Sublime alpino: Arte e Ciência

Uma caminhada pelos trilhos e glaciares dos Alpes suíços que inspiraram cientistas, físicos e naturalistas interessados em descobrir os mistérios da natureza. Shelley, De Broglie, Saussure, Tyndall e Stephen. Lugares que revelam a intensidade dramática do Sublime.

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Na segunda parte desta viagem vamos passar pelos Altos Alpes, lembrando os vários momentos em que esta cadeia montanhosa capturou o imaginário de cientistas e artistas. Partimos de Genebra, passamos pelos trilhos que rodeiam o Matterhorn e visitamos o glaciar de Aletsch, terminando a viagem na origem do rio Ródano. Este percurso permite-nos reflectir sobre a separação entre os campos da arte e da ciência que ocorreu desde o século XVIII até ao presente. Vamos encontrar os Alpes como objecto de interesse científico, como lugar de contemplação artística e finalmente como desafio para escaladas heróicas. Em todas estas instâncias, os Alpes materializam a ideia do Sublime, de reverência perante a escala destas montanhas.

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O ano sem Verão

Em 1816, o Inverno foi particularmente frio, da Europa à China, o Verão tardou a chegar. A causa desse arrefecimento foi mais tarde atribuída à erupção do vulcão Tambora, em Abril de 1815, cujas cinzas ensombraram a Terra durante meses. O “ano sem Verão” também marca o final do Império Napoleónico — um Inverno cuja memória podemos revisitar através das canções de Winterreise (1827) de Franz Schubert. Nesse ano, quatro jovens ingleses passaram um Junho chuvoso fechados em casa nas margens do Lago Genebra — Mary Shelley, Percy Shelley, e os seus amigos Lord Byron e Claire Clairmont. Impedidos de sair da Villa Diodati por causa do mau tempo, inventaram um desafio: cada um devia escrever uma história.

Ao anoitecer, atravessámos esse lago para Cologny, cirros carmim pontuavam o céu colorido por um gradiente desde o laranja ao azul da Prússia. Subimos o Chemin Byron, até chegar a um pequeno jardim onde se via a lua cheia e a luz acesa de uma das janelas da Villa Diodati. Imaginamos Mary Shelley debruçada sobre o manuscrito de Frankenstein, or the Modern Prometheus (1818) à luz dessa lâmpada. Shelley conta a história de Victor Frankenstein, um jovem estudante de Genebra que consegue animar uma criatura, que rejeita por causa da sua aparência. O tema que Shelley explora é o do mito de Prometeu na era moderna, questionando a ética do cientista, inconsciente das consequências inesperadas da sua descoberta, e a hubris que anima a procura do conhecimento: “O desejo dos sábios desde a criação do mundo estava agora ao meu alcance.” Por outro lado, Shelley descreve a educação da “criatura” que ao descobrir “o Paraíso Perdido [de Milton], um volume das Vidas de Plutarco e A Paixão do Jovem Werther [de Goethe]” lê esses livros, que lhe apresentam “uma infinidade de novas imagens e emoções que por vezes [o] elevavam ao êxtase, mas mais frequentemente [o] afundavam na depressão mais profunda”. Shelley humaniza a “criatura” e problematiza o cientista, apresentando ecos das ideias de Rousseau.

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Matterhorn, a partir de Zermatt, Suíça
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Monte Rosa (esquerda), Lyskamm (centro), Castor (direita) sobre o Glaciar Gorner

Enquanto Mary Shelley escrevia os primeiros esboços de Frankenstein, Byron passou o Verão a remar para o Château de Coppet, situado no lado norte do lago Genebra, para visitar — aquela que na altura era a autora mais célebre da Europa — Germaine Necker, ou Mme. de Stäel. Visitámos este château com uma fachada neoclássica, uma adição elegante a um edifício mais antigo. Na entrada, reina um retrato monumental de Louis XVI de François Callet, um presente do próprio monarca ao seu ministro das Finanças — Jacques Necker, o pai de Germaine.

