À distância de escassas centenas de metros, entre as praças do Comércio e de Bouffay, no centro histórico de Nantes, há duas esculturas que poderão constituir um bom ponto de partida para a visita de um viajante português a esta cidade capital do Loire-Atlântico, que se tem vindo a impor como “um museu de arte urbana a céu aberto”.
Em ocasião anterior, a Fugas já conduziu o leitor pela “linha verde” com que o departamento de turismo da cidade guia o visitante na descoberta da história, do presente e do desejo de futuro desta que é a 6.ª cidade de França, e ponto (e porto, mesmo que o histórico porto de mar esteja agora desactivado e definitivamente transferido para Saint-Nazaire) de partida para diferentes viagens nesta região que acompanha o percurso do rio Loire até ao seu estuário no Atlântico.
Voltando às esculturas. A primeira é uma das mais recentes peças instaladas no centro da cidade: Éloge du pas de côté, do escultor francês Philippe Ramette, que se representa a si próprio, de corpo inteiro e à escala real, com um pé sobre um plinto de granito e o outro em equilíbrio instável, ousado, como quem desafia a lei da gravidade.
“No universo de Philippe Ramette, entre a comédia e a tragédia, tudo é a história da aquisição de novos pontos de vista e de uma atitude contemplativa face ao mundo e às suas paisagens”, escreve Jean Blaise, o responsável, desde há três décadas, pela revitalização cultural de uma cidade cuja perda do porto fizera cair num certo adormecimento.
Coube-lhe lançar projectos como o Estuário, que desde 2007 vem ligando a cidade e as duas margens do Loire até Saint-Nazaire através de um ousado percurso de arte pública, que vai já em duas dezenas e meia de obras. E também, desde 2012, o vasto programa Le Voyage à Nantes, que, centrado num festival anual nos meses de Verão, dinamiza também a cidade e a região ao longo dos restantes meses do ano.
A peça Éloge du pas de côté (que se poderia traduzir por "Elogio do passo ao lado") é uma das intervenções que ficou a enriquecer o património da cidade, na sequência da edição deste ano de Le Voyage à Nantes, num dos três lugares que acolheram outras obras de Philippe Ramette.
A segunda escultura que certamente surpreenderá o visitante português é uma estátua do… Infante D. Henrique, junto ao antigo Palácio da Bolsa (actualmente, uma loja FNAC), personagem que dificilmente imaginaríamos ter algo a ver com estas paragens. E parece que não tem, ou terá?...
A estátua tem autoria de um mestre da escultura em Portugal, Francisco Franco de Sousa (1885-1955), um nome da primeira geração modernista e elogiado autor da estátua de Gonçalves Zarco, no Funchal. A escultura do Infante representou Portugal na Exposição Colonial de Vincennes, em 1931, foi depois oferecida ao Estado francês e, segundo explicou à Fugas a guia Agnès Poras, acabou instalada no centro histórico de Nantes nos anos 80, “na sequência de uma troca de outras esculturas com o Museu Quai d’Orsay, em Paris”.
Mas o que confere uma inesperada simbologia, e actualidade, à presença d’O Navegador português nesta cidade é ela situar-se a pouca distância do tocante memorial que, em 2012, Nantes dedicou à Abolição da Escravatura – de autoria de Krzysztof Wodiczko (Prémio Hiroshima para a Paz, em 1998) e do arquitecto Julian Bonder –, enfrentando, e de algum modo exorcizando, a sua própria história como principal porto francês do tráfico de escravos entre os séculos XV e XIX, com o assumido desígnio de “guardar a memória do passado e pormo-nos atentos em relação ao futuro”.
Trata-se de um tema que, de resto, permanece na ordem do dia, com o drama dos refugiados, e que a Fugas pôde mesmo testemunhar em Nantes, quando, no dia 20 de Setembro, os responsáveis pelo município, numa operação resguardada por um forte dispositivo policial, evacuaram o acampamento improvisado de meio milhar de refugiados vindos do Norte de África, que desde o início do Verão ocupavam uma praça junto à antiga Bolsa.
