Um ano depois do #MeToo, como vai o feminismo português?
Patrícia Martins, Luísa Barateiro, Lúcia Furtado e Patrícia Vassallo e Silva acordam e vão dormir com o activismo na cabeça, na voz e nas mãos. As quatro mulheres não poupam críticas à justiça portuguesa e relembram que a luta feminista não se faz sem o combate à precariedade, ao racismo ou à LGBT-fobia.
Um ano depois de Harvey Weinstein ter sido publicamente acusado de violação, abuso e assédio sexual por dezenas de mulheres e de o #MeToo ter nascido, o feminismo inundou as redes sociais, vulgarizou-se nas mensagens de t-shirts e fez-se tema (ainda mais) recorrente na cultura pop. Mas por que caminhos anda a luta feminista em Portugal? Em busca dessa resposta, o P3 foi falar com quatro feministas portuguesas que estão envolvidas na luta pela igualdade há vários anos e que acordam e vão dormir com o activismo na cabeça, na voz e nas mãos.
“Num sistema precário, de exploração e opressão, são as mulheres as mais afectadas”
“O movimento feminista em Portugal teve muita força na altura da despenalização do aborto — ligou associações feministas, a partidos políticos, a activistas individuais. Depois, esteve um bocadinho adormecido. Mas com esta 'Primavera Feminista', com movimentos a surgir na Argentina, nos Estados Unidos, no Brasil, começamos a assistir a um rejuvenescimento da luta, que está a juntar muitas pessoas diferentes e a chamar muitos jovens.” Quem o diz é Patrícia Martins, activista portuense de 30 anos e militante do Bloco de Esquerda, associada à Colectiva, à Marcha de Orgulho LGBT do Porto, mas também aos Precários Inflexíveis e ao Porto não se Vende.
Olhando para os últimos anos, Patrícia não tem dúvidas de que a luta feminista ganhou um novo fôlego em 2017. Relembra a Marcha das Mulheres, que aconteceu no dia seguinte à tomada de posse de Donald Trump em seis cidades de Portugal, as centenas que saíram à rua em Maio na sequência de um presumível caso de abuso sexual num autocarro no Porto, ou até os protestos de Outubro contra um acórdão judicial do Tribunal de Relação do Porto, no qual se censurava uma mulher vítima de violência doméstica e se minimizava a culpa do agressor devido à relação extraconjugal da vítima. Já em 2018, um outro acórdão do mesmo tribunal motivou mais protestos. “A justiça em Portugal não está a acompanhar uma consciência social relativamente aos crimes de violência de género”, conclui a activista.
Há já uma década que Patrícia se diz feminista. Mas nunca isolou esta luta de outras paralelas: “Não é possível concretizar o feminismo sem termos outras leis laborais de protecção dos direitos dos trabalhadores ou sem outras políticas públicas de combate ao racismo em Portugal. Porque num sistema precário, de exploração e opressão, são sempre as mulheres que vão ser as mais afectadas.”
Do activismo feminista deste ano, Patrícia destaca o primeiro Encontro de Mulheres, que reuniu 200 mulheres numa escola secundária do Porto para que elas pudessem falar, na primeira pessoa, sobre as discriminações que vivem no quotidiano, mais ou menos visíveis. De lá saiu um compromisso ambicioso: organizar uma Greve Feminista a 8 de Março de 2019, semelhante à greve que aconteceu na mesma altura neste ano, em Espanha, e que contou com a adesão de mais de cinco milhões de pessoas.
A activista tem dado ainda um especial apoio às marchas de orgulho LGBT no interior — “contextos onde a visibilidade e a representatividade das pessoas LGBT ainda é mais complicada” —, organizando autocarros para levar gente do Porto a cidades como Vila Real, Bragança e, pela primeira vez neste domingo, 7 de Outubro, a Viseu.
“Agora, o machista é mais orgulhoso, está mais consciente de o ser”
Com apenas 12 anos, Luísa Barateiro passou por “uma situação grave de assédio sexual e de stalking”. Dois anos mais tarde, quis ajudar as pessoas que passaram pelo mesmo e fez-se activista. Hoje, com apenas 18 anos, a estudante de Biologia pertence à organização do Festival Feminista e está ligada ao Movimento Democrático de Mulheres e à União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR).
