O “momento zero” do Pinhal de Leiria

Há um ano arderam 9476 dos 11 mil hectares do Pinhal de Leiria. Cerca de 500 foram reflorestados por voluntários. Dois terços da madeira que pode ser vendida está por cortar. E no meio de um cemitério de árvores hirtas, um homem que viu o pinhal arder, como se lhe tivesse ardido a casa, apela à “coragem para fazer o resto”.

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Adriano Miranda

Não tinham passado três meses desde o dia 15 de Outubro de 2017, quando o fogo consumiu 86% da Mata Nacional de Leiria. O primeiro-ministro foi à Marinha Grande afirmar a urgência de “reflorestar já este pinhal”. Esta era, para António Costa, a “oportunidade de, ao fazer, fazer diferente e melhor”. Apontava baterias às “tarefas imediatas”: ter um plano de reflorestação pronto até Julho e fazer os cortes prioritários de árvores nos seis meses seguintes – num ano e meio todo o processo estaria concluído.

A primeira medida derrapou até Outubro (o plano foi apresentado na última quinta-feira). E apenas um terço do pinhal passível de ser vendido foi, entretanto, alienado. O que fez num ano o dono de uma mata com 11.021 hectares, onde 9476 arderam?

Gabriel Roldão voltou no dia seguinte ao pinhal, como dissera ao primeiro-ministro. E nos dias a seguir a esse, “para confirmar que não estava lá ninguém a trabalhar”. Investigador da Sociedade Portuguesa de Geografia, aos 83 anos conhece o pinhal como poucos e tornou-se numa das suas vozes após os incêndios. Não duvida que o trabalho de planeamento esteja a ser feito. No terreno, é que pouco se vê.

Há uma proibição de passagem e por baixo uma pequena placa: “Perigo. Queda de árvores”. Várias estradas estão cortadas, pois há o risco de que os esqueletos de pinheiros e eucaliptos – em fileiras hirtas – tombem. Há alguns talhões despidos, onde restam os pontos negros das bases dos troncos cortadas e a madeira empilhada na beira da estrada. Roldão costuma dizer que é “uma mão vazia e outra cheia de nada”.

Dos 9476 hectares ardidos naquele trágico domingo, 2171 foram, entretanto, alienados. É um terço dos 6043 hectares de pinho que, pela sua maturação, é passível de ser vendido, segundo dados do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF). Com esta venda o Estado arrecadará perto de 11,6 milhões de euros.

“Guião está a ser cumprido”

Estava previsto que, durante um período de nove meses a três anos, o Estado guardasse a madeira que ia cortando, fazendo hastas públicas pontuais. Este ano, houve oito. “O guião desenhado para o Pinhal de Leiria está a ser cumprido”, garante o secretário de Estado das Florestas, Miguel Freitas. “A prioridade era a exploração da madeira queimada. Havia seis mil hectares para cortar, uma tarefa tremenda”, afirma ao P2.

A demora no corte da madeira escapa, no entanto, à compreensão do movimento cívico “O Pinhal é Nosso”. E poderá ter consequências. Numa carta aos deputados no final de Setembro, o grupo de cidadãos alertou para a possibilidade de se estar a comprometer a regeneração natural de parte do pinhal, essencial para a preservação do seu património genético. Gabriel Roldão partilha a preocupação: “Já devia ter sido tudo cortado.”

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O que se passa é que estes 6000 hectares de pinhal adulto produziram semente, ao contrário do mais jovem (bastio). Espera-se, por isso, que estes quase dois terços de área ardida sejam reflorestados naturalmente. E isso já está a acontecer. “Será muito difícil fazer com as árvores não tombem para cima do que está a rebentar”, repara Gabriel Roldão. Não quer dizer que não nasçam outras, mas retarda o processo.

A isto soma o risco de deterioração e apodrecimento da madeira e, consequente, desvalorização. A este ritmo, acredita o investigador e antigo empresário da indústria dos plásticos, o desbaste do material ardido vai demorar “entre seis a oito” anos. “Se fosse propriedade privada não eram precisos mais de dois. A máquina burocrática não deixa avançar com a necessária celeridade.”