Apesar disso, Stäel apoiou a Revolução e escreveu o seu primeiro livro sobre Jean-Jac-ques Rousseau — no piso superior, de onde se tem uma larga vista sobre o lago Genebra, encontramos o retrato do citoyen de Genève em traje arménio. Em 1803, Stäel foi expulsa de França e impedida de se aproximar de Paris por Napoleão, com quem teve um conflito até ao final da vida. Viajou pela Europa em exílio, travando conhecimento com Wilhelm von Humboldt e J. W. Goethe em Weimar, Humphry Davy e Byron em Londres. Stäel regressava a Coppet regular e relutantemente, escrevendo ali as dezenas de livros que publicou e reunindo um círculo de intelectuais, o Groupe de Coppet.

Ao deambular pela casa, encontramos um quarto coberto com o mais estupendo papel de parede chinês pintado à mão, representando aves, insectos e rios. A sala de refeições exibe um conjunto de gravuras retratando batalhas do imperador chinês Qianlong e raras representações da Cidade Proibida em Pequim. Num quarto mais pequeno, está o retrato de Louise de Broglie, Comtesse d’Haussonville — vestida de azul-celeste e pousando um dedo na bochecha — pintado por Jean-Auguste Dominique Ingres em 1845, cujo original reside na Frick Collection em Nova Iorque. Louise — neta de Mme. Stäel — publicou entre muitos outros livros a biografia de Byron.

Partículas invisíveis

Em 1924, um jovem inspirado pelo trabalho de Einstein sobre a quantização da radiação electromagnética apresentou uma tese chamada Recherches sur la théorie des Quanta. O seu nome era Louis de Broglie, sobrinho-neto de Louise. De Broglie teve uma intuição, inverteu a enunciação de Einstein de que elementos da radiação electromagnética (fotões) se comportam por vezes como partículas e propôs que partículas de matéria (electrões) podiam ter um comportamento semelhante ao da radiação electromagnética, propagando-se como ondas. Em 1929, ganhou o Prémio Nobel da Física por esta formulação teórica. A teoria de De Broglie foi fundamental para a genealogia de teorias e experiências que revolucionaram a física no último século, expandindo o campo da mecânica quântica.

Em 1949, De Broglie foi um dos impulsionadores da criação de um laboratório de física internacional, que eventualmente deu origem ao CERN (Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire), localizado em Meyrin, próximo de Genebra. Aí testam-se teorias através de experiências com aceleradores de partículas, o mais recente sendo o LHC (Large Hadron Collider), um túnel circular subterrâneo com um perímetro de 27 quilómetros.

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Synchrocyclotron, CERN, Suíça

No CERN, os edifícios estão numerados por ordem cronológica de construção, e podemos identificar as várias épocas desde a década de 1950 até hoje. Conduzimos alguns quilómetros até chegar ao edifício 180 — Large Magnet Facility —, onde encontrámos Lucio Rossi, o director do projecto HL-LHC (High Luminosity-LHC). Este novo acelerador de partículas com “alta luminosidade” vai aumentar o foco e a energia dos feixes de protões e irá substituir o LHC a partir de 2025. Rossi mostrou-nos uma secção do tubo do LHC que estava a ser alterada. Tentamos imaginar que nestes tubos já circularam feixes de protões quase à velocidade da luz, algo que mesmo para Rossi é “inimaginável para os nossos sentidos”. Rossi explicou-nos o que acontece a um protão a circular no LHC: “Como Einstein previu, a velocidade tem um limite e, quando [o protão se] aproxima desse limite, o que é que acontece quando se dá mais energia?” É como se a energia, em vez de se transformar em velocidade, se transformasse em massa. “Sabem quantas vezes a massa do protão, uma pequena partícula, aumenta no final? 7000 vezes.” Com mais massa, mais partículas são criadas em cada colisão.

Depois visitámos o mais antigo acelerador de partículas do CERN, o Synchrocyclotron, que esteve em funcionamento entre 1957 e 1990 — uma máquina enorme com uma aparência industrial semelhante às de uma central eléctrica do século XIX.

De acordo com os estatutos do CERN, a investigação ali desenvolvida não pode ter aplicações militares, o que demonstra preocupações éticas no processo de descoberta científica para evitar possíveis consequências inesperadas. Por oposição, lembramos outro tempo e outro lugar — o teste da primeira bomba atómica no deserto do Novo México em 1945. A reacção de Robert Oppenheimer — director do Manhattan Project e Victor Frankenstein da era moderna — foi um misto de remorso e hubris, ao citar a escritura hindu Bhagavad Gita: “Transformei-me na Morte, o destruidor de mundos.”

