Notícias de que Apple Watch gravou morte de jornalista saudita são inconsistentes com a tecnologia

Ausência de roaming torna improvável que o aparelho de Jamal Khashoggi tenha transmitido ficheiros de áudio, como afirmou a imprensa turca.

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Jamal Khashoggi, fotografado em Setembro, em Londres Reuters/HANDOUT

Notícias publicadas na imprensa turca afirmaram que que o relógio da Apple que o jornalista saudita Jamal Khashoggi trazia ao pulso gravou momentos em que terá sido torturado e eventualmente assassinado às mãos das autoridades da Arábia Saudita. A descrição, porém, não é consistente com as especificidades técnicas do aparelho.

Khashoggi, que é residente legal nos EUA, está oficialmente desaparecido desde o dia 2 de Outubro, altura em que se dirigiu ao consulado da Arábia Saudita, em Istambul, para tratar de documentos necessários ao seu casamento. De acordo com a noiva, nunca saiu de lá. O saudita, que é um dos mais proeminentes jornalistas e pensadores do mundo árabe, devia ter-se casado na quarta-feira da semana passada.

O governo da Arábia Saudita mantém a sua inocência no desaparecimento, mas, no dia 13 de Outubro, autoridades da Turquia anunciaram ter gravações que confirmam a morte de Khashoggi no interior do consulado. Não se conhece a origem do áudio. O jornal turco Sabbah avançou que veio do Apple Watch do jornalista. “A interrogação, tortura e assassinato [de Khashoggi] foram gravadas e enviadas para o seu telemóvel e para a iCloud”, disse o jornal, referindo-se ao serviço online da Apple para guardar ficheiros.

O Apple Watch não tem pré-instalada uma aplicação para gravar áudio, mas é possível descarregar aplicações deste género, algo que um jornalista teria razões para fazer.

Na fase inicial da investigação, as autoridades da Turquia tentaram localizar o relógio para saber o paradeiro e estado de saúde de Khashoggi, elementos que o relógio pode monitorizar. Fotografias anteriores do jornalista a usar o relógio mostram que é um modelo com conectividade móvel (LTE), o que permite que seja utilizado para enviar emails e fazer chamadas, sem ser necessário ligá-lo a um telemóvel. Isto também quer dizer que, em teoria, não era preciso uma ligação wi-fi para o aparelho enviar ficheiros de som (ou quaisquer outros).

Porém, apesar de o relógio de Khashoggi ter conectividade móvel, esta funcionalidade não estaria disponível na Turquia. Os planos dos operadores americanos para a conectividade móvel no Apple Watch não incluem roaming naquele país, de acordo com o site da Apple.

 A alternativa seria a transmissão de ficheiros para o telemóvel via bluetooth, uma tecnologia que permite a transmissão de dados entre dispositivos através de ondas de rádio. Porém, este sistema apenas funciona para transmissões numa distância curta – e a noiva de Khashoggi tinha ficado com o telemóvel dele à porta do consulado, o que torna improvável este tipo de ligação.

O Sabbah refere ainda que os atacantes do jornalista conseguiram desbloquear o Apple Watch que este tinha ao pulso ao usar a sua própria impressão digital. Porém, a tecnologia Touch ID, que permite desbloquear aparelhos através de dados biométricos, não está disponível nos relógios inteligentes da Apple – apenas no iPhone e no iPad.

Os wearables (aparelhos com que as pessoas se podem equipar) são cada vez mais usados para investigações policiais. Uma das funções mais utilizadas é determinar a hora da morte do utilizador, e o estado do seu batimento cardíaco e respiração nas horas antes. Além disso, o relógio é capaz de dar a localização do utilizador e alguns dos movimentos realizados.

Num dos casos mais recentes, em Abril de 2018, as autoridades australianas apresentaram informação de um relógio da Apple como provas num crime. A australiana Myrna Nilsson, que foi morta na sua própria casa, estava a utilizar o aparelho quando foi atacada. A nora, Caroline Nilson, foi acusada de ter orquestrado a morte da mulher depois de dados do Apple Watch mostrarem que a Myrna foi atacada assim que chegou a casa e morreu horas mais cedo do que a nora dizia.

As inconsistências entre o relato da imprensa turca e as especificidades técnicas do Apple Watch tem sido notado nos últimos dias na imprensa internacional, numa altura em que o caso está a gerar tensões diplomáticas.

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