O risco de burnout é elevado nos alunos de Medicina — mas a universidade tem soluções

A Escola de Medicina da Universidade do Minho tem um programa de monitorização e acompanhamento de alunos em risco. Isto porque os estudantes do curso são um grupo especialmente vulnerável. Esta quarta-feira, 10 de Outubro, assinala-se o Dia Mundial da Saúde Mental, que, este ano, tem os olhos postos nos jovens.

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Francisca Santos, de 20 anos, não passou à primeira na unidade curricular de Moléculas e Células, uma das duas “principais cadeiras” do primeiro ano de Medicina na Universidade do Minho (UM). Hoje, no terceiro, recorda ter chumbado por duas décimas — o início de um problemático “acumular de situações”. Depois, no outro cadeirão do ano inicial do curso, voltou a ter dificuldades. “Vi-me à rasca para passar e pensei em desistir de Medicina”, recorda. No final do primeiro ano “só chorava” e aí começaram a surgir pensamentos negativos: “Questionava o meu lugar e pensava que não tinha função neste mundo. Não tinha pensamentos suicidas, mas não conseguia ver nenhuma porta a abrir-se, não tinha respostas”. Conta que ficou “esgotada a todos os níveis, sem conseguir estudar, sem vontade de sair de casa”.

Estes são os sintomas que caracterizam a síndrome de burnout: por definição, é um estado de fadiga física e mental, que nasce da “exaustão emocional, despersonalização e falta de realização pessoal”. Normalmente é associada ao esgotamento profissional — um estudo da Deco conclui que um em cada três trabalhadores está em risco de burnout (a percentagem para os profissionais de saúde é de 39%). Relatos como o de Francisca apontam para um grupo especialmente vulnerável: os estudantes de medicina.

O seu caso não é o único — e a UM tem andado a monitorizar “os níveis de depressão, ansiedade e burnout dos alunos desde 2009”, explica o professor e médico psiquiatra Pedro Morgado, de 34 anos, vice-presidente da Escola de Medicina. “O que temos vindo a observar é que aqueles níveis têm vindo a baixar, o que é bom, mas há alunos em maior risco.” Que alunos são esses? “Quem entra neste curso por pressão dos pais ou interesses económicos”, responde o médico psiquiatra.

É difícil saber quem entra por vocação e quem entra por pressão. E é ainda mais complicado falar sobre isto no meio estudantil. Sofia Ribeiro, 24 anos, está a preparar-se para o exame dos exames: o Harrison — que já tem fim anunciado para o próximo ano lectivo. Estuda para o exame desde Janeiro. Conta que o seu curso é “propenso a altos níveis de stress e ansiedade”, mas também aponta que a síndrome “é uma coisa da qual não se fala”, e quem passa por tal “tenta esconder”. Não é a única que pensa existirem mais casos do género ainda escondidos: também Francisca e Margarida Monteiro, sua colega de curso e de ano, afirmam existirem mais alunos com distúrbios mentais que “não procuram ajuda e não se identificam”. O exemplo de Francisca é um desses; não recorreu ao apoio da Escola de Medicina, os professores não souberam e muitos colegas também não. “Se virem isto no P3, vão ficar surpreendidos”, assegura.

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Margarida Monteiro conseguiu regular o sono com a ajuda de antidepressivos e só nas férias consegue dormir sem preocupações. Nelson Garrido

Com o passar dos anos, risco de burnout só aumenta

A estudante da academia minhota, natural de Vila Nova de Gaia, escolheu tratar do seu distúrbio com o médico de família. “Deu-me mais segurança e também não gosto muito de misturar as coisas com os professores.” Chega a dizer que preferiu, na época, “não chatear” os docentes, mas o que o professor Pedro Morgado quer é que os alunos falem, “porque é assim que se resolvem os problemas”. Por isso, em 2013, foi criada a Comissão de Apoio ao Aluno, que “os orienta a nível académico, psicológico, psiquiátrico e financeiro”. Assim, se um aluno procurar o organismo para uma consulta de psiquiatria, será “reencaminhado para um hospital do Serviço Nacional de Saúde”. 

Margarida, de 21 anos, recorreu à comissão no início do seu segundo ano. Um ano depois ainda sente as réplicas de uma fase complicada. “Naquela altura, cheguei quase à exaustão, porque passei um mês a dormir duas horas por noite.” Com o passar dos dias, o “humor, a motivação e a paciência foram-se revelando perturbadas”. Bastou-lhe o “inconveniente mínimo” de perder o telemóvel para se sentir “emocionalmente descontrolada, exausta e confusa”. Foi com a ajuda de antidepressivos que conseguiu regular o sono e nas férias consegue dormir sem preocupações. Em tempo de aulas, nunca mais conseguiu ter uma boa noite de sono e teme não ter mais nenhuma na futura carreira. Na mesma altura foi “diagnosticada com bruxismo, uma manifestação de nervosismo, com aumento de tensão nos músculos da mastigação”. Deste então usa “uma goteira para dormir”.

