Mais de metade dos violadores são familiares ou conhecidos das vítimas
Nem becos escuros nem mãos desconhecidas: 55% das violações reportadas em 2017 foram cometidas por conhecidos ou familiares. Eis porque o crime raramente se denuncia. Outras razões para o silêncio das vítimas são vergonha, falta de confiança nos tribunais e a tendência colectiva para culpabilizar a vítima e desculpar o agressor.
Desfaça-se o estereótipo em primeiro lugar: nem as violações ocorrem maioritariamente em discotecas ou becos escuros nem os agressores são sempre desconhecidos, “feios, porcos e maus”. Pelo contrário: das 408 que foram reportadas às autoridades em 2017, segundo o último Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), vítimas e agressores eram familiares ou conhecidos em 55% dos casos. Para dar nota da complexidade deste crime, note-se ainda que muitas violações não pressupõem sequer resistência física da vítima. Mais: muitas vítimas de violação só se percebem como tal muito tempo depois, sobretudo se o crime tiver ocorrido em contexto conjugal ou de uma relação amorosa.
“Muitas mulheres acabam por naturalizar a questão das relações sexuais forçadas porque julgam que o contacto sexual é uma obrigação que deriva da formalidade do casamento. Assumem como obrigação sua ter relações com o marido independentemente da sua vontade”, explica Sofia Neves, investigadora na área da violência do género no Instituto Universitário da Maia (ISMAI). “Só mais tarde, quando já estão fora dessas relações, é que muitas reconhecem nos contactos com os centros de atendimento que foram vítimas de violação”, reforça Tatiana Mendes, psicóloga com uma tese de mestrado centrada na violência sexual, no âmbito da qual entrevistou, por exemplo, uma mulher “que se sentia na obrigação de ter relações sexuais com um marido abusivo fisicamente”. “Ele batia-lhe e ela continuava a ter com ele relações sexuais que não desejava, mas o único crime que denunciou foi o da violência doméstica.”
O facto de a violação poder ocorrer entre as porosas paredes de uma relação ajuda a que a maior parte das vítimas não denuncie o crime. Mas esta não é a única explicação para o silêncio. “Há vítimas com medo da retaliação, das dificuldades emocionais que vão enfrentar se forem a tribunal, com medo do estigma social e com dúvidas – justificadas – quanto à capacidade de o sistema ser capaz de responsabilizar criminalmente o agressor”, elenca Marlene Matos, investigadora com trabalhos feitos na área da vitimologia e da psicologia forense e docente na Universidade do Minho onde funciona um serviço de atendimento público que apoia vítimas de crimes.
Queixas aumentaram 21,8%
Estabelecido que os números oficiais sobre violações cometidas em Portugal “são apenas a ponta do icebergue”, como enfatiza Marlene Matos, detenhamo-nos na sumária caracterização de vítimas e violadores do último RASI. Além de mostrar que os 408 casos de 2017 correspondem a um aumento de 21,8% relativamente ao ano anterior, o relatório conclui que os agressores tendem a ser mais velhos do que as vítimas – 50,8% dos agressores têm entre os 21 e os 40 anos de idade, enquanto, do lado das vítimas, 19,2% têm entre 16 e 18 anos e 22,7% entre 21 e 30 anos.
E, ao mesmo tempo que confirma um estereótipo (os violadores são homens e as vítimas mulheres), apresenta um indicador que reforça a desconstrução da representação social da violação: só 31% dos agressores eram desconhecidos das vítimas.
As demais tentativas de caracterização de vítimas e agressores atiram para o campo da aleatoriedade. “Todos podemos ser potencialmente vítimas”, enfatiza Margarida Medina Martins, fundadora da Associação de Mulheres Contra a Violência, que criou, em Janeiro de 2017, em Lisboa, o primeiro centro de apoio vítimas de violência sexual. A partir do Porto, Ilda Afonso, coordenadora do segundo centro deste tipo, a funcionar desde Maio, concorda: “A vítima pode ser qualquer pessoa. Alguém que está no sítio errado à hora errada.”