“Estão aqui desde o início de Junho, e parecia que nem o Estado nem a Câmara se preocupavam em resolver o problema”, lamentava-se um habitante da cidade perante o quadro de desumanidade que, até esse momento, mostrava outro lado do quotidiano de Nantes. Um drama que, entretanto, parece ter sido menorizado, tendo em vista a aproximação do Inverno, com o realojamento dos refugiados em cinco ginásios da cidade. Mas o futuro permanece incerto, aqui, como em Calais, como em muitas outras cidades da Europa…
Souto de Moura na ilha da arquitectura
Regressando à “Viagem a Nantes”, a Fugas descobriu que há outros nomes portugueses, mas desta vez a participar no presente e no futuro desta cidade, e região, que aposta cada vez mais no cosmopolitismo.
Já se sabia que, desde o início do milénio – e desactivado o porto comercial –, na ilha no rio Loire está a nascer uma cidade nova, pontuada por “uma aposta tanto na arquitectura como em equipamentos sociais e de lazer, com evidentes preocupações educativas e ambientais”, como salientou à Fugas Bénédicte Pechereau, da equipa de Le Voyage a Nantes.
Aí “habita” o já famoso elefante-máquina, a primeira criação do projecto Les Machines de l’Île, em 2007, que se tornou um emblema da cidade, mas também o Carrocel do Mundo Marítimo (2012), enquanto continua em fabricação contínua (e que o público pode acompanhar em visita guiada, e mesmo também experimentar) a Árvore das Garças (prometida para 2021).
Mas a ilha é, sobretudo, um estaleiro de obra e de arquitectura – com vista, de resto, a sul, na comuna de Rezé, para um dos projectos históricos de Le Corbusier, a sua segunda “cité radieuse”, depois da unidade de habitação de Marselha.
Um dos primeiros projectos a ser concretizado na Ilha de Nantes foi o Palácio da Justiça, edifício de vincada geometria, de cor negra e amplas janelas envidraçadas a espelhar a cidade em frente, um projecto de Jean Nouvel, o segundo prémio Pritzker francês. “Na sua geografia e simplicidade construtiva, o edifício quer simbolizar a firmeza e a transparência da Justiça”, nota Bénédicte Pechereau, enquanto nos faz entrar neste estaleiro futurista.
Desde o ano 2000, muitos outros edifícios foram sendo construídos, e continuam a nascer, muitos deles com assinaturas de outros arquitectos reconhecidos, tanto em França como no mundo. Há projectos do outro “Pritzker” francês, Christian de Portzamparc (dois edifícios para habitação, residência estudantil, hotel, comércio e escritórios), e de Dominique Perrault. E há mesmo uma nova Escola de Arquitectura (ENSA), do atelier Lacaton + Vassal, um edifício com dois módulos ligados por uma passagem elevada, cuja estética funcionalista não podia ser mais ajustada ao seu programa, nomeadamente no enorme pé-direito das suas oficinas e ateliers.
E se outros projectos, como o Manny, também conhecido como edifício-mamute e que é igualmente uma caixa de música (Air, do artista alemão Rolf Julius, obra do projecto Estuário), ou o La Fabrique (atelier Tetrarc), uma sala de concertos e estúdio de gravação, são já também emblemas desta cidadela do futuro, há outros que estão em curso – é o caso dos projectos de Rudy Ricciotti, que desenhou igualmente a futura estação central do TGV, esta já na cidade, a inaugurar no próximo ano.
Também ainda em curso está o edifício que no mapa dos projectos imobiliários da Ilha de Nantes tem a assinatura de Eduardo Souto de Moura (com o atelier francês Unité), intitulado Zero Newton. Trata-se de uma torre de escritórios com uma dezena de pisos, com um restaurante na base, e que na sua imagem actual parece uma variação do edifício Burgo, na Boavista, Porto, rendendo de novo homenagem a Mies van der Rohe, um dos mestres confessados do arquitecto português.