Questionado sobre os riscos de reflorestação natural e degradação da madeira, o secretário de Estado das Florestas não pode “dar uma resposta técnica”. Explica, sim, que a Tutela tem colocado a madeira no mercado ao ritmo a que este absorve. “Não podemos fazê-lo de forma diferente”, afirma Miguel Freitas. Há que ter em conta que está a entrar no mercado a madeira dos 100 mil hectares de pinho que arderam no ano passado, diz. Confia na garantia do ICNF de que “aquilo que está a fazer obedece às técnicas de salvaguarda do futuro do Pinhal”.

Receitas revertem para a mata

Outros 1546 hectares vão a hasta pública no final deste mês. Mais 2326 hectares em datas ainda a definir. Os restantes ou são demasiado jovens ou não se destinam a exploração florestal.

Supondo que são vendidos ao mesmo preço que aqueles que já foram alienados, o Estado pode arrecadar, no total, algo como 32 milhões de euros. E, garante Miguel Freitas sobre uma das questões mais esgrimidas neste processo, “toda a receita da venda de madeira das matas públicas será investida nas matas públicas”.

O destino destas verbas foi conhecido na quinta-feira. O ICNF terá 15 milhões até 2022 para recuperar as matas nacionais litorais, sendo que a de Leiria concentrará o primeiro e o maior esforço de plantação. Começará em Outubro do próximo ano, dois anos após o incêndio, com os primeiros 500 hectares. Até 2022, serão plantados 1670.

Entretanto, neste e no próximo ano, os terrenos serão preparados. Vão ser geridos 300 hectares de mato e matéria combustível a partir de Fevereiro. Limpos 15,8 hectares das redes viárias florestais e 10,1 das chamadas redes divisionais (faixas sem vegetação).

Também nesta quinta-feira, a quatro dias do primeiro ano do fogo, a comissão científica criada para analisar e propor melhorias nas matas nacionais que arderam apresentou as conclusões. Vinca a necessidade de monitorização a vários níveis. E, entre as dezenas de recomendações técnicas, propõe a criação de faixas de espécies resilientes ao fogo, intercaladas com o pinhal, e charcos (mesmo que artificiais) para dificultar a propagação.

Algumas destas ideias estão em linha com as intenções do Governo: aumentar as zonas húmidas e aplicar modelos de silvicultura e de organização territorial. Este documento – cuja versão final deverá ser apresentada no final de Novembro – servirá de base aos planos de gestão florestal das matas que o ICNF vai criar, garante o secretário de Estado.

Como importava que a população participasse neste processo, diz o governante, foi criado um observatório local de que fazem parte, por exemplo, Gabriel Roldão e membros do movimento “O Pinhal é Nosso”. Estes dão conta, no entanto, de que o observatório reuniu apenas duas vezes, sem grandes frutos.

Até agora foram plantados cerca de 500 hectares, dados da Tutela, fruto de acções voluntárias de associações ambientalistas, grupos de cidadãos, empresas, em articulação com o ICNF. Ainda este sábado a Quercus e a Fundação Ageas agendaram a plantação de 16 hectares. “Por iniciativa privada, está projectada a plantação de mais 650 hectares, cerca de 1,4 milhões de árvores. Se porventura o Governo tivesse feito isto teríamos o dobro”, sublinha Gabriel Roldão.

Tomado pelas invasoras

O que ladeia a Estrada Florestal, a caminho de São Pedro de Moel, é um cenário despido. Restam os fustes hirtos e os ramos negros num cemitério sem fim à vista.

O ICNF cortou algumas árvores junto às estradas, mas a vegetação espontânea tem tomado o seu terreno. Proliferaram as acácias mimosas e robínias, as canas; também os eucaliptos, graças ao calor do incêndio que fez expelir milhares de sementes maduras.

Em zonas como a da Ponte do Ribeiro de São Pedro as autoridades do Ambiente fizeram aquilo que Gabriel Roldão apelida de “acções cosméticas, de show off”. Do corte de eucaliptos centenários, junto à estrada que vai de São Pedro de Moel para a Marinha Grande, nasceu uma plantação espontânea de eucaliptos dos dois lados da estrada. E foram colocadas paliçadas de madeira para suster a areia que pudesse descer da encosta dunar onde estava o eucaliptal antigo. Sem efeito, porque as areias, consolidadas, não cederam.