Quanto aos agressores, a investigação no campo da psicologia permite a Sofia Neves arriscar que não têm de ser pessoas com patologia associada. “É alguém que tem uma relação de proximidade ou intimidade com a vítima e que procura através do contacto sexual exercer o seu poder sobre aquela pessoa.” Mais do que da procura de obtenção de prazer sexual, “a motivação decorre da necessidade de controlar a vítima”. “As violações dão-se num contexto social marcado por uma forte desigualdade de género: a ideia de que os homens são seres providos de desejo sexual premente e de que as mulheres têm de submeter-se a esse desejo”, contextualiza Tatiana Mendes, para acrescentar que “esse discurso biológico essencialista ajuda a legitimar esta violência”. Por outro lado, “joga-se aqui aquela construção social que diz que as mulheres têm de se fazer difíceis e de ser convencidas, logo que um ‘não’ pode não querer dizer ‘não’”.
Profissionais pouco preparados
Muito para lá do discurso social que tende a desresponsabilizar o agressor e concomitantemente a co-responsabilizar a vítima – e que surge vertido em acórdãos como o relativo à violação no bar de Gaia ou nos comentários à alegada violação de Kathryn Mayorga por Cristiano Ronaldo que apontavam o facto de ela ter subido ao quarto como uma espécie de “via verde” para uma alegada violação –, importará saber que apoios existem para as vítimas de violação. Entre esquadras de polícia, serviços de saúde, tribunais, há um denominador comum, apontado quer pelos técnicos do terreno quer pelos investigadores da área: a falta de preparação dos profissionais.
“Há muito a fazer na formação dos profissionais das esquadras, da área de emergência médica e também do sistema de justiça”, aponta Marlene Matos, para quem, sem essa especialização, “não se conseguirá reduzir a vitimação secundária”. “Os profissionais não estão alertados para este tipo de violência. Tem de haver um trabalho alargado de formação e especialização para que haja aqui a necessária mudança social”, concorda Tatiana Mendes.
No estudo de Sofia Neves, que avaliou a resposta de cinco diferentes grupos profissionais à violência sexual, ficou também claro que polícias, médicos, professores, enfermeiros e assistentes sociais não estão preparados para identificar este crime. “São eles próprios que se assumem pouco preparados para intervir nestas situações”, precisa, para acrescentar que os dois centros especializados que existem no país são “claramente insuficientes”. “Há demasiadas pessoas que não têm acesso a estes centros, até por conta da distância geográfica”, diz ainda.
A coordenadora do primeiro destes centros, Margarida Matos Neves, recupera as recomendações do Conselho da Europa que apontam a necessidade de um centro de crise por cada 200 mil mulheres. “Se considerarmos que o Inquérito da Agência Europeia para os Direitos Fundamentais realizado em 28 Estados-membros em 2012 concluiu que em Portugal 1% das inquiridas disse ter sido vítima de violência sexual por parceiros e não parceiros nos doze meses precedentes ao inquérito, podemos estimar, a partir dos dados do Censos de 2011, que 41.542 mulheres e raparigas foram vítimas deste tipo de crime no referido período de um ano e ter uma pálida noção da dimensão e da falta de recursos especializados de resposta”, acusa, para concluir que, no tocante à violência sexual, “ainda está praticamente tudo por fazer”.
A coordenadora do centro do Porto, que já acompanha dez vítimas deste tipo de violência, mesmo sem terem ainda divulgado a sua existência, por via da distribuição de cartazes e panfletos que deverá decorrer nas próximas semanas, aponta outra falha na resposta: “Se alguém que foi violada for a um centro de saúde, dificilmente será referenciada para um atendimento especializado porque não existem protocolos nem uma lógica de actuação em rede”, denuncia, para defender que “o caminho percorrido na área da violência doméstica, aceite e encarada como normal durante muitos anos, é o mesmo que precisa agora de ser percorrido para as vítimas de violação”.