No último sábado, 29 de Setembro, foi uma das que segurou cartazes a reivindicar “Fascismo Não”, na Praça Gomes Teixeira, no Porto, na mesma altura em que, no Rio de Janeiro, milhares de mulheres saíam à rua num protesto contra Jair Bolsonaro, candidato à presidência brasileira. “Estamos num momento histórico em que podemos ter um grande retrocesso caso pessoas como esta conquistem poder”, lamenta a feminista portuense. “Aquilo que ele diz sobre as mulheres, a visão que tem da sociedade e do mundo é muito preocupante. Está a oprimir as mulheres de uma forma... Pensávamos que já não íamos ter de passar por isto.”
Com o #MeToo, o movimento feminista ganhou visibilidade, reconhece. Mas, ao mesmo tempo, a sociedade polarizou-se. “O machista dos dias de hoje é mais orgulhoso, está mais consciente de o ser. Se antes tínhamos um pouco de desconhecimento — com comentários como ‘Eu luto pela igualdade, mas feminismo não, não vamos exagerar’ —, agora temos pessoas completamente radicalizadas”, explica ao P3.
Por outro lado, há cada vez mais divisões na luta feminista, com grupos a fazerem “reivindicações cada vez mais concretas”, afirma: “Por vezes separamo-nos um pouco e esquecemo-nos que é a nossa união que dá resistência ao movimento.” O Festival Feminista, criado em 2015 no Porto, quer contrariá-lo e virar os holofotes para temáticas mais camufladas dentro da luta feminista e para preocupações específicas de mulheres pobres, negras, ciganas, lésbicas, trans, entre outras, adianta Luísa.
Olhando para o trabalho que ainda falta fazer, a feminista não tem dúvidas: “Falta atingir a igualdade plena”. “A sociedade está muito feminizada, já há muitas mulheres em cargos políticos, muitas mulheres a conseguirem a exprimir a sua opinião. Mas falta libertar a sociedade do patriarcado, mudar a forma como ela está organizada”, acrescenta. E a justiça é um dos sectores que precisa de uma reforma dos pés à cabeça: “Afinal, como é que vamos querer que um patrão respeite a trabalhadora se a justiça não respeita a mulher?”
“Nem sempre a nossa função é falar. Por vezes é sentar, ouvir e apoiar.”
“Em qualquer evento feminista, ainda vemos um público maioritariamente branco. Isto acontece porque o feminismo mainstream ainda tem pouco em consideração o que está fora do contexto da mulher branca de classe média-alta e acaba por não conseguir reter mulheres de outras raças e etnias.” Estas são palavras de Lúcia Furtado, feminista e contabilista de 36 anos, que, deparada com a pouca representatividade das mulheres negras no movimento feminista português, decidiu fundar – em conjunto com outras mulheres – a FEMAFRO.
Foi em 2016, após a organização do 1.º Encontro de Feministas Negras, em Lisboa, que a associação se oficializou. Mais de 100 mulheres negras, africanas e afro-descendentes juntaram-se para discutir e partilhar experiências sobre o racismo e o feminismo. Isto porque a luta feminista “não se faz sem a intersecção”, explica. “As questões de género são importantes, mas não são as únicas a afectar as mulheres. A questão da classe, da orientação sexual, da raça – todas as opressões acabam por se fundir. E, se queremos combater algo, não nos podemos centrar somente numa questão, é preciso trabalhá-las em conjunto.”
A 15 de Setembro, cerca de 2500 pessoas responderam ao apelo de mais de 60 organizações e juntaram-se no Largo de São Domingos, em Lisboa, numa mobilização contra o racismo. Lúcia esteve lá. Aliás, a lisboeta chegou mesmo a tirar férias “para estar completamente concentrada na organização da mobilização”, que partiu de reuniões de um grupo de mulheres negras “com vontade de fazer algo relativamente ao julgamento dos polícias de uma esquadra de Alfragide”, acusados de tortura e racismo a seis jovens da Cova da Moura, adianta.