Aos deputados, os membros do movimento “O Pinhal é Nosso” disseram também que “as faixas de gestão de combustível que foram abertas são insuficientes e, acima de tudo, não substituem as necessárias intervenções de gestão regular”. Lamentam que “um ano depois, a Mata Nacional de Leira não tenha merecido a devida atenção do Governo e do ICNF para sair do abandono”. Uma visão que Miguel Freitas recusa categoricamente: "O facto de investirmos ainda nesta legislatura 45% dos 15 milhões de euros destinados às matas litorais até 2022 demonstra o empenho deste Governo com o Pinhal do Rei."

Não menos preocupante para o grupo que, desde o incêndio, se multiplicou em acções públicas para que a memória não se apague são os pequenos redutos verdes que escaparam às chamas. Há quem duvide que, pela falta de limpeza, tenham a mesma sorte nos próximos anos.

Cuidar quase religiosamente

Certo é que o modelo de gestão desta e das restantes matas públicas não terá alterações. Após excluir “qualquer hipótese de privatização”, há um ano, o Ministro da Agricultura admitiu “a criação de uma ou mais empresas públicas” ou parcerias com autarquias. Mas, agora, “não há nenhum cenário para uma co-gestão das matas públicas”, garante Miguel Freitas. A responsabilidade exclusiva do ICNF nesta matéria será, aliás, reforçada na proposta de nova lei orgânica do instituto que o Governo está a preparar, afirma.

É também desta proposta – do Ministério da Agricultura e do Ambiente – que está dependente o reforço de meios materiais e humanos do ICNF. O ministro já fez saber que o vai propor, falta concretizar quantos.

Este ano o ICNF abriu um total de 90 vagas para o Corpo Nacional de Agentes Florestais, em dois anúncios, recorda o secretário de Estado. No primeiro, pouco concorrido, foram preenchidas 35. O segundo está a decorrer.

Para o governante, fechou-se o “momento zero”. “Estamos agora a preparar aquilo que é o futuro do Pinhal de Leiria.” A caminho de uma “floresta mais resiliente e mais próxima das pessoas”. Isto significa assistir a reflorestação natural do pinhal-bravo, criar um mosaico com faixas de espécies autóctones (cerca de 3000 hectares) e construir espaços recreativos. Haverá ainda um espaço museológico e um trabalho de sensibilização e educação ambiental associada ao pinhal.

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“Não podemos falar exclusivamente do Pinhal de Leiria como fonte de riqueza para o Estado”, diz Gabriel Roldão Adriano Miranda

Este enfrenta um momento único. Durante cerca de 700 anos cresceu a diferentes velocidades. E desde o final do XIX vivia com um sistema de rotação de exploração, implementado pelo silvicultor Bernardino Barros Gomes. “Nunca passaria pela cabeça de ninguém que trabalhasse na silvicultura neste pinhal que ele ficasse sem nada”, refere Gabriel Roldão. Quando se recupera? Plantando hoje, são precisos 150 anos.

E para que se façam os necessários esforços na recuperação do pinhal, Roldão sente que o argumento histórico pesa pouco. Ainda menos o da preservação natural: o facto de estarem ali os eucaliptos mais altos da Península Ibérica, o mais alto cordão dunar da Europa ou as evidências dos primeiros pinheiros bravos enxertados, há 51 anos.

“Não podemos falar exclusivamente do Pinhal de Leiria como fonte de riqueza para o Estado”, diz o investigador. O pinhal-bravo garantiu a subsistência da Real Fábrica de Vidros, a primeira da Marinha Grande. Além da vidreira, impulsionou as indústrias da construção naval, metalurgia e de produtos resinosos. Consolidou, antes de disso, a residência na região de quem vivia ou vinha viver da exploração florestal. “Os marinhenses viveram sempre embalados nas aragens deste pinhal. Respeitaram-no, conservaram-no, de uma forma quase religiosa.” Um carinho que era recíproco, diz este homem de bloco de notas apertado nas mãos, com a mata ardida atrás das costas. “Ao eclodir este incêndio a gente da Marinha Grande sofreu como mais ninguém. Foi quase como se nos tivesse ardido a casa.”

Dali só quer que se tire madeira, “boa, se se tirar rapidamente” ou os seus destroços. “Vamos ter que arranjar coragem para fazer o resto.”

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