Vieira da Silva no Museu das Artes
Seguindo a linha verde de Le Voyage a Nantes, o visitante pode encontrar uma nova ligação entre a arquitectura e as artes plásticas na visita, obrigatória, ao Museu das Artes (a pouca distância da Catedral de S. Pedro e S. Paulo), e que foi reaberto no ano passado após obras de ampliação do edifício inicialmente inaugurado em 1893.
Chama-se Cubo, o “aditamento” contemporâneo ao palácio neo-clássico, que é na verdade um cubo revestido a mármore raiado, tem a assinatura do atelier londrino Stanton+Williams, e está reservado à arte contemporânea – uma das obras que se pode descobrir no novo espaço tem a assinatura de Anish Kapoor, Sister (2005), e é uma peça quase imperceptível, um discreto “rombo” na parede branca que quase parece o negativo de Descida para o limbo, uma das criações que o artista indiano-britânico tem actualmente em exposição em Serralves.
Uma selecção da valiosa colecção de 13 mil peças, divididas paritariamente pela arte histórica (séculos XIII a XIX) e pela criação contemporânea (séculos XX e XXI), pode actualmente ser vista no museu. O rés-do-chão está destinado aos clássicos, e aí podem admirar-se telas de Tintoretto e Gentileschi, ou cópias de Ticiano ou Leonardo, por exemplo. Já no 1º piso, está patente um quadro de Vieira da Silva, La Bibliotèque (1966), ao lado de uma sala inteiramente preenchida com uma dezena de quadros de Kandinski. Mas há também obras de Claude Monet, Alfred Sisley, Marie Laurencin, Fernand Leger, Sonia Delaunay e Picasso, além de várias esculturas de Auguste Rodin.
E há uma proposta irrecusável na programação mais próxima do museu: a exposição Nantes 1886 – O escândalo impressionista (12 de Outubro a 13 de Janeiro), que irá reconstituir, com 80 obras, o Salão realizado na cidade naquele ano, que permitiu reunir, numa circunstância rara fora de Paris, um conjunto de obras de artistas cuja irreverência estética chocou ainda mais a província do que o que então acontecia na capital: Renoir, Sisley, Seurat, Guillaumin, Stevens, Rodin e… o artista da terra, Jules-Élie Delaunay são alguns desses nomes.
De Clisson ao estuário de Saint-Nazaire
A partir de Nantes, como já vimos, podem fazer-se múltiplas viagens, com diferentes destinos e temáticas. Pode ir-se em direcção a sudeste, para conhecer as vinhas do Muscadet e terminar o dia na pequena cidade de Clisson. Aqui, entre o imponente castelo em ruína que permite evocar uma vez mais a história mais antiga da região, remontando ao século XI, e o parque-villa La Garenne (século XIX), o mote pode continuar a ser a arquitectura e as artes. Primeiro, para conhecer uma terra que é também chamada “a pequena Tivoli”, pelo visual italiano das casas ornamentadas com tijolos e resguardadas por cedros e ciprestes. Depois, para ver de perto a propriedade “inventada” pelo escultor e coleccionador François-Fréderic Lemot (1771-1827), que acolheu e patrocinou nesta terra um grupo de estudantes e artistas que, no início de Oitocentos, “se viram expulsos de Roma por causa dos seus ideais republicanos”, como explicou a guia Laurence Plessix.
Nas duas margens do rio Moine, Lemot construiu uma villa e um parque, que simultaneamente funcionava como cenário para o trabalho e para inspiração dos artistas que convidava. Um dos temas que eles pintavam, por entre a paisagem verde e luxuriante, era o pórtico greco-romano que viam ao fundo, e que finalmente se tornou no túmulo do escultor-mecenas.
Se o viajante decidir seguir de Nantes para oeste, ao longo das margens do Loire, terá acesso à dezena de instalações do projecto de arte pública Estuário que, tendo começado no centro e na Ilha de Nantes, já chegou a Saint-Nazaire. Entre o leito do Loire e o mar, duas dessas criações suscitam, desde há já algum tempo, as atenções maiores dos moradores e visitantes: a casa que Jean-Luc Courcoult instalou no rio, em Couëron, e que – segundo testemunho de Bénédicte Pechereau, que habita nesta localidade – “mobiliza a atenção e a simpatia das pessoas, que tomaram já a ‘casa do rio’ como referência para os seus passeios e até como forma de medir a altura das marés”; e a Serpente do Oceano, do artista sino-francês Huang Yong Ping, um dragão com cem metros de comprimento que as ondas do mar fazem revoltear junto à praia de Saint-Brevin-Les-Pins, simultaneamente como uma ameaça e como um aviso para as questões de ordem ambiental nos dias de hoje.
