito entre ucranianos
O patriarcado de Moscovo diz que a decisão de Constantinopla, uma “catástrofe”, comparável com o Grande Cisma de 1054 (entre a Igreja Romana do Ocidente e a Ortodoxa do Oriente), pode provocar conflitos na Ucrânia entre partidários das duas Igrejas rivais – desde 1992 que coabitam no país a Igreja Ucraniana, que depende da Ortodoxa Russa, e a Igreja Ortodoxa da Ucrânia, a que obteve a independência. Georgui Kovalenko, sacerdote desta ouvido pelo jornal El País, estima que, com tempo, poderá ser alcançado um compromisso promovido pelos 30% de ucranianos ortodoxos que não se definem como partidário nem de uma nem de outra.
Entretanto, é também o Presidente Poroshenko a avisar para a possibilidade de um conflito. “Se virem pessoas que apelam à tomada pela força de uma igreja ou mosteiro saibam que são agentes russos. O objectivo do Kremlin é inflamar uma guerra religiosa na Ucrânia”, avisou um líder em pré-campanha eleitoral (as presidenciais no país estão previstas para Março de 2019).
“Trata-se da nossa segurança, soberania e da geopolítica mundial. É o fim da Terceira Roma, o mais antigo conceito de hegemonia mundial da Rússia [uma nação que reivinda o legado do Império Romano]. A autocefalia faz parte da nossa estratégia de Estado pró-europeu”, defendeu Poroshenko, que fez da independência religiosa do país um combate pessoal.
Não é difícil perceber de onde vêm os receios de Poroshenko. Afinal, foi há menos de cinco anos que a rebelião separatista em zonas pró-Rússia do Leste da Ucrânia provocou mais de 10,300 mortos. Meses depois, em 2014, Moscovo anexava a Crimeia.
“Moscovo pinta a Ucrânia como agressor, e descreve a autocefalia como um ataque. Mas para a Ucrânia é uma medida defensiva”, diz, citado pelo jornal The Washington Post Victoria Smolkin, professora de História e Estudos Russos e do Leste Europeu na Universidade de Wesleyan (Connecticut). Para Viktor Ielesnki, um dos deputados ucranianos que votou a favor do apelo a Bartolomeu, em Abril, “o que está em causa é o controlo das mentes e almas dos ucranianos”.