O último presente de Joana Marques Vidal
A substituição da PGR não foi uma luta entre direita e esquerda. Foi uma luta pela subordinação do poder judicial ao poder político.
Joana Marques Vidal foi-se embora mas deixou-nos uma prenda de despedida: uma excelente entrevista ao Expresso onde demonstra a todas as pessoas de boa vontade como foi um tremendo desperdício de talento, inteligência, energia, coragem, independência e bom-senso o seu afastamento da Procuradoria-Geral da República. É possível que Lucília Gago – que, aliás, fez um óptimo discurso de tomada de posse – venha a revelar ter todas as qualidades de Joana Marques Vidal, e ainda mais algumas? Sim, é possível. Mas é muitíssimo improvável. Basta só um pouco menos de vontade, um pouco menos de talento, um pouco menos de coragem, para que a cultura do respeitinho e da falta de meios regresse ao Ministério Público – tal como António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa, Rui Rio e quase todos os líderes partidários no seu íntimo desejam. A substituição da PGR, ao contrário do que muitos pensam, não foi uma luta entre direita e esquerda. Foi uma luta pela subordinação do poder judicial ao poder político.
Sei que ao regressar a estes temas há sempre alguns leitores que resmungam e me criticam pelas minhas “obsessões”. Para quê tanta insistência? Para quê mais um texto sobre o assunto? A resposta é simples: porque é importante. Nada mina tanto o país e a confiança nas instituições do que a corrupção, e não se vislumbra em Portugal uma atitude séria para a combater; nada que vá além da mera cosmética parlamentar ou do suspiro popular. Não me interessa minimamente que se encham caixas de comentários com suspiros raivosos de “isto é tudo uma corja!”, ou que políticos e comentadores proclamem o seu ódio à corrupção ao mesmo tempo que não mexem uma palha para a enfrentar. Aquilo que me interessa é uma genuína mudança de mentalidades, que varra o país desde Pedrógão até ao Parlamento, e é essa mudança que não se vislumbra quando possa ocorrer. António Costa não está interessado. Marcelo é só discursos. E Rui Rio parece que vai propor uma reforma da justiça muito preocupada em reforçar o direito ao bom nome, em perseguir as fugas ao segredo de justiça, e, claro, em punir a imprensa prevaricadora. Como todos sabemos, o país só está como está por causa do PÚBLICO, do Expresso, da TVI e do Correio da Manhã.
Joana Marques Vidal, ao menos, conseguia ver aquilo que estava à frente do seu nariz, o que parecendo coisa pouca em Portugal é uma actividade olímpica. Estas são palavras suas na entrevista ao Expresso e à SIC: “Somos um país onde o problema da corrupção tem uma dimensão que é urgente atacar. Tem de ser encarada como uma questão essencial do Estado de direito democrático. Penso que politicamente a resposta não é eficaz, tem sido muito superficial. Não há uma estratégia nacional contra a corrupção.” Não, não há. Tal como não há qualquer “luta pela transparência”, que a ex-PGR refere como sendo a base fundamental do ataque ao problema, e que naturalmente se traduz em “transparência no exercício dos cargos públicos” e no “financiamento dos partidos políticos”. É exactamente por não existir esta estratégia consistente que uma instituição como o Ministério Público ainda está tão dependente da eficácia e do empenho de quem o dirige. Ao ser questionada sobre o papel do PGR, Joana Marques Vidal afirmou simplesmente: “O papel do procurador-geral é promover a organização, a articulação interna e a capacidade de gestão que permita aos magistrados trabalharem melhor.” Tão simples, não é? E, no entanto, tão difícil de pôr em prática.