Cento e cinquenta anos depois, a modelo de A Origem do Mundo tem nome
Bailarina, depois filantropa, Constance Quéniaux estava na órbita do pintor Gustave Courbet e os peritos franceses têm agora “99% de certeza” de que era sua a emblemática vulva ao centro da obra. A Origem do Mundo nunca deixou de causar sensação e já foi apreendida pela PSP de Braga ou censurada pelo Facebook.
É talvez a vulva mais famosa do mundo e tem a carga de ser intitulada A Origem do Mundo. Já esteve no centro de vários momentos de tensão, como a apreensão dos livros que a tinham na capa pela PSP de Braga em 2009, ou de censura pelo Facebook. A pintura de Gustave Courbet é exemplo frequente quando se fala de casos de censura à expressão artística e às nuances da arte, erotismo e pornografia e, num momento marcado pelos pénis de Robert Mapplethorpe em Serralves, é uma vagina que ganha nova identidade após uma recente investigação: Constance Quéniaux.
As novidades constam de um livro do premiado biógrafo Claude Schopp, L'Origine du monde, vie du modele (ed. Phébus), que será publicado a 4 de Outubro. Até agora, os especialistas da História de Arte consideravam que a modelo que posou para a revolucionária pintura seria Joanna Hiffernan. Hiffernan, a ruiva irlandesa que Gustave Courbet retratou em La belle Irlandaise (Portrait of Jo) (1865/6), era também pintora e sua modelo na altura em que A Origem do Mundo foi produzida. Era sua amante e também namorada de James Whistler, o pintor norte-americano.
O tronco e o abdómen recostado, com os genitais femininos tranquilamente expostos até ao início das coxas, não tinha rosto e era tanto erótico quanto realista. Foi pintado também em 1866. Só mais de um século depois este nu seria exposto em público – em 1988, no Museu de Brooklyn.
A Origem do Mundo nunca teve problemas em encontrar donos, passando das mãos de um diplomata otomano que o terá encomendado para a sua colecção de arte erótica para muitos proprietários intelectuais famosos – o escritor Edmond de Goncourt, fundador da academia homónima, o psicanalista Jacques Lacan e a actriz Sylvia Bataille, e agora o Museu d’Orsay, não sem de permeio ter sido roubado durante a II Guerra e levado para Paris depois disso. Mas a vulva hirsuta que o quadro mostra nunca teve dona identificada e segura, mas apenas suspeita. Havia várias candidatas, além de Hiffernan, como Jeanne de Tourbey, futura condessa de Loyne. Agora, juntam-se à sua história Alexandre Dumas (o filho do autor de Os Três Mosqueteiros e O Homem da Máscara de Ferro) e a romancista francesa George Sand para delinear a identidade da mulher cujo corpo foi elevado a símbolo da vida.
Na origem da investigação está então o historiador francês Claude Schopp, que ao passar em revista as cartas de Dumas filho para um outro trabalho — o biógrafo é especialista nos Dumas — se deparou com a correspondência deste com George Sand. Nela, com “99% de certeza”, se identifica a bailarina francesa Constance Queniaux como a modelo morena desta pintura, ao invés da ruiva Joanna Hiffernan. Um erro de tradução está na origem do momento eureka, quando a frase de Dumas “On ne peint pas de son pinceau le plus délicat et le plus sonore l'interview de Mlle Queniault (sic) de l'Opéra” lhe pareceu mal transcrita. Foi consultar o original, manuscrito de 1871, e percebeu que a palavra “interview” – “entrevista” – estava errada e que na verdade Dumas escrevera “intérieur”, ou seja, “interior”.
Dumas dizia assim qualquer coisa ácida como: “Não se pinta o mais delicado e sonoro interior de mademoiselle Queniault da Ópera.”
Dumas era crítico das posições políticas de Courbet (um radical socialista associado à Comuna de Paris) e a frase, de repente, pareceu a Claude Schopp ter a chave de um mistério com mais de 150 anos, como disse à agência de notícias francesa AFP, que avança a história esta terça-feira. “Foi como se se fizesse luz. Normalmente faço descobertas após muito trabalho, mas encontrei isto sem procurar. É injusto”, disse à AFP.
Levou o achado à Biblioteca Nacional de França e à directora do Departamento de Pintura e Fotografia, Sylvie Aubenas, que é a autora da certeza: “Este testemunho de época descoberto por Claude [Schopp] faz-me pensar que temos 99% de certeza de que a modelo de Courbet é Constance Quéniaux”, disse Aubenas. Seria um segredo conhecido por alguns dos intelectuais do círculo de Courbet e afins, mas à medida que Quéniaux se tornava mais respeitada como filantropa ter-se-á diluído no tempo.
Além desta ligação com “a pintura mais escandalosa do século XIX”, como a refere a agência, há as ligações entre Courbet, Quéniaux e a origem não do mundo, mas da obra. Esta terá sido encomendada por um diplomata otomano Halil Serif Pahsa (ou Khalil Bey), de quem a bailarina parisiense, de 34 anos, Constance Quéniaux era amante na altura em que a pintura foi encomendada a Coubert. Era morena, de cabelos negros, o que correspondia às “belas sobrancelhas negras” de Quéniaux que eram sobejamente elogiadas à época, diz a responsável da Biblioteca Nacional de França, e que estão registadas em fotografias históricas que Sylvie Aubenas conhece bem.
A AFP assinala que Constance Quéniaux era dona de uma pintura de Courbet, algo que veio a público quando da morte da filantropa em 1908, de que se destacava uma camélia rubra em flor – as flores associadas às cortesãs desde A Dama das Camélias, de Dumas. Aubenas acredita que seria a “mais bela homenagem do artista e do mecenas a Constance”.
A imagem nunca deixaria de causar sensação: a artista francesa Orlan criou em 1989 A Origem da Guerra, em que evoca a pintura de Coubert, mas substituindo a vulva por um pénis realista; em 2008, por ser capa do livro Pornocracia, de Catherine Breillat, um cidadão que o viu à venda em Braga considerou a imagem ofensiva e queixou-se da sua presença numa feira do livro. A PSP apreendeu os exemplares porque a capa “apresenta cenas com conteúdo pornográfico, estando os mesmos expostos ao público”, o que mereceu críticas de vários juristas sobre o que consideraram um “atentado à liberdade de expressão” e um acto de “censura”.
Três anos mais tarde, o Facebook encerrava a conta do escultor dinamarquês Frode Steinicke e depois a do professor Frédéric Durand-Baïssas depois de terem publicado A Origem do Mundo na rede social, que tem uma política antinudez. Durand-Baïssas processou o Facebook e o veredicto deu-lhe este ano razão quanto aos termos do contrato entre utilizador e empresa, mas não quanto ao encerramento da conta ter sido motivado pelo post com a pintura de Courbet, algo que o Facebook negava.
Em Fevereiro deste ano, entretanto, o Facebook retirou uma imagem da escultura da Vénus de Willendorf, com 30 mil anos, da conta da activista Laura Ghianda. Pediu depois desculpas dizendo que confundiu a imagem com publicidade; mais tarde, o jornal especializado Art Newspaper viu o seu post sobre o caso, com uma imagem da Vénus, ser também bloqueado pela rede social.