Os trabalhos de construção do HL-LHC foram iniciados em Junho deste ano e, para assinalar esse momento, foi criada uma cápsula temporal que contém, entre outras coisas, o artigo da Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers (1751-1772) — de Diderot e de d’Alembert  sobre Genebra. A poucos quilómetros de Meyrin, visitámos o Château Voltaire, em Ferney, onde Voltaire viveu entre 1760 a 1778 e onde D’Alembert escreveu esse artigo, durante uma estada em 1756. A Encyclopédie — a obra simbólica do iluminismo — aumentou o interesse pela observação do mundo natural e inaugurou o momento das grandes viagens de exploração científica, de naturalistas como Louis-Antoine Bougainville em 1766-69, Joseph Banks em 1768-71 e Alexander von Humboldt em 1799-1804. Para Humboldt, o objectivo do “inquérito racional à natureza é demonstrar a unidade e harmonia dessa enorme massa de força e matéria”.

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Tubo do LHC, Large Magnet Facility (CERN)

É no jardim cultivado por Voltaire que nos lembramos que protões circulam à velocidade da luz sob os nossos pés — o percurso do LHC passa por ali. As estrelas começam a revelar-se no céu e o Mont Blanc aparece ao longe.  Foi em 1786 que o seu cume foi alcançado pela primeira vez devido a um concurso promovido por Horace-Bénédict de Saussure. No ano seguinte, a expedição de Saussure ao Mont Blanc — memorializada nas gravuras de Christian von Mechel — marcou o início das viagens de exploração natural nos Alpes.

Alpinismo científico

Prosseguimos a nossa viagem seguindo o percurso de Saussure até ao Theodul Pass no sopé do Matterhorn. Esta área, onde se concentra a maioria dos picos com mais de 4000m, é o território “sagrado” dos Alpes Peninos. Ao subir o Mattertal até Zermatt, percebemos a afirmação de Leslie Stephen — crítico e historiador — quando apresenta “as montanhas como objectos de veneração”, atribuindo a origem dessa ideia a Rousseau e aos seus “cúmplices, nenhum dos quais mais conspícuo que Saussure”.

Saussure passou quatro dias no Theodul Pass, de 11 a 14 de Agosto de 1792, a fazer observações científicas. O seu objectivo era medir a altura do Matterhorn e observar o glaciar de Gorner. Durante essa expedição, esteve “continuamente ocupado a observar as rochas e a estrutura das montanhas,” descrevendo o Matterhorn como um “obelisco triangular que parece composto por três camadas bem distintas.”

Também nós explorámos esta área entre 11 e 14 de Agosto deste ano. Começámos por seguir o trilho que atravessa o curso — agora descoberto — dos glaciares de Theodul e de Furggen, passando pela base da encosta leste do Matterhorn até ao Schwarzsee. Esta paisagem, a uma altitude de 2900m, parece extraterrestre, um mar mineral salpicado com cardos — Cirsium spinosissimum. A neblina passava rapidamente por nós e concentrava-se numa grande nuvem que rodeava o topo do Matterhorn. As camadas de rocha que ao longe parecem cinzentas-escuras, ao perto vemos serem de um verde enigmático — “un schiste micacé verdâtre” nas palavras de Saussure. Este inventou o cyanomètre, um instrumento de observação utilizado para medir a intensidade do azul do céu. É composto por um círculo com 52 tons, desde o branco, passando por azul-claro até ao azul da Prússia mais profundo, quase negro. Este objecto, que ainda serve o seu propósito científico, é também poético, evocando uma época em que os campos da arte e o da ciência ainda estavam ligados.

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Glaciar Theodul Superior, próximo do Theodul Pass

Ao final da tarde, apanhámos o comboio até ao topo do Gornergrat. A vista é majestosa, John Tyndall descreve-a em Hours of Exercise in the Alps (1871): “À minha esquerda, estava o monte Rosa e a sua corte real; à minha direita, o pico místico do Matterhorn, visto daqui num ponto acima do glaciar [de Gorner], atinge o seu aspecto mais agudo.” O glaciar de Gorner é o segundo maior dos Alpes, a seguir ao Aletsch. O Monte Rosa é a mais alta montanha dos Alpes suíços, Tyndall ascendeu sozinho ao seu pico — o Dufourspitze — em 1858. Tyndall foi um físico cujo trabalho se centrou sobre as propriedades do ar e a sua capacidade de absorção da radiação infravermelha, o que conduziu à descoberta do efeito de estufa, que descreveu como o processo em que o “nosso planeta transmite menos calor para o espaço do que recebe dos corpos do espaço”.