Já em Saint-Nazaire, um dos maiores portos de França – onde hoje continuam a ser construídos os grandes paquetes de cruzeiros, como o Queen Mary II, por exemplo –, é incontornável uma visita à antiga base de submarinos da armada alemã na 2.ª Guerra Mundial. Construída entre 1941-43, com recurso a trabalhos forçados de prisioneiros do regime nazi, nomeadamente os republicados derrotados na Guerra Civil de Espanha, esta base resistiu, pela sua configuração, aos sucessivos bombardeamentos da Força Aérea Aliada.
Desde meados da década de 1990, e através de uma intervenção do arquitecto e urbanista espanhol Manuel de Solà-Morales (o autor do Passeio Atlântico na Foz do Douro), a base é, para além de testemunho físico e brutalista das incidências da guerra, um espaço cultural e polivalente. Aí se pode visitar, por exemplo, o museu Escala Atlântica, que proporciona a experiência da “grande travessia” entre a Europa e a América com uma muito verosímil recriação, feita a partir de objectos reais – por exemplo, o mobiliário e decoração art déco do paquete francês Île de France –, de fotografias, filmes e documentação diversa, do que era fazer a viagem entre o porto Le Havre e Nova Iorque.
Junto à base submarina, e em estreia ligação com a programação do espaço cultural aí instalado, o Grand Café é também uma galeria de arte, que, até ao passado fim-de-semana, mostrou um conjunto de obras do português Francisco Tropa, incluindo nelas Moustache caché dans la barbe (2018), “um subtil teatro mecânico habitado pelas sombras longínquas de Marcel Duchamp e de Raymond Russel”, como a apresentava o programa.
Na praia do Sr. Hulot
E esta viagem pode muito bem acabar com uma experiência de nostalgia cinéfila, que, de resto, pode também começar em Nantes. A cidade natal de Jacques Demy (1931-1990) foi cenário de vários filmes do realizador, entre os quais Lola (1961), rodado entre a Brasserie La Cigale e a galeria comercial Le Passage Pommeraye; mas também do documentário-homenagem da sua companheira, Agnès Varda, que em Jacquot de Nantes (1991) recriou as origens e a vida do autor de Os Chapéus de Chuva de Cherburgo.
Mas a escassos seis quilómetros a norte de Saint-Nazaire fica a praia de Saint-Marc-sur-Mère, que passou a ser a “Praia do Sr. Hulot”. É assim que a localidade surge agora assinalada nas placas de trânsito, porque foi aqui que Jacques Tati decidiu rodar, no Verão de 1951, as cenas ao ar livre da sua segunda longa-metragem, As Férias do Sr. Hulot (1953), que faria entrar esta figura na galeria das personagens maiores da história do cinema.
Na altura, Tati justificou a escolha desta localidade pela sua ambiência familiar e pela praia magnífica. Na verdade, a praia é a mesma, e mantém-se também pouco alterado, exteriormente, o hotel que acolheu as várias personagens do filme (e que actualmente é o Hotel de la Plage, da cadeia Best Western). De novo, há lojas a vender artigos associados ao filme e a Tati, e uma estátua em bronze, de autoria de Emmanuel Debarre, a representar o Sr. Hulot, que entretanto perdeu o seu inseparável cachimbo, mas se mantém vigilante a olhar para a praia e para os veraneantes.
Apetece ficar lá à espera do próximo Verão, a ver se o Sr. Hulot regressa na sua pequena viatura Salmson, a desafiar a monotonia das férias da pequena burguesia francesa.
A Fugas viajou a convite de Le Voyage à Nantes, da Transavia e Office du Tourisme du Vignoble de Nantes.