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A ansiedade e a depressão diminuem ao longo do curso; já no burnout "a incidência aumenta nos anos finais", diz Pedro Morgado Nelson Garrido

Segundo o médico psiquiatra e professor, “aquilo que os dados [da Escola de Medicina da UM] mostram é que a ansiedade e a depressão diminuem ao longo do curso, havendo mais casos nos primeiros anos”; quanto ao burnout, Pedro Morgado diz que “a incidência aumenta nos anos finais”. Ao email enviado pelo P3 para os alunos de Medicina daquela academia apenas responderam alunas e isso tem uma justificação. “Primeiro, o curso tem mais mulheres. E, de facto, a depressão e a ansiedade são mais comuns nas mulheres, como confirmado em vários estudos”, resume. O professor não acredita que este seja um problema exclusivo de uma geração, mas reconhece que distúrbios desta ordem estejam “mais concentrados em jovens, mesmo naqueles que iniciam a carreira”.

Em 2015, uma tese de mestrado da Faculdade de Medicina de Lisboa mostrava que 15% dos médicos avaliados estavam em burnout e atirava outras certezas: os médicos mais novos, em internato, “exibem níveis mais elevados de burnout”, adiantava o PÚBLICO. Mas esta síndrome não afecta só médicos: um outro estudo de 2016 adiantava que “47,8% dos médicos e enfermeiros inquiridos apresentavam níveis de burnout elevados e que 21,6% exibiam sintomas moderados”. O passar dos anos não melhorou o panorama no meio profissional – pelo menos foi a conclusão de outra investigação do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, divulgada em Abril passado, que aponta que o distúrbio “afecta todos os profissionais que trabalham em hospitais”. Em declarações à Lusa, Miguel Xavier, director do Programa para a Área da Saúde Mental, defendeu ser necessário torná-la prioritária e ser “proporcional ao sofrimento que causa nos doentes e nas famílias”. 

“Não vês isto noutros cursos”

Margarida conta sempre com altos níveis de stress em Setembro, quando há exames pouco depois do arranque do ano lectivo. Para além disso, o sistema de ensino no curso é diferente de muitos outros: o próprio site da Escola de Medicina esclarece que “o professor é mais um orientador do trabalho do que um “instrutor” que transmite conhecimentos”; por isso, têm prioridade as “aulas de auto-aprendizagem”. Esse pode ser um condutor de stress e existe “muita pressão nos primeiros dois anos”, diz a estudante. “É suposto preparares as aulas e saberes a matéria; se não souberes, não tens represálias, mas ficas sempre com aquela culpa”, explica. A sua colega C. — que não quis ser identificada — diz preferir esta “pressão sustentada, com exames consecutivos”, porque estuda melhor assim. Acrescenta que, desta forma, “os alunos são obrigados a amadurecer”, mas reconhece que o método pode causar efeitos indesejáveis na saúde mental dos alunos.

Também C. teve de recorrer a ansiolíticos no início do segundo ano. “Nunca pensei em desistir, mas senti desânimo”. Margarida pensou mudar de universidade. “Já vi colegas a chorarem depois da aula e há sempre quem peça a alguém para responder a determinada questão. Não vês isto com esta dimensão noutros cursos.” No entanto, ambas concordam que o sistema e a exigência do curso lhes permitem “estar à frente de outros colegas de outras universidades”. Se por um lado há pressão e choque aos quais os alunos do primeiro ano são expostos — quando não há “aulas expositivas” —, por outro existe uma “habituação” ao método, que acaba por resultar para muitos. Margarida recorda-se, contudo, de ter ouvido que “em Medicina não há fins-de-semana” que possam salvar os alunos da leitura de centenas de páginas, mas também não poupa os elogios aos professores. “É complexo”, começa por dizer. “Há pressão, mas os professores estão sempre disponíveis para qualquer coisa. Os professores sabem o teu nome, há sentido de proximidade, e isso é muito bom.” C. acrescenta: “Eles querem formar os melhores médicos do país.”    

Para a estudante, o melhor “é relativizar o stress” e afirma que controla melhor a ansiedade. Já Margarida não acha correcto “normalizar a situação” e diz ter a certeza de que há colegas “a esconder isto porque têm medo” — algo que o professor Pedro Morgado corrobora: “Há um preconceito ainda muito grande relativamente a isto.” Para Francisca, que ao contrário das duas colegas referidas não volta a casa todos os dias, há fases melhores e piores, mas já saiu “do poço há muito”. Pede-nos um favor: “Digam que faz bem fazer exercício físico, para complementar o desgaste mental. Sinto muitas vezes vontade de correr, mas não vou, porque tenho sempre tanto para estudar!” 

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