Europeus continuam à espera das ideias britânicas para fechar o acordo do "Brexit"
A delicada questão da fronteira da Irlanda mantém em suspenso o acordo de saída do Reino Unido da UE. Bruxelas insiste em garantias legais, e lembra que "nada está decidido até tudo estar decidido".
A dois dias de uma cimeira de chefes de Estado e de Governo da União Europeia que é crucial para resolver o impasse em que se encontram as negociações do “Brexit”, as mensagens do lado europeu e do lado britânico não podiam ser mais desencontradas. Enquanto em Londres, o drama e tumulto voltaram a tomar conta debate político, após o surpreendente colapso das negociações para a conclusão de um acordo de divórcio na noite de domingo, em Bruxelas não existe para já nenhum sinal de alarme com a perspectiva de que o processo possa estar a encaminhar-se — talvez irremediavelmente — para um cenário de “no deal”.
Mais importante do que isso, não existe nenhuma mudança na postura do negociador chefe da Comissão Europeia, Michel Barnier, nem no consenso das 27 capitais que apoiam a sua estratégia, que possa sugerir que os europeus estarão dispostos a desviar-se da sua linha à última hora, em pânico com a possibilidade de um “Brexit” sem acordo. “O processo negocial não colapsou, apenas foi suspenso por uns dias. O Reino Unido terá de saber encontrar soluções que permitam acabar com a incerteza nas próximas semanas”, comentava uma fonte da diplomacia europeia envolvida na preparação do próximo Conselho Europeu.
Conscientes da situação impossível em que se encontra a primeira-ministra britânica, Theresa May — ou aceita as condições da União Europeia e arrisca perder o apoio parlamentar que segura o seu Governo, ou cede à pressão interna e deita por terra o acordo com Bruxelas para a saída “ordenada” do Reino Unido da UE — diferentes intervenientes europeus foram repetindo esta segunda-feira tudo o que vêm dizendo há meses: que estão disponíveis para abordar todas as ideias que sejam avançadas pelo lado britânico, mas não tolerarão qualquer solução que ponha em causa os princípios gerais do “Brexit” fixados em Dezembro ou que comprometa a integridade do mercado comum e da união alfandegária.
“Apesar de intensas negociações durante o fim-de-semana, várias questões que consideramos serem fundamentais [para a conclusão do acordo de saída] continuam por resolver“, anunciou logo pela manhã o porta-voz da Comissão Europeia, Margaritis Schinas, que confirmou que não estão previstas novos contactos formais antes do jantar de líderes que marca o arranque da cimeira europeia, na quarta-feira à noite. “Será nesse momento que se fará uma avaliação colectiva dos progressos alcançados”, disse.
O mesmo responsável resistiu serenamente a todas as tentativas dos jornalistas que lhe pediram para interpretar o fim abrupto das conversas em Bruxelas na noite de domingo, tendo em conta que um encontro não anunciado entre Michel Barnier e Dominic Raab, o governante britânico com a pasta do “Brexit”, não chegou sequer a demorar uma hora. “Compreendo o vosso interesse, mas como sempre acontece nas fases cruciais destes processos, não vamos entrar em detalhes sobre a substância das negociações nem oferecer avaliações sobre a atmosfera ou a psicologia dos intervenientes nas conversas”.
As duas partes esperavam que, durante o fim-de-semana, os negociadores que têm estado a trabalhar ao nível técnico pudessem encontrar uma fórmula de compromisso e produzir um documento conclusivo que já oferecesse saídas para ultrapassar os bloqueios nas tais “questões fundamentais” — que nesta altura se resumem principalmente às soluções para evitar a reposição de uma fronteira entre as duas Irlandas. Como isso não aconteceu, chamaram-se os responsáveis políticos. Dominic Raab voou até Bruxelas para reunir com Michel Barnier, que já tinha pedido aos representantes permanentes dos 27 Estados-membros para ficarem de prevenção, a aguardar uma conference call que nunca chegou a acontecer. “Batemos numa parede”, resumiu o diplomata francês, logo depois de se despedir do negociador britânico.
Recorde-se que a União Europeia apresentou, em Março, o primeiro rascunho do tratado jurídico que regulará a saída do Reino Unido da UE, para onde foram vertidos os princípios básicos do divórcio fixados no final de 2017, a saber, os direitos dos cidadãos, as matérias financeiras e ainda o compromisso de preservação do Acordo de Paz de Sexta-Feira Santa, que eliminou os controlos fronteiriços entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte.
Desde então, os dois blocos já acertaram definitivamente quase 90% do texto do tratado (com cerca de 160 artigos e 120 páginas, mais anexos). Mas não encontraram ainda uma solução para a delicada questão da fronteira do Norte: na ausência de um acordo de livre comércio, Bruxelas exige que o texto jurídico do “Brexit” inclua uma garantia legal — uma cláusula de salvaguarda ou solução de último recurso que é designada como “backstop” — a assegurar a inexistência de fronteiras, através do estabelecimento de uma área regulatória comum na ilha da Irlanda. Na prática, isso mantém a Irlanda do Norte dentro do mercado comum e da união aduaneira, enquanto o restante Reino Unido fica de fora (essa foi, de resto, a premissa do referendo que levou ao “Brexit”), o que Theresa May considera “inaceitável”.
“Estávamos muito esperançosos que fosse possível fechar o acordo de saída nos próximos dias, mas neste momento essa tarefa parece um pouco mais difícil”, admitiu a chanceler alemã, Angela Merkel, referindo-se à questão da fronteira da Irlanda. Merkel conversou esta segunda-feira ao telefone com Theresa May, que segundo divulgou Downing Street, manteria contactos com outros líderes, nomeadamente o primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, e o Presidente francês, Emmanuel Macron, antes de viajar para a cimeira de Bruxelas.
Embora a questão da fronteira permaneça o grande obstáculo, existem outros engulhos que ainda impedem a conclusão do acordo, nomeadamente questões ligadas ao reconhecimento das chamadas indicações geográficas que protegem a denominação de vários produtos europeus (por exemplo o vinho do Porto, o queijo Roquefort ou o presunto de Parma), e também questões de jurisdição. O porta-voz da Comissão confirmou que “o trabalho preparatório, em termos de planos de contingência” (ou seja, para o caso de um “Brexit” sem acordo) começou a ser intensificado esta semana.
É certo que, em termos de calendário, os desenvolvimentos do fim-de-semana antecipam o prolongamento do processo negocial para além do prazo desejável. Há meses que Michel Barnier repete que “é conveniente” que o acordo político para a saída do Reino Unido seja assinado em Outubro ou meados de Novembro (e na última cimeira informal de líderes, em Salzburgo, os 27 concordaram com a convocação de uma reunião extraordinária em Novembro para o efeito) para que o obrigatório processo de ratificação, no Parlamento Europeu e na Câmara dos Comuns, pudesse ser cumprido até à data de “Brexit”, que é 29 de Março de 2019.
Para além do acordo de saída, continua a não haver entendimento entre os dois blocos em relação à sua relação após o “Brexit”. Londres e Bruxelas falam da sua ambição comum de estabelecer a mais próxima parceria jamais ensaiada entre a União Europeia e um país terceiro. Mas nenhuma das modalidades de acordo comerciais europeus agrada aos britânicos. E o chamado plano de Chequers avançado por Theresa May já foi liminarmente rejeitado pela UE.