Quando duas forças se unem no cérebro para acolher novas memórias
Equipa de cientistas da Fundação Champalimaud encontrou a colaboração de dois mecanismos que actuam nos neurónios e que permite que o cérebro seja capaz de codificar nova informação e, ao mesmo tempo, mantenha uma actividade estável.
Já alguma vez sentiu que não conseguia guardar mais informação nova no cérebro? Há mesmo quem se refira a essa situação usando uma analogia quando afirma que não tem mais espaço no disco rígido. Na verdade, se tudo estiver bem, o espaço no nosso disco rígido (a que a biologia chama cérebro) vai-se moldando às nossas necessidades graças a alguns processos neuronais conhecidos. E a plasticidade cerebral ao nível das sinapses desempenha aqui um papel central. Uma equipa de cientistas da Fundação Champalimaud investigou o que acontece no cérebro quando aprendemos uma informação nova e, ao mesmo tempo, garantimos a estabilidade do que já lá está “gravado”. O artigo é publicado esta sexta-feira na revista iScience, do grupo Cell.
São duas tarefas que à primeira vista parecem opostas. É como se existisse uma luz que se acende e, ao mesmo tempo e no mesmo sítio, uma outra força que tenta regular a luz no resto da sala para a manter num nível adequado. Ou seja, há uma força que activa e outra que impõe a estabilidade.
A estas forças, os neurocientistas deram nomes mais complicados. Assim, a plasticidade Hebbiana (ou de Hebb em homenagem a Donald Hebb, pioneiro nas neurociências) será a luz que se acende e que permite registar novas informações através das sinapses. Esta característica convive no cérebro com um outro tipo de plasticidade, a plasticidade sináptica homeostática (PSH) que serve para garantir a estabilidade. “A sua função, tal como acontece com outros processos homeostáticos no organismo – é manter a estabilidade do cérebro. É a PSH que garante que cérebro não se torne demasiado activo (como na epilepsia) ou demasiado inactivo (o que pode acontecer na doença de Alzheimer devido à perda de sinapses)”, explica um comunicado sobre o artigo. Um cérebro demasiado activo teria tantas luzes acesas que acaba por nos cegar e o contrário seria uma penumbra ou escuridão que também impedia um funcionamento normal.
O estudo coordenado pela neurocientista Inbal Israely tenta esclarecer o que se passa nas sinapses quando estas duas plasticidades se sobrepõem. No fundo, se continuarmos a história com a nossa metáfora, os cientistas quiseram perceber o que acontece nos “fios eléctricos” quando a luz se acende e ao mesmo tempo funciona o mecanismo de regulação da intensidade da luz na sala. “Acontece tudo na mesma lâmpada”, acrescenta Anna Hobbiss, primeira autora deste trabalho, em declarações ao PÚBLICO alinhando na nossa metáfora. “A plasticidade Hebbiana e homeostática têm sido extensivamente investigadas, no entanto sabe-se muito pouco sobre sua a interacção entre os dois mecanismos”, constata-se no artigo.
Provocar um apagão
Assim, investigaram-se as consequências estruturais e funcionais da plasticidade homeostática em espinhas dendríticas (minúsculas estruturas nos neurónios que recebem sinais de outros neurónios através das sinapses) de ratinhos. A região escolhida como alvo foi o hipocampo, uma parte do cérebro que é especialmente recrutada para a aprendizagem, ou seja, a sala onde as luzes de informações novas se acendem.
Para perceber o que acontecia na instalação eléctrica ou, mais precisamente, nas espinhas dendríticas de neurónios, os cientistas bloquearam a actividade nas células e, para isso, usaram uma potente toxina, a tetrodotoxina. Desta forma, conseguiram simular a perda da actividade neuronal, ou seja, a escuridão. “Desligámos as luzes todas bloqueando a actividade”, explica Anna Hobbiss, primeira autora do estudo. Passado 48 horas, voltaram a intervir e, desta vez, “simularam uma ligeira recuperação da actividade neuronal ao nível de apenas uma sinapse, ao libertar moléculas de um neurotransmissor – o glutamato –, numa única espinha de um único neurónio”, acrescenta o comunicado.
Depois, restava observar o que acontecia às espinhas e registar as alterações. Um dos efeitos observado foi o aumento do volume das espinhas dendríticas após o silenciamento total da actividade neuronal. Para tentar captar os mais ínfimos resquícios de luz, os fios da instalação eléctrica engrossaram.
Acender faíscas
A seguir, os cientistas estimularam as espinhas uma a uma com glutamato, como se provocassem umas pequenas faíscas. Esperava-se que as espinhas não conseguissem crescer mais, já que tinham engrossado até um volume máximo, mas o que aconteceu foi que, mais uma vez, se observou uma reacção de mudança estrutural. “Os espinhos menores sofreram um crescimento robusto, enquanto os espinhos maiores permaneceram inalterados”, refere o artigo. Mais: os espinhos próximos da espinha estimulada também exibiram mudanças de volume após a plasticidade homeostática. Resumindo, concluem os cientistas, estas observações “demonstram que a plasticidade Hebbiana e homeostática interagem para moldar a conectividade neuronal através de uma plasticidade estrutural não uniforme aos estímulos”. Os dois mecanismos que actuam nos neurónios colaboram para ajustar da melhor maneira as ligações que reagem a um estímulo.
Os resultados obtidos permitem concluir que a plasticidade homeostática pode de facto aumentar a plasticidade Hebbiana, o tipo de plasticidade necessário para armazenar informação. “O nosso trabalho acrescenta uma peça ao puzzle de como o cérebro desempenha uma das suas tarefas fundamentais: ser capaz de codificar informação e ao mesmo tempo manter um nível estável de actividade”, conclui Anna Hobbiss.
A desregulação da plasticidade homeostática – o mecanismo que garante a estabilidade – tem sido associada a algumas perturbações do desenvolvimento neuronal, como as síndromes do X frágil e de Rett, mas também com doenças neurodegenerativas como a Alzheimer. Inbal Israely conclui que “talvez seja este equilíbrio que nos torna capazes de aprender informações novas e de assegurar a estabilidade desse conhecimento ao longo de uma vida”.