Ao pensar na evolução do movimento feminista no país, Lúcia — também activista da Djass – Associação de Afrodescendentes — destaca a “pluralidade de movimentos” que nasceram, mas também a “vaga de jovens que tem vindo do Brasil” nos últimos anos, para estudar ou trabalhar: “Eles têm dado tanto ao movimento negro como ao movimento feminista um boost muito grande, porque têm um longo historial de activismo e militância em várias áreas que nós não temos.” Mas ainda há muito trabalho pela frente, ao nível da “desconstrução pessoal de preconceitos”. “Tem de haver uma maior capacidade de ouvir o outro e de se pôr no lugar do outro”, acredita. “Nem sempre a nossa função é falar. Por vezes é sentar, ouvir e apoiar.”
E isso passa também pela educação, conclui Lúcia. A pretexto da Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024), no último ano lectivo, a FEMAFRO, com o apoio da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, esteve nas escolas Gustave Eiffel (Amadora) e Gil Vicente (Lisboa) para discutir temas como a igualdade de género, discriminação racial, xenofobia e discurso de ódio. E, ainda neste ano, será publicado um conteúdo audiovisual resultante da iniciativa, pensado e produzido pelos alunos.
“Se a mulher está indignada, tem de mostrar que o está”
Patrícia Vassallo e Silva, de 33 anos, iniciou-se no mundo do feminismo quando começou “a sentir machismo na pele”. Electricista de profissão, desde a formação que começou a ter “problemas de assédio”. Foi a partir daí que começou a procurar associações, a ir a encontros. Pouco depois, em 2016, levantou-se o “Por todas elas”, um movimento brasileiro que ganhou força após a violação colectiva de uma adolescente, no Rio de Janeiro. Do outro lado do oceano, Patrícia sentiu vontade de sair à rua. Como viu que ninguém dava o primeiro passo na organização de uma manifestação, decidiu avançar. E assim se fundou o colectivo feminista “Por Todas Nós”, a que actualmente chegam “pessoas que sofreram assédio, violações e que, com a ajuda do activismo, conseguem lidar melhor com as suas experiências”, conta a feminista lisboeta.
Hoje, fica feliz por ver “cada vez mais jovens a aparecerem nas reuniões” feministas. “Lembro-me de que quando comecei, só via gente dos 40 e tal anos para cima. Nessa altura pensava ‘Onde é que estão as pessoas da minha idade?’. E isso mudou imenso, tem sido uma grande conquista. As activistas mais velhas já estão muito mais ligadas às mais novas e vice-versa.”
Quando se pergunta a Patrícia onde é que o país continua a falhar, a activista traz a resposta na ponta da língua: “É na justiça.” “A sociedade tem de mudar. E já tem mudado, ao nível da sensibilidade. Mas enquanto a justiça apoiar o violador, isto não vai para a frente. Não estamos protegidas”, comenta. E como se faz isto? “A mulher tem de mostrar que está atenta a estas situações, que não lhe são indiferentes. E se está indignada, tem de mostrar que o está. Sem medos. É ir para a rua, para o espaço público. Mas também falar dentro da sua casa.”
Em Janeiro deste ano, em pleno protesto das trabalhadoras da fábrica da antiga Triumph, Patrícia estava lá. O Por Todas Nós comprou mantimentos, fraldas para bebés e acompanhou as mulheres na vigília. A activista confessa que ainda “fica arrepiada” só de pensar nisso: “Nós chegávamos lá para dar apoio, mas sem respostas. E elas diziam-nos que isso era suficiente, que precisavam de pessoas que acreditassem nelas e na força delas. Diziam que aquilo até podia não dar em nada, porque iam para o desemprego, mas que ao menos passavam a mensagem às activistas. Mas as activistas eram elas.”
Desde o início do Verão que o colectivo fundado por Patrícia tem trabalhado com a Câmara Municipal de Lisboa, para discutir o que se pode mudar no município ao nível das questões LGBT. Para além disso, a feminista também está envolvida na preparação de uma marcha contra todo o tipo de violência na mulher, marcada para 25 de Novembro, em Lisboa.
Sobre o #MeToo, Patrícia resume: "Foi um movimento fantástico. Mas o que eu pensei quando ele surgiu foi 'Espero mesmo que abra portas a outro tipo de mulheres também'. Quero que as mulheres de Hollywood sintam força para denunciar, mas também o quero para mulheres de classe baixa, que não têm voz na sociedade."