As expedições de Tyndall marcam a transição entre a época em que o alpinismo tinha um propósito científico e o período em que se transformou numa epopeia heróica para conseguir escalar os cumes mais altos dos Alpes. Na descrição de uma das suas tentativas de escalada do Matterhorn, Tyndall recorda um diálogo que teve com o guia Johann Bennen: “‘Podemos, de qualquer modo, chegar ao mais baixo dos cumes [do Matterhorn]’, disse [Tyndall]. ‘Até isso é difícil’, respondeu [Bennen]; ‘mas, quando o alcançar, o que acontece? Aquele pico não tem nome nem fama’.” Hoje, este cume chama-se Pic Tyndall.

Tyndall também deu o nome ao efeito óptico quando a luz atravessa partículas suspensas — efeito Tyndall —, o céu parece azul por causa da dispersão elevada da radiação electromagnética azul ao atravessar as moléculas de ar na alta atmosfera. Se Saussure inventou um instrumento para avaliar o azul do céu, Tyndall encontrou a razão de o céu parecer azul.

Alpinismo heróico

No dia seguinte, partimos de Schwarzsee para uma caminhada de dez quilómetros pelo vale de Zmutt em direcção à Schönbielhutte — um abrigo do Clube Alpino Suíço inaugurado em 1875. Estes abrigos existem em toda a área dos Alpes, sendo possível atravessar a cordilheira pernoitando nestes lugares. Os clubes alpinos foram disseminados numa altura em que a exploração dos Alpes se tornara atlética. O presidente do Alpine Club em Londres, entre 1865 e 1868, foi Leslie Stephen — pai de Virginia Woolf —, tendo sido o primeiro a alcançar uma série de picos durante a fase épica do alpinismo.

Nos últimos seis quilómetros de subida, passámos por quedas de água, cristas e glaciares, num percurso progressivamente dramático. Formava-se uma tempestade, as nuvens movimentavam-se rapidamente, ouvimos ao longe os trovões que se aproximavam. Esta paisagem materializava a ideia do Sublime — o terror perante a vastidão e o poder da natureza.

Em The Playground of Europe (1871), Stephen escreveu que “a glória da paisagem de montanha, como nos disse Goethe, é que as nuvens não nos parecem planas como tapetes no céu, mas permitem-nos observá-las à medida que se formam e dispersam”.

A classificação e denominação das nuvens que ainda usamos foi definida por Luke Howard em On the Modifications of Clouds (1803). Foi este texto científico que levou Goethe a escrever os seus poemas sobre as nuvens. Vimos as cadeias de nuvens a serpentear pelo vale, Stratus, que Howard assim descreveu: “Aparecendo ao pôr do Sol (…) em noites calmas, ascendem em camadas (como uma inundação) desde o fundo dos vales.”

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Vale de Zmutt, com Matterhorn (esquerda) e Glaciar Tiefmatten ao fundo
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Schönbielhutte SAC, com Glaciar Stockji ao fundo

Quando chegámos exaustos a Schönbielhutte, ficámos no terraço a olhar o Dent d’Hérens (4171m) mesmo em frente, e no topo do vale de Zmutt os glaciares de Tiefenmatten e de Stockji — este emitia uma luz azul, quase turquesa. Relutantemente, fomos para dentro para nos abrigarmos da tempestade. Ao jantar conversámos com dois alpinistas, um suíço e um japonês, que cultivam a sua amizade subindo montanhas — uma afinidade electiva, ao mesmo tempo improvável e poética.

Partimos da Schönbielhutte (2694m) ao nascer do Sol, para Zermatt (1608m) — 12 quilómetros ao longo do vale de Zmutt. Gradualmente, abandonámos as paisagens rochosas salpicadas com flores violeta — Campanula rotundifolia —, ao passar o limite arborescente, encontrámos árvores-miniatura que foram ficando cada vez mais altas à medida que descíamos o vale, “por todo o lado ouvimos os sons incessantes de actividade, que revelam que as causas que têm agido sobre [o Matterhorn] desde o início do mundo ainda estão em operação; reduzindo esta enorme massa a átomos”. Estas palavras são de Edward Whymper, o primeiro alpinista a chegar ao cume do Matterhorn em 1865, um feito que acabou em tragédia, resultando na morte de muitos dos participantes da expedição. Este foi um episódio que marcou o final da era épica do alpinismo e que foi crucial para moldar o imaginário alpino.

Quando chegámos a Zermatt, os sinos da igreja tocavam o meio-dia. Da ponte, olhámos uma última vez para o Matterhorn, à direita vimos o cemitério com as sepulturas de vários alpinistas.

Recreio da Europa

Deixámos o vale de Zermatt para trás e regressámos ao vale do Ródano, seguindo o rio em direcção à sua origem. Parámos em Morel e tomámos o teleférico até Moosfluh, para ver o glaciar de Aletsch — o maior e mais longo dos Alpes —, uma massa de gelo de 23 quilómetros com origem nos Alpes Berneses. Ao final da tarde, as nuvens desciam os picos, aproximando-se do glaciar para subir novamente, numa coreografia contínua. Foi neste lugar, de onde se vêem os “mais nobres e mais belos objectos da natureza (…) elevando os sentimentos ao nível da reverência”, que Tyndall reflectiu: “Os meus pensamentos vaguearam entre os mundos de lava e o nevoeiro nebuloso que os filósofos [naturalistas] tomam como a origem de toda a matéria. Tentei imaginar [esta nuvem universal] como o lugar das forças cuja acção deu origem a sistemas solares e constelações.”

O imaginário alpino foi criado pelo enorme sucesso de Julie, ou la Nouvelle Héloïse (1761) de Rousseau, pelos estudos científicos de Saussure, pela alegoria de Frankenstein, or the Modern Prometheus, pelas viagens de Tyndall e pelas conquistas épicas e trágicas de Whymper, transformando esta paisagem no que Leslie Stephen chamou “o recreio da Europa” — Playground of Europe — onde os turistas da Thomas Cook & Son procuravam encontrar a experiência estética do sublime.

Encontrámos os artefactos desta época a caminho do glaciar do Ródano, quando visitámos o Grand Hotel Glacier du Rhône, com uma pequena igreja anglicana ao seu lado. No interior do hotel, pudemos visitar um quarto de época elegante e simples. Os corredores estão cobertos de gravuras e fotografias do final do século XIX que mostram a imponência do glaciar do Ródano que dominava o vale e o hotel com cinco pisos. Quem ficou aqui no século XIX conseguia ver o grande glaciar pela janela; entretanto, o glaciar recuou de tal modo que já não é visível e todo o vale está livre. A origem do Ródano é um lugar mítico, mas que só permanece na memória histórica.

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Glaciar Aletsch, o mais longo dos Alpes
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Origem e Glaciar do Rio Ródano

Caminhamos até uma ponte sobre o Ródano. Ali tão próximo da sua origem, a água é surpreendentemente opaca, colorida com partículas que criam um gradiente entre o branco azulado e o verde-celadon. Um fenómeno que Tyndall descreve assim: “De cada um [dos glaciares] brota um rio mais ou menos volumoso, carregado com a matéria que o gelo raspou das rochas.”

Há pouco mais de uma centena de anos, todos os glaciares que vimos eram muito maiores, o único que ainda nos recorda essa escala é o Aletsch. Stephen em 1871 reflectiu: “É verdade e é triste que as montanhas estejam a dissipar-se (…) e mesmo os glaciares estão a recuar melancolicamente para as alturas profundas dos vales. Mas, apesar de tudo, podemos dizer com certeza, como de pouco mais, que os Alpes irão sobreviver ao nosso tempo.”  Uma interrogação que podemos renovar hoje.

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Subimos o Grimsel Pass e parámos perto de um lago, o Totensee. Aí encontrámos um marco que anuncia a divisão entre a zona em que a água dos rios corre na direcção do Mediterrâneo e a que corre para o Mar do Norte. Passamos do Ródano para o Reno. A partir daqui a viagem continua pelo universo nórdico e as suas mitologias.

Eliana Sousa Santos é investigadora do CES, Universidade de Coimbra

No dia 14 de Outubro: Exílios